quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Portugal, 1942.

 
 
 
Annemarie Schwarzenbach (1908-1942)
 
 
 
Como referimos ontem, Annemarie Schwarzenbach esteve duas vezes em Portugal: uma em 1941, outra em 1942. Na série «Estrangeiros em Portugal», que tem vindo a ser publicada no Malomil, divulga-se agora um texto de Schwarzenbach intitulado «Soalheiro e agreste Portugal», saído no Thurgauer Zeitung, em 11-VII-1942. Foi extraído do livro Annemarie Schwarzenbach em Portugal (1941, 1942), que recolhe os artigos por si publicados aquando das duas visitas que realizou a Portugal. Coordenada por Gonçalo Vilas-Boas (que também assina uma excelente introdução), a colectânea desses textos, traduzidos por Maria Antónia Amarante, foi editada pelo Centro Interuniversitário de Estudos Germanísticos (Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra).
Margens do Douro, 1907
 
 
Soalheiro e agreste Portugal
 
         Dizes-me: canta, canta
         Mas de canções nada sei
         Que a Coimbra nunca fui
         Por lá ainda não passei…
 
 
Quem canta esta melodia popular, tal como qualquer camponês e qualquer criança, conhece o nome da sua respeitável universidade que foi, no passado, um grande centro de saber e da qual se diz hoje que é preciso ir a Coimbra para entender o espírito do novo Portugal e do seu Governo. O Presidente do Conselho português, Oliveira Salazar, foi professor em Coimbra e de lá deu início à sua notável missão. O Cardeal Patriarca de Lisboa ocupou em tempos uma cátedra em Coimbra. Governo de professores ou ditadura de intelectuais foi a designação dada ao regime do Dr. Salazar, e ambos os títulos são honoríficos. Mas o cantor desta melodia popular nunca passou às portas de Coimbra. Até há pouco tempo, nunca ninguém lhe exigiu que aprendesse a ler e a escrever. É pobre e diz que não sabe cantar. E, contudo, canta, e as suas canções são decerto tão antigas como a Universidade de Coimbra. Pouca coisa mudou. A aspereza da Primavera, a aspereza da vida e o amor melancólico de que falam as canções populares, são as mesmas nos dias de hoje e encontram na alma portuguesa o mesmo eco que no passado.
Porque Portugal, esta varanda da Europa, mau grado a sua luz dourada e o seu grande encanto, não é um país ameno. A vida em Portugal, que hoje acolhe e seduz os estrangeiros – porque nesta bela faixa costeira ainda se concentra a variedade quase exuberante e o conforto das formas de viver europeias – tem pouco a ver com as fontes mais profundas de que se alimentou a alma viva do povo português e que ele irá conservar não obstante os múltiplos temporais.
É com temporais, que nas altitudes do extremo Norte transformam a neve em rosas, que varrem, no Sul, os pastos escalvados do Algarve, agitam, no interior, as copas dos pinheiros e no Tejo enfunam as velas nas barcas dos pescadores, que a Primavera se faz anunciar em Portugal. No cimo do montes, os pequenos moinhos de velas esperam pelo vento; nos campos avermelhados, os bois à frente da charrua resistem-lhe com a larga fronte, como se o quisessem aprisionar na lira dos seus chifres arqueados. O sol escalda e dardeja o seu brilho quase metálico sobre as estradas brancas, mercados de rua, enseadas piscatórias, velhas muralhas e portais de quintas nas aldeias e sobre a superfície cintilante do Tejo e do mar. Mas o vento mete-se de permeio e brinca com as massas de nuvens que se acastelam e, num abrir e fechar de olhos, ensombram o céu e a seguir voltam a evaporar-se, convertendo-se em finos véus, através dos quais irrompe o azul, aqui em tons pastel e mate, ali de um brilho diáfano, acolá intenso como um manto de rei.
Esta agitação do céu, este jogo arisco entre a luz e a sombras, a bonança e a tormenta, a mudança brusca de um calor quase africano para um frio húmido e glacial, funcionam como um alerta para que não nos deixemos seduzir – nem pela areia branca e os canteiros de flores abrigados na Costa do Sol, nem pelos sons das guitarras e as vozes suaves e saudosas dos fadistas. Grandes são os contrastes em Portugal. Imediatamente atrás da baía da Riviera, no Estoril, estende-se um campo agreste, fustigado pelo vento, onde reina a urze, as pedras e uma erva rala; onde moços pastores, com uma manta de feltro esfarrapado às costas e os pés envolvidos em palha e serapilheira, guardam ovelhas e porcos. E por detrás da nostalgia dos fados, por detrás da palavra saudades, que significa, a um tempo, melancolia e remorso, dor da distância, ternura e amor que é intraduzível esconde-se uma tristeza séria e profunda, que faz parte da herança dos portugueses. Os viadutos romanos que lhes atravessam os campos, as capelas e as muralhas de fortificações visigóticas, as cidadelas árabes, as torres mouriscas e os sólidos palácios dos seus primeiros reis, que vinham conquistando a partir do Norte e em demanda da cidade de Lisboa, recordam que os portugueses provaram os destinos de múltiplos povos, a torre de Belém, na foz do Tejo, dá testemunho da época grandiosa em que daqui largaram os navegadores nas suas caravelas para dar a conhecer o mundo aos europeus, e os belos palácios evocam esses tempos de grande riqueza e de grande poder. Mas esses destinos eram transitórios e o país, tal como as circunstâncias que enformaram a terra e as gentes, permanecem iguais a si mesmos.
Às vezes, ouve-se dizer que foram a riqueza e o poderio mundial que incutiram maus hábitos à nação portuguesa e a debilitaram; que a perda desse poderio mundial a teria levado à resignação e ao esgotamento. Esta interpretação é precipitada e superficial. Lá fora, os homens do campo nunca tiveram parte em qualquer riqueza que os debilitasse e vivem hoje, tal como antigamente, de parco sustento e trabalho árduo, situação dificilmente comparável à de outro povo europeu; a marca de uma gravidade respeitável, neles gravada por uma existência agreste, associa-se a uma jovialidade profunda e genuína que provém da mesma fonte. Basta assistir a uma tourada portuguesa, que já na época dos reis visigóticos constituía um jogo cavaleiresco da nobreza e um motivo de diversão para o povo, para reencontrar na mestria simultaneamente viril e donairosa dos cavaleiros, no espantoso adestramento dos seus magníficos cavalos, a tradição de uma nação cavaleiresca. Não é um espectáculo sangrento; na versão portuguesa, o touro não é morto e os cavaleiros mais famosos são filhos de famílias antigas que, no campo, criam cavalos e touros. Finalmente, era preciso ter visto na manhã de temporal do 10 de Maio os pequenos veleiros, com três e quatro mastros, dos pescadores de bacalhau, concentrados sobre o Tejo como um rebanho, para receberem a bênção episcopal antes da largada para a Gronelândia; com esta bênção da pátria levam consigo a agrestia dos seus ventos e o travo agreste e grave da sua vida.       
 
Annemarie Schwarzenbach



1 comentário:

  1. "Lá fora, os homens do campo nunca tiveram parte em qualquer riqueza que os debilitasse..."
    A profundidade e clarividência de quem não fez turismo em Lisboa e Estoril. Obrigado por mais este maravilhoso olhar sobre nós.

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