domingo, 11 de setembro de 2016

Portugal, 1950-1994.

 
 
 
 
 
 
A vinda de crianças austríacas para Portugal, durante e após a 2ª Guerra, é sobejamente conhecida e encontra-se amplamente documentada. Existem vários artigos e reportagens de jornal, como a que saiu no Público, aqui. Organizado por José A. Palma Caetano, o livro bilingue Um Laço de Amizade entre Portugal e a Áustria / Ein Freundschaftsband zwischen Portugal und Österreich, publicado pela Assírio & Alvim em 2005, reúne depoimentos de dezenas de crianças que, graças ao labor da Cáritas, foram colocadas nos mais diversos pontos do país no imediato pós-guerra. Raramente os testemunhos vão além de uma descrição sumária e emocionada dos tempos felizes passados com as famílias de acolhimento, não permitindo extrair grandes ilações para uma reconstrução do «olhar estrangeiro sobre Portugal». É mais do que natural, pois os depoentes eram, à época, crianças de tenra idade, vindas de uma terra em escombros. Em quase todos os testemunhos há palavras afectuosas para com os «pais adoptivos» e relatos de um regresso a Portugal anos depois, já na idade adulta. Escolheu-se um pouco ao acaso (mas por conter um episódio contemporâneo com alguma curiosidade) o depoimento «Ladrões com coração», de Martin Strutzenberger, um dos muitos que estão publicados num livro comovente, que bem merece ser (mais) conhecido.
 
Évora, Bairro Novo, anos 1950-1960
 
 
Ladrões com coração
 
Com sete anos, subalimentado e pertencente a uma família com cinco filhos, tive a possibilidade de, graças aos transportes da Cáritas para o estrangeiro, ir para Portugal, onde estive de meados de Abril de 1950 a fins de Março de 1951. Depois de uma longa e fatigante viagem de comboio e de barco, por Génova e Lisboa, cheguei a Évora e fui entregue aos cuidados de pais adoptivos muito simpáticos, sem filhos e já com mais de 65 anos de idade.
         Passado pouco tempo já eu era o menino querido da família, sobretudo dos empregados domésticos e muito em especial da governanta, Luzia Rosa Gomes, que eu tratava por «Mutti» (mãezinha) e cuja sobrinha Albina, de 12 anos, brincava comigo e tinha também sempre de tomar conta de mim. Évora, essa maravilhosa capital do Alto Alentejo, impregnada de história e com muita gente simpática, tornou-se de repente para mim o paraíso terrestre.
         Não é, porém, minha intenção relatar em pormenor essa estadia em criança entre os muitos portugueses que eu estimava, poi há bastantes histórias de outras crianças enviadas pela Cáritas no após-guerra que são tão maravilhosas como aquela que eu também aí pude viver.
         Infelizmente não me foi dado voltar a Portugal para uma outra estadia, em virtude da idade e do precário estado de saúde dos meus protectores e pais adoptivos. A partir de 1956 deixei de receber qualquer resposta de Évora às minhas cartas.
         No período do meu noivado, em 1966, contei muitas vezes à minha actual mulher, Elisabeth, como tinha sido a minha infância em Portugal: «Temos de lá ir uma vez os dois, para te poder mostrar tudo e procurar saber quem é que ainda é vivo de todas as pessoas de Évora que eu tanto estimava.»
         Casamento, arranjar casa, aperfeiçoamento profissional, três filhos para criar, nova casa, porque a antiga era muito pequena para cinco pessoas, durante muito tempo só eu a ganhar, mudança de emprego, custos elevados da viagem – tudo isso nos impediu de ir a Portugal.
         Só 44 anos depois da minha estadia é que essa viagem foi possível, em Maio de 1994. Nós éramos inexperientes, mas corajosos e marcámos numa agência uma viagem de avião com alojamento nas pousadas e caro alugado para o Sul de Portugal. Tudo correu da melhor maneira, fomos de Lisboa por Sesimbra, Palmela, Vila do Bispo, Sagres com o Cabo de S. Vicente, Faro, Manta Rota, Beja e Serpa até Évora. Em Évora tínhamos, na reserva feita, prolongado a estadia com dormida para três dias, a fim de podermos visitar tudo bem e procedermos a algumas indagações.
         Esse regresso a Évora foi um acontecimento que me tocou profundamente. E ainda muito mais me comoveu quando nós, munidos com cartas antigas dos pais adoptivos e antigas fotografias da minha estadia em criança em 1950/51, conseguimos, através da Câmara Municipal, a morada de uma mulher que tinha tratado dos meus pais adoptivos até à sua morte. Apesar das muitas dificuldades com a língua (nós sem falarmos português e lá sem conhecimentos de alemão e muito poucos de inglês), conseguimos encontrar as sepulturas dos meus pais adoptivos – ambos falecidos em 1957 – e arranjar uma visita, com uma intérprete (português-alemão), à mulher cuja morada nos tinham dado.
         Qual não foi a minha surpresa quando a porta se abriu e vi uma simpática senhora de idade – era a minha Luzia Gomes, agora Luzia Alves, 80 anos, a minha «Mutti» desse ano que passei em Portugal! Foi uma visita muito tocante, na qual recebemos também fotografias e o endereço da sua sobrinha Albina, que agora, também casada e com filhos adultos, vive em Odivelas, ao norte de Lisboa.
         Muito emocionados e enriquecidos, fomos, depois desses três dias, de Évora para o Estoril. No dia seguinte, o nosso destino foi novamente Lisboa, a última etapa da viagem. Como queríamos naturalmente parar na Torre de Belém, fomos para um parque de estacionamento e ficámos ainda admirados porque um guarda do parque nos indicou em lugar, embora a essa hora da manhã o parque estivesse quase vazio. Ao afastarmo-nos, vimos que ele gritou qualquer coisa a outros camaradas. Quando, depois da visita à Torre, voltámos para o nosso carro, foi grande o sobressalto. Uma das portas de trás tinha sido arrombada. Mas só tinham roubado uma bolsa que eu, aliás, costumava trazer comigo, afivelada. Fora um erro justamente dessa vez não a ter levado! O que lá estava era algum dinheiro, uma objectiva intermutável de uma máquina fotográfica, carta de condução, passaporte e, o que maior desgosto me causou, todas as cartas e fotografias, endereços e documentos relacionados com a minha estadia em Portugal em criança e com essa viagem, assim como todos os rolos de fotografia revelados e por revelar.
         Não vale a pena referir aqui as dificuldades que se seguiram e as voltas que foi preciso dar para arranjar novos papéis na Embaixada da Áustria e na nossa chegada ao aeroporto de Viena-Schwchat. Terá, no entanto, de se dizer também que, apesar disso, nos últimos dias das nossas férias ficámos a conhecer Lisboa e a gostar muito dessa cidade.
         Duas semanas depois do nosso regresso a Perchtoldsdorf, recebi um telefonema da Junta de Freguesia, a dizer que a minha carta de condução e o meu passaporte tinham sido encontrados e podia ir buscá-los. Assim fiz e, ao voltar a casa, abri, na entrada, a nossa caixa de correio e lá dentro estava um grande envelope da Embaixada da Áustria em Lisboa. Foi enorme a nossa alegria ao encontrarmos nele, para além da carta da Embaixada (sobre o achado do conteúdo num saco de plástico pendurado na aldraba de uma porta), todos os filmes da nossa viagem revelados e por revelar, mas sobretudo todas as minhas antigas fotografias e cartas.
         Pelos vistos, os ladrões tinham estudado o conteúdo das cartas de 1951 e concluído daí que eu era uma das «crianças da Áustria». E, por isso, depositaram uma parte do roubo, que era para mim extremamente importante do ponto de vista emocional, de maneira que pudesse ser encontrada. Eram realmente ladrões com coração e talvez esse procedimento mostre ainda hoje a importância que teve para nós, crianças, essa acção admirável do após-guerra.
         Todas as fotografias estão, assim, de novo colocadas cuidadosamente no álbum da minha infância e todas as cartas, apontamentos e endereços guardados em segurança. E salvaram-se mesmo todos os rolos dessa viagem, de modo que pude fazer e ordenar todas as fotografias, que constituem uma documentação completa. Dessa viagem nos ficou, igualmente, a mim e a minha mulher, uma impressão duradoura, sem nada que a perturbe, e confirmou tudo o que eu contara no período do noivado sobre a boa gente de Portugal (e ainda o excedeu! – observação da minha mulher).
 
Martin Strutzenberger
 
 
 
 
 

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