segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Lisboa, 1972.


 
 
Portugal
Fotografias de Neal Slavin

           
 
 
         Infelizmente, mas a culpa é minha, encontrei poucas informações sobre Max Wery, embaixador belga em Lisboa desde o marcelismo até um período já bem adiantado da nossa democracia. Socorro-me, pois, do prefácio que José Medeiros Ferreira escreveu para a obra daquele diplomata, E Assim Murcharam os Cravos, publicada entre nós pela Editorial Fragmentos, em 1994, com tradução de Regina Louro. Antigo resistente na 2ª Guerra, após a libertação da Bélgica Max Wery ocupará, com dois colegas, o edifício do Ministério dos Assuntos Exteriores, na rue de la Loi, em Bruxelas, em 3 de Setembro de 1945. Antes estivera nesse Ministério de 1936 a 1940, tendo pertencido ao gabinete do ministro socialista Paul-Henri Spaak. No final da carreira, a colocação em Lisboa afigurava-se o prenúncio de uma reforma tranquila. Mas, subitamente, uma revolução eclode em Lisboa. Max Wery acompanha-a de perto, ou tão perto quanto as circunstâncias do tempo – e a sua qualidade de representante diplomático de um país estrangeiro – deixaram. O seu livro estende-se pelo período revolucionário e vai mais adiante, até à presidência de Ramalho Eanes e aos primeiros passos da adesão às Comunidades. Escolheu-se um trecho anterior ao 25 de Abril pelo que ele nos apresenta, desde logo, como «retrato turístico» de Lisboa. Em quase todos os testemunhos de estrangeiros sobre Portugal repetem-se os mesmos clichés e lugares-comuns, quase se podendo dizer que existe uma espécie de vulgata de impressões e sensações despertadas pelo cheiro a sardinha ou a contemplação dos Jerónimos. Porém, o olhar de Wery é mais fino e penetrante. Dá-nos uma visão assaz curiosa do que era o Portugal na agonia do regime. Concorde-se ou não com o teor das observações do embaixador da Bélgica, não se pode negar que tentou compreender o país onde estava – e isso, por si só, justificaria a publicação deste extracto de E Assim Murcharam os Cravos.
 
 
 
 
 

 
 
Cheguei à capital portuguesa em Novembro de 1972. Nesse ano, o mês de Dezembro foi excepcionalmente inclemente e, para nosso grande desapontamento, fomos, minha mulher e eu, acolhidos por violentas rajadas de vento selvagem que, soprando do mar, arrastavam furiosamente nuvens escuras e densas que desabavam em chuvas torrenciais. Estávamos um pouco surpreendidos com o mau tempo, fora do habitual, é verdade, e compreendemos então o sentido de uma frase tantas vezes ouvida durante as emissões de televisão: “Um anticiclone, proveniente dos Açores, determina o tempo nestas regiões.” Custava-nos acreditar que, passadas umas semanas, as amendoeiras e as mimosas estariam em plena floração. Decerto o clima de Portugal não é rigoroso, longe disso; é bem conhecido o seu céu azul, sob um sol generoso. Pode fazer calor, muito calor, até, mas com uma particularidade importante e feliz: o vento que, pela canícula, refresca, ao fim da tarde, a atmosfera sufocante do dia.
         Como Roma, Lisboa foi construída sobre sete colinas cujas ruas e ruelas se conciliaram ao relevo. Neste aspecto, a cidade é cansativa, pois todas as artérias são a subir e a descer, o que torna difíceis os passeios pedestres, tanto mais que o piso se encontra em mau estado, tornando-se intransitável; os pavimentos estão distribuídos muito desigualmente e não oferecem, tal como os passeios, uma superfície uniforme sobre a qual, outra nota pitoresca, se movimentam a custo as carruagens rangentes e ofegantes de um eléctrico de outra era e rolam autocarros de imperial, vindos de Londres, demasiado altos para a estreiteza das ruas. E, contudo, que estranho encanto esta cidade emana! Quer a olhemos de cima, a bordo de um avião ou das muralhas do Castelo de S. Jorge, quer a contemplemos de baixo, das margens do Tejo, a cidade, harmoniosamente disposta em andares, apresenta um aspecto colorido, pontuado pelas tonalidades multicolores das casas, literalmente agarradas aos flancos das encostas. O encanto cativa-nos desde a descoberta, ao acaso das caminhadas, das vielas e becos da cidade antiga; prende-nos quando visitamos os bairros populares do Rossio ou de Alfama, sobre os quais flutua o cheiro delicioso da sardinha assada e paira a sombra imensa de Santo António de Pádua, menino querido de Lisboa e deste bairro onde nasceu. Nas ruelas estreitas, as casas, desde as varandas e janelas até quase aos telhados, enfeitam-se, quase todos os dias, em todos os andares, de roupa acabada de lavar, a balouçar ao vento, como estandartes multicolores cujos tons claros contrastam intensamente com os matizes desbotados das fachadas que o tempo e a falta de manutenção sujaram irremediavelmente. As lavadeiras de Portugal ainda não pertencem à lenda. Maravilha, também, errar por certas ruas, bordejadas de buganvílias de tom malva, vermelho ou laranja, muralhas que escondem e protegem ciosamente dos olhares indiscretos velhas casa de estilo árabe e velhos palácios austeros e imponentes, vestígios de um passado que teve a sua grandeza. Pois o encanto indefinível de Lisboa vem também – diria mesmo que vem, sobretudo – do seu passado. A cidade recorda-se de ter sido, durante vários séculos, o centro e a capital de um imenso império, que não esqueceu no seu entorpecimento posterior e de que conserva uma profunda nostalgia.
         Este sentimento de grandeza e de saudade melancólica do passado perpetua-se até aos dias de hoje. Deambulem à beira do Tejo, ali onde se ergue a Torre de Belém: de pés na água, ela parece continuar a espreitar o regresso das pesadas caravelas, sobrecarregadas de seda e especiarias, fontes de riqueza e opulência para Lisboa. Tal abundância encontra-se materializada e comprovada no Mosteiro dos Jerónimos, com o seu claustro e a sua igreja, situado quase em frente da Torre de Belém e que provoca a admiração pelo carácter tipicamente português, a arte manuelina, cuja pureza e delicadeza envolvem quer as âncoras e cordames – coisas do mar – como as cruzes de Cristo e as flores, de ornatos artisticamente cinzelados. Quanto à Praça do Comércio, uma das mais belas praças do mundo, oferece aos olhos maravilhados a vastidão da sua superfície, a unidade de estilo dos palácios que a rodeiam e a harmonia perfeita das suas proporções.
         Trégua de romantismo obsoleto. Voltemos à realidade. Como encontrei Lisboa no final do ano de 1972?
         A cidade estava limpa, ordenada e viva. A vida quotidiana desenrolava-se normalmente. As lojas estavam bem abastecidas; era possível encontrar, a preços normais, toda a gama de produtos importados. As pessoas ocupavam-se tranquilamente das suas tarefas habituais. Em resumo, ainda se vivia com conforto. Só o preço das rendas de imóveis e de apartamentos era exorbitante. A construção de uma casa individual ou de um edifício de vários andares ficava muito cara, apesar dos salários módicos dos operários e dos preços absolutamente normais dos materiais de construção. Era o indicador certo de uma especulação anormal sobre os terrenos para construção, nas mãos de promotores cúpidos.
 
 
 
   
 
      Para um país em guerra, via-se muito poucos soldados em uniforme nas ruas. Quanto ao aparelho policial, não era mais visível que o dos nossos países democráticos. É verdade que os polícias à paisana, muito numerosos, não podiam ser detectados. Mas saltava à vista que os polícias fardados pareciam mais arrogantes do que noutros lugares. Os abusos de poder eram moeda corrente, a corrupção grassava. Na realidade, a corporação policial encontrava-se acima da lei, para grande fúria da gente do povo, cuja única arma de defesa era a manha, a astúcia, a desobediência e a fuga. Na vida de todos os dias, no cabeleireiro, nas ruas, os clientes e passantes desconfiavam nitidamente uns dos outros e os Portugueses, apesar de dados à zombaria e dotados de um humor feroz, abstinham-se de falar diante de desconhecidos e que certamente comportava mais riscos, mas que, segundo a opinião da gente do povo, habilmente sustentada pela propaganda oficial, não era tão perigosa como diziam os opositores ao regime. De facto, o soldo de guerra dos recrutas era relativamente satisfatório; o miliciano só recebia uma parte, sendo a outra metade paga ao chefe de família em Portugal. Estas remessas, num país pobre, eram bem-vindas e permitiam a numerosas famílias humildes enfrentar as necessidades mais elementares. Portanto, era essencialmente uma razão económica e social que explicava a ausência de oposição do povo aos dissabores da guerra africana. Um sobrinho de um dos meus criados tinha sido mobilizado e devia juntar-se à sua unidade em Moçambique. O criado estava, sem dúvida, desgostoso pela partida do seu familiar, mas não se sentia tão ansioso assim quanto aos perigos que o sobrinho ia correr. A este respeito, deu-me uma explicação que anotei imediatamente: “Nem todos os mobilizados para África – longe disso – vão para a linha de fogo. Geralmente, são as nossas tropas negras africanas que apanham os piores bocados. Grande parte das nossas tropas metropolitanas é encarregada de missões de guarda e fica estacionada em campos fortificados ou nas cidades. Aliás, em 12 anos, só temos a lamentar a perda de 11 mil pessoas, ou seja, 916 mortos por ano, três por dia. É muito menos que o número de vítimas causadas por acidentes de viação em todo o país”. Onde e de quem tinha o meu interlocutor recolhido esta explicação? Fiquei embasbacado.
 
 
 
 
        
 
      No aspecto humano, a que ligo tão grande importância, fiquei encantado com a espontaneidade do acolhimento, com a gentileza e com a prestabilidade das pessoas do povo, quer pertencessem ao campesinato ou ao mundo operário.
         O acesso aos meios da elite intelectual e daquilo a que geralmente se chama “a sociedade” pareceu-me mais difícil. O valor desses intelectuais era incontestável: encontrei juristas brilhantes, médicos ilustres, académicos eruditos, banqueiros e industriais competentes, mas apercebi-me imediatamente de que esta elite, na maioria, era habitada por uma susceptibilidade extraordinária e animada de um complexo de superioridade, talvez inconsciente, mas real, que por vezes deixava transparecer um pretensiosismo e um orgulho surpreendentes, raiando em certas alturas um sentimento de xenofobia. Convinha ficar de sobreaviso e mostrar-me cauteloso, nas conversas mais banais e anódinas, para evitar melindrar os interlocutores, apesar de dotados de um humor original, acerbo, não desprovido de vivacidade na resposta pronta.
         Era uma elite incontestavelmente instruída no aspecto do saber. No entanto, privada de contactos prolongados com os países estrangeiros, permanecera à margem da evolução das ideias. Não tinha sido influenciada pelos efeitos das diferentes ideologias propagadas durante e após uma guerra mundial a que Portugal teve o privilégio de escapar. Era visível que o regime político a isolara perigosamente. Mantivera-se estranha às correntes políticas, económicas e sociais que, a seguir ao conflito de 1939-45, impeliram os outros povos a adaptarem-se às novas transformações, Além disso, e nada de mais natural, aqueles meios intelectuais e de negócios tinham-se habituado a viver confortavelmente, em vaso fechado, no seio da família portuguesa, célula social especialmente fechada e tirânica; tinham confiança no seu país, no seu regime, neles mesmos; pareciam pouco preocupados com o amanhã, tanto mais que se haviam deixado adormecer um pouco à sombra de um regime que durava havia mais de quarenta anos e que, há que reconhecê-lo, lhes tinha dado, durante todo esse tempo, não só ordem e estabilidade, mas também posições, vantagens e, até, privilégios não negligenciáveis. Neste entorpecimento calmo e benéfico, a elite conservara-se fiel a concepções estatísticas que dificilmente encontravam espaço no mundo moderno. A fé na perenidade do império português era absoluta. Os investidores e homens de negócios desdenhavam colocar capitais em países estrangeiros, reservando-os, prioritariamente, para as províncias de além-mar, Angola e Moçambique.
         A verdade obriga-me a reconhecer que as minhas primeiras impressões sobre os meios intelectuais e sobre a sociedade portuguesa rapidamente se matizaram. Uma vez transposto o fosso das conveniências e das convenções e uma vez estabelecidas relações humanas, verifiquei que o que tomara por arrogância e orgulho, não passava, o mais das vezes, de reserva e pudor. Hoje orgulho-me de ter travado com as pessoas do país amizades sólidas e sinceras que resistiram à prova do tempo e da separação.
         Não os entreterei com as apreciações que na altura fazia sobre aquilo a que se designa por classe média. Este grupo social era, como em toda a parte, heterogéneo; não desempenhava, apesar da existência de um regime corporativo legal, qualquer papel activo, contentando-se com seguir os conselhos e as injunções do regime. Os seus membros pareciam-me, acima de tudo, imbuídos da sua pequena pessoa e desejosos de manter um standing social, frequentemente superior aos seus recursos. Assim, conservavam um pessoal doméstico que exploravam descaradamente; era um drama pungente no dia em que tinham de privar-se de alguém, geralmente uma mulher para todo o serviço, na sua casa.
 
 
 
 
 
         No conjunto, era uma população imobilizada. Duas características, todavia: por um lado, um orgulho e uma fidelidade comoventes pelo passado glorioso; por outro, a existência de um anticomunismo fóbico, quase visceral, herança do Dr. Salazar. As lavagens ao cérebro e os constantes e repetidos esforços da propaganda oficial tinham dado abundantemente os seus frutos. O comunismo era a encarnação do diabo na Terra, e qualquer pessoa que se permitisse criticar minimamente o regime, além das perseguições policiais imediatas, via-se classificada, sem qualquer matiz, de “comunista”, o que constituía a suprema injúria.
         Eu sabia que existia uma oposição real, larvar, clandestina, mas, acabado de chegar, ainda não tivera ocasião de a descobrir.
         A política não ocupava um lugar preponderante na vida do país. Existia, é certo, uma assembleia nacional e uma câmara corporativa, mas os seus membros não se apresentavam nessa qualidade oficial. O facto de se ser deputado não classificava um homem; constituía somente um sinal tangível de pertença ao regime. Havia entre os deputados e os membros das câmaras corporativas personalidades de primeira categoria, mas eu só me aproximava deles no exercício das suas actividades profissionais e mundanas. Eles próprios não se vangloriavam de o ser. Assim, conheci bastantes advogados, juristas, presidentes de conselhos de administração e presidentes de associações diversas (como o Rotary) enquanto ignorava completamente as suas qualidades de representantes da nação. De facto, o mundo político limitava-se aos membros do executivo, quer dizer, à Presidência do Conselho e seus ministros.
         Quanto ao papel da imprensa, era pouco importante. O controlo pelo regime das informações internas, maneira púdica de designar a censura, entravava o trabalho dos jornalistas, embora alguns, mais astutos, conseguissem insinuar, nos seus artigos, o relato de alguns factos ou a publicação de elementos pouco ortodoxos.
         […]



 
 
 
         Conservei a recordação de um almoço, afinal divertido, durante o qual a anfitriã, autêntica marquesa, com 16 quartos de nobreza indiscutíveis, me perguntou com a maior seriedade do mundo, e para minha grande estupefacção, se era verdade que os comunistas e os seus aliados socialistas e os sociais-democratas eram incapazes de se portar correctamente à mesa e de se servir de um garfo! Esta pergunta, na sua ingenuidade e na sua estupidez, era reveladora de um estado de espírito absolutamente falseado pela campanha de intoxicação anticomunista do regime, do qual já tive ocasião de falar.
Max Wery
 

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