quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Lisboa, 1942.


 
 
Erich Maria Remarque (1898-1970)
 
 
         Pseudónimo de Erich Paul Remark (1898-1970), o escritor Erich Maria Remarque tornou-se célebre pelo livro Im Westen nichts Neues, de 1929, traduzido entre nós sob o título A Oeste Nada de Novo, um relato da vida nas trincheiras da Grande Guerra, que o autor conhecera enquanto soldado do exército alemão. Die Nacht von Lissabon/Uma Noite em Lisboa é também, em certa medida, autobiográfico, já que Erich Maria Remarque, à semelhança da personagem do romance, fugiu também da Europa para os Estados Unidos, viajando da Alemanha natal para a Suíça em 1931 e daí para a América, em 1939. Não sendo uma obra-prima, Uma Noite em Lisboa (1962) é um livro poderoso, que marcou gerações de leitores em Portugal, entre os quais me incluo, que o li há muitos anos, numa tarde de Verão quase tão quente como aquela em que hoje escrevo. O livro, publicado pela Europa-América com tradução de Maria da Luz Mota Veiga, foi reeditado há poucos anos pela Saída de Emergência. Dificilmente haveria nome mais apropriado para descrever a trama desta novela, que ilustra o desespero dos refugiados que, na Lisboa dos anos 1940, aguardavam uma passagem para a América, rumo à liberdade.  
 
Estúdio Horácio Novais
 
 
 
Uma noite em Lisboa
 
Tinha os olhos pregados no navio. Fundeado no Tejo, a alguma distância do cais, iluminava-o um clarão vivíssimo. Se bem que estivesse já havia uma semana em Lisboa, ainda me não habituara à luminosidade extravagante da cidade. Nas terras donde eu vinha, a noite fazia da cidade negros blocos de carvão, onde o foco de uma lanterna representava mais perigo do que a peste na Idade Média. Eu vinha da Europa do século XX.
O navio de passageiros ali atracado recebia carga, e eu sabia que a partida estava marcada para a tarde do dia seguinte. À luz crua de uma fiada de lâmpadas eléctricas, iam-se acumulando fardos de carne, peixe, conservas, pão e legumes, os carregadores arrastavam para bordo caixotes imensos e um guindaste içava volumes e fardos com a despreocupada indiferença de quem não lhes sente o peso.
O navio preparava-se para a partida, qual arca em tempo de dilúvio. E era de facto uma arca de Noé. Qualquer navio que naquele ano de 1942 abandonasse a Europa assemelhava-se a uma arca de salvação. A América era o monte Ararat e o dilúvio ia crescendo sempre. A enchente engolira há muito a Alemanha e a Áustria, atingindo proporções gigantescas na Polónia e em Praga. Amsterdão, Bruxelas, Copenhaga, Oslo e Paris estavam também submersas, as cidades da Itália ruíam e a própria Espanha deixara de ser segura. A costa de Portugal ficara sendo o último refúgio para os emigrantes que acima da pátria e da própria vida colocavam os seus ideais de liberdade, justiça e tolerância. Quem a partir daí não conseguisse alcançar a terra bendita da América estava perdido. Ficaria condenado a uma morte lenta no labirinto de documentos sempre recusados, de impossíveis licenças de trabalho e autorização de permanência no país, de campos de internamento; envolvido nos complicados meandros da burocracia; reduzido à solidão irremediável de desconhecido em terra alheia e à indiferença geral e criminosa com que era olhado o destino de cada homem, consequência inevitável da guerra, do medo e da necessidade. Naquela altura o homem não valia nada: um passaporte válido era tudo.
Passara a tarde a jogar no Casino do Estoril. Tinha um fato ainda em bom estado, e por isso me deixaram entrar. Fora uma última e desesperada tentativa de subornar o destino. A licença que nos permitia residir em Portugal caducava dentro de poucos dias e nem Ruth nem eu possuíamos quaisquer outros documentos. O navio fundeado no Tejo era o último com o qual, ainda em França, acalentáramos a esperança de chegar a Nova Iorque; a lotação esgotara-se, porém, com meses de antecedência, e, além do visto americano, faltavam-nos para cima de trezentos dólares. Tinha tentado arranjar pelo menos o dinheiro e fizera-o pelo único processo ao meu alcance – o jogo. Uma tentativa absurda, bem sei, visto que, ainda que tivesse ganho, só por milagre conseguiríamos entrar a bordo. Vivendo paredes meias com o desespero e o perigo, aprendera a acreditar em milagres. Sem isso não poderia sobreviver. Dos sessenta dólares que ainda me restavam, perdi nessa tarde cinquenta e seis.
[…]
Um táxi rondava solitário. Ele chamou-o e olhou para mim.
− Vamos! – disse eu.
Entrámos para o carro e ele indicou ao motorista uma direcção. Pensei que deveria avisar Ruth de que passava a noite fora, mas, no momento em que me acomodava no táxi escuro e bafiento, apoderou-se de mim uma esperança louca, de tal forma torturante que quase cambaleei. E se tudo fosse verdade? Talvez não estivéssemos ainda perdidos, talvez o impossível se realizasse. Seria a salvação! Não podia, nem por um segundo, arriscar-me a perder de vista o desconhecido.
Contornámos as arcadas da Praça do Comércio e não tardou que nos perdêssemos no labirinto de escadas e vielas que galgam a encosta. Eu não conhecia ainda aqueles bairros de Lisboa. Como em todas as cidades por onde andara, também ali o que eu conhecia eram as igrejas e os museus – não tanto porque me animasse um desvairado amor a Deus ou à arte, mas muito simplesmente porque nas igrejas e museus ninguém nos exigia documentos. Frente ao Crucificado ou aos grandes mestres da arte nós continuávamos a ser homens… não indivíduos de identidade duvidosa.
Deixámos o táxi e seguimos a pé por escadas e ruelas angulosas. Misturava-se no ar o cheiro a peixe, a alho e a madressilva, a que vinha juntar-se o suave perfume do sono e de um Sol já morto. O Castelo de S. Jorge crescia na noite enluarada e a luz ia descendo em cascata pelos inúmeros degraus.
Parei a olhar o cais. Lá em baixo, o rio simbolizava simultaneamente liberdade e vida, e o rio corria para o mar, que por sua vez significava a América.
 
Erich Maria Remarque  
   
     

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