No cômputo dos relatos essenciais
ainda da primeira metade do século XIX, relativamente à Guiné Portuguesa, seria
imperdoável silenciar-se o trabalho rigoroso do então Tenente do Corpo de
Engenheiros José Conrado Carlos de Chelmicki, um polaco que decidiu vir para
Portugal e embrenhar-se na causa liberal, apaixonou-se pelo estudo do Império,
esta Corografia Cabo-Verdiana é prova
provada, faz hoje parte da bibliografia obrigatória da História da Guiné
Portuguesa. O tomo I foi editado em 1841, ao tomo II, publicado também em
Lisboa em 1843, associou-se um brasileiro de ascendência alemã, também
engenheiro militar, diplomata e historiador, Francisco Adolfo de Varnhagen.
General José Conrado Carlos de Chelmicki (1814-1890)
Tavira homenageou o
general Chelmicki, que aqui viveu e faleceu
Chelmicki, como é óbvio, centra o seu
trabalho no arquipélago cabo-verdiano, a Senegâmbia era matéria residual. Traz,
no entanto, observações muito peculiares, e as suas críticas revelam uma grande
paixão por aqueles dois pontos de África. Começa por dizer que a costa da Guiné
era para os antigos portugueses um espaço compreendido entre o Rio Senegal e a
Serra Leoa. Faz um escorço histórico sobre a região continental, diz que no ano
de 1446 Cadamosto e António de Nola fizeram uma segunda viagem para completar o
descobrimento do rio Gâmbia. Foi nesta viagem que descobriram S. Filipe,
Boavista e Maio, só depois é que reconheceram o Rio Gâmbia. Passaram pelo rio
Casamansa, o Cabo Roxo, o rio de S. Domingos ou Cacheu e a boca do Rio Geba, e
ao regressar a Portugal ainda fizeram o reconhecimento de algumas ilhas dos
Bijagós. Esta a resenha histórica.
Chelmicki atribui o estado de
degradação a que chegou Cabo Verde e fundamentalmente a ruína em que estão os
presídios e as povoações com presença portuguesa devido à administração dos
reis Filipes. Segundo ele, ainda em 1650 o distrito da Guiné começava no rio
Sanagá (Senegal) e ia até ao distrito da Serra Leoa, havendo povoações de
portugueses nos rios de S. Domingos, Geba, Rio Grande e Rio Nuno, mas Portugal
tinha perdido os melhores rios, caso do Senegal e Gâmbia. Procede à
apresentação de um conciso roteiro desde o norte do Rio Casamansa até ao Cabo
da Verga. Depois de uma descrição muito cuidada do Casamansa e do litoral da
região dos Felupes, chega-se ao Rio Cacheu e Chelmicki dá-nos um belo
apontamento, aqui fica uma nota: “Vinte léguas acima da foz do Rio Cacheu ou de
S. Domingos está a praça de Cacheu. Do Sul à primeira terra defronte de Bolor é
a Mata de Putana, ponta cheia de arvoredo e é terra de Felupes. Daqui para
Bissau há três caminhos. Primeiro, entre a terra dos Felupes e Papéis; segundo,
por fora, pelo Canal das Caravelas ou pelo Canal das Âncoras; terceiro,
partindo da Mata de Putana, passando pela terra dos Felupes até à Ponta das
Cabaceiras”. A Guiné Portuguesa estava dividida em dois distritos, o de Bissau
e o de Cacheu. Seguindo a sua situação geográfica, passa à descrição dos nossos
presídios e pontas ali situados, no distrito de Cacheu destaca Zinguinchor,
Cacheu, Bolor e Farim. No distrito de Bissau menciona a Fortaleza de S. José,
Bolama, Ilha das Galinhas, Fá, Geba, Guinala e outras ilhas dos Bijagós.
Entrando no que hoje classificaríamos como análise dos recursos, não perde a
oportunidade para falar do estado em que se encontram os edifícios portugueses:
“miseráveis fortins, que fora do alcance da sua artilharia não exercem influência
nenhuma, e os portugueses estabelecidos preferem o ganho fácil nas trocas de
géneros à nobre, honrada e já tão adiantada arte de cultivar a terra. A fazenda
de D.ª Rosa de Cacheu, no Poilão do Leão, é a única que existe nos limites da
Guiné Portuguesa”. Sempre que pode, apela a quem o lê para que se intensifique
a colonização dos brancos, que se divulgue a prosperidade da terra. Mas é muito
duro nas suas observações, como escreve:
“Eis aqui o que nos resta depois de
400 anos de posse: miseráveis presídios, nenhuma indústria, falta de comércio e
de cultura. E não podia deixar de chegar a este deplorável estado de ruína.
Tudo, tanto nas ciências e artes, como nas administrações, não tendo melhoras,
não tendo progressos, ficando estacionário, em breve é retrógrado. Portugal com
os olhos fitos no novo hemisfério com a riqueza de minas, não se importou com
as possessões africanas. Aquelas estão perdidas já para sempre, mas com estas
que ainda existem na posse, Portugal em poucos anos, com boa administração, tornará
a ganhar o seu antigo esplendor. Consideremos as possessões de Guiné como
colónias comerciais e agrícolas. Elas estão em muito melhor situação que as
inglesas e francesas. Cinco grandes rios, como o de Casamansa, S. Domingos,
Geba, Rio Grande e Nuno, navegáveis muito para o interior, oferecem fáceis
meios de comunicação, boas vias de comércio e uma fronteira natural de um país
que facilmente se pode ocupar e converter para cultura de plantas indígenas,
que nos fornecerão produtos que com tanta despesa e trabalho procuramos fora.
Ocupando as embocaduras destes rios
com pequenos fortes, cuja construção muito pouco custará ao governo, em razão
da sua utilidade, dilataremos a fronteira marítima desde o Rio de S. Pedro até
ao Cabo da Verga, e proibindo de facto a exportação dos escravos de toda esta
costa, os habitantes voltarão às pacíficas ocupações de agricultura.
Os terrenos obtêm-se com facilidade
dos indígenas: então devem ser repartidos em grandes sesmarias, a proprietários
ricos, zelosos do bem público e inteligentes nos seus interesses. Mandem-se vir
colonos da Holanda, Suíça e Alemanha, donde eles trarão a indústria e
civilização, e aumentarão assim a população branca sem diminuirmos a do reino.
Favorecendo o governo os açorianos, eles hão de preferir estabelecer-se aqui, e
com trabalho, sabendo que o ganho é deles, enriquecer-se em pouco, do que
servirem de escravos brancos aos brasileiros.
A Guiné Portuguesa deve ser uma
colónia de exportação de produtos agrícolas. O estado atual da Guiné é como na
descoberta, ou pior ainda, pois sem haver nenhuns melhoramentos, vestígios de
mão europeia. Tudo está por fazer. Assim, da imediata precisão, é ocupar o
Ilhéu dos Mosquitos na foz do Casamansa como obter a cessão de Sedhiou, ponto
que no mesmo rio ocuparam os franceses, violando os tratados inclusive o de
1814 feito em Paris, onde claramente se considera este rio de Casamansa como
pertencente unicamente à Coroa Portuguesa. Simultaneamente, deve ocupar-se a
embocadura do Rio Grande e Rio Nuno, formar um estabelecimento em Bolama e Ilha
das Galinhas e pôr uma guarnição nos Ilhéus do Rei e em Bandim, como também no
sítio chamado Poilão do Leão.
Tomando nós solidez neste país, que
obter-se-á por meio da agricultura, tendo a supremacia de facto, quem nos
poderá proibir explorar estes tesouros de África?”
E termina assim: “Eis a descrição
geográfica da província das ilhas de Cabo Verde e costa da Guiné, no desgraçado
estado em que está atualmente. Oxalá que o sábio Congresso Legislativo atenda
como convém e é de esperar, à justa, mas triste e humilhante comparação que fez
o Visconde Sá da Bandeira das nossas colónias com a do Cabo da Boa-Esperança,
que tanto aumentou em riquezas e população branca”.
Talvez
valha a pena recapitular o que já se escreveu anteriormente. Chelmicki começa
por nos dizer que a Costa da Guiné que nos antigos portugueses abrangia o
espaço compreendido entre o Rio de Senegal e a Serra Leoa, começou a ser
descoberto depois que Gil Eanes, pelos anos de 1433, dobrou o Cabo Bojador.
Dá-nos depois a dimensão do refluxo, dizendo que ainda em 1650, o distrito da
Guiné, que pertencia à capitania de Cabo Verde, começava no Rio Sanaga
(Senegal), estendendo-se até ao princípio do distrito da Serra Leoa. A sua
descrição começa no Rio Casamansa, dizendo que na sua embocadura tem o Ilhéu
dos Mosquitos, “agora segundo nos consta ocupado pelos franceses; este rio
dista da foz do Gâmbia vinte léguas. No Casamansa fica situado Ziguinchor. Dali
até ao Rio de Cacheu, ou de S. Domingos, toda a terra é habitada por Felupes. O
Rio de Cacheu tem duas entradas, vinte léguas acima da foz do rio está a Praça
de Cacheu. Do Sul, a primeira terra de frente de Bolor é a Mata de Putama,
ponta cheia de arvoredo e que é terra de Felupes. Daqui para Bissau há três
caminhos, o primeiro entre a terra dos Felupes e Papéis; o segundo, por fora,
pelo Canal das Caravelas ou pelo Canal das Âncoras; o terceiro, partindo da
Mata de Putama e correndo a terra dos Felupes”.
Fala
pormenorizadamente de S. José de Bissau, de várias ilhas dos Bijagós, situa
perfeitamente a embocadura do Rio Grande, dizendo que houve povoações e
estabelecimentos portugueses de que só restam alguns sinais. Continuando o
percurso, fala do Rio dos Tombalis dizendo que os moradores são Beafadas e que
daqui à boca do Rio Nuno são trinta léguas de costa, habitadas por Nalus.
Mudando de agulha diz que a Guiné Portuguesa é dividida em dois distritos: o de
Bissau e o de Cacheu. O distrito de Cacheu abrange Cacheu, Ziguinchor, Bolor e
Farim; terá dois mil habitantes sujeitos ao domínio português, espalhados por
todos estes pontos, incluindo 93 soldados que os guarnecem. Ziguinchor situa-se
no Rio Casamansa nas terras dos Banhus e tem comunicação pelo interior com o
Rio Gâmbia. “Negoceia-se aqui com os gentios Felupes, Cassangas, Banhus e
Mandingas, comprando cera, arroz, marfim, couros de vários animais a troco de
contas miúdas, ferro, pólvora, alambre (âmbar), cristal e cola”. E logo regista
a crescente presença francesa no Casamansa, fazendo notar que no Tratado de Paz
celebrado em Paris em 1814 fora reconhecido o Rio de Casamansa como propriedade
da Coroa de Portugal, e sugerindo que o Governo devia tomar esta violação em
consideração. Descreve Ziguinchor, adiantando que a sua guarnição em 1836 era
de nove soldados, admitindo que ao tempo em que escreveu a sua corografia não
fosse maior.
Falando
de Cacheu, adianta que é cabeça de concelho e distrito do mesmo nome, situada
na terra de Papéis e Brames. No princípio era uma feitoria, em que habitaram
alguns negociantes portugueses, comprando escravos, cera e marfim dos gentios
Papéis. Atualmente, “aquilo que chamam casa-forte não tem de fortaleza senão o
ser de pedra e cal”. Quase sempre está Cacheu em guerra com o gentio vizinho, e
diz com toda a franqueza que a guarnição é de 74 praças, tanto oficiais como
soldados dos piores. O caminho por terra de Cacheu a Ziguinchor era o mais
conveniente e cómodo.
Quanto
a Bolor, dá a saber que os reis gentios cederam esta ponta à Coroa Portuguesa,
é a ponta chamada do Baluarte de Bolor, onde então o Sr. Lopes de Lima, que fez
este tratado de aquisição, principiou a formar um estabelecimento, e diz mesmo
que antes de chegar a Bolor há ainda à beira-mar duas grandes aldeias, Usol e
Jafunco. “Em todas estas partes se cultiva arroz, que pode ser um grande ramo
de comércio a troco de ferro, pólvora, tabaco, treçados, missanga, aguardentes,
panos, quinquilharias, etc.”. Identifica Farim, dizendo que dista 60 léguas de
Cacheu pelo rio de S. Domingos acima, ficando em terra de Mandingas. “Até 1692,
era uma simples feitoria de negociantes sujeitos a todas as insolências e
maus-tratos dos gentios”. Aqui viviam dois naturais de Santiago, o padre João
Cabral e Pereira Simão Vassalo, degredados então pelo bispo D. Frei Vitoriano
Portuense, fortificaram a povoação e persuadindo aos cristãos que ali se
achavam que pegassem em armas e se defendessem dos gentios. E observa que
Honório Pereira Barreto, em 1835, aqui montou seis peças de artilharia à sua
custa. “O melhor negócio é o da cola. Os naturais compram também com muita
avidez prata para fazerem manilhas e apreciam este metal mais do que o ouro”. E
termina esta digressão pelo distrito de Cacheu dizendo que é o único ponto na
Guiné onde uma grande extensão de terreno vizinho a Farim pertence de facto e
de direito aos portugueses, terreno esse que terá sido comprado por um tal
senhor Pascoal e outros comerciantes ali estabelecidos. “Este ponto é
muitíssimo importante por ser ponto de passagem de todos os gentios que vão
levar à Gâmbia e ao Senegal os seus marfins, ouro em pó, etc., por não acharem
aqui sortimento de fazendas próprias”. Concluída que fica a descrição do
distrito de Cacheu, segue-se Bissau.
Bissau
abarca a fortaleza de S. José, as ilhas de Bolama e das Galinhas, o Ilhéu do
Rei, Fá e Geba, computando a população sujeita às autoridades portuguesas em
três mil habitantes. A Força Armada do distrito era composta por 145 praças.
Falando em S. José, observa que há um ponto que Portugal possui na Ilha de
Bissau sujeito a vários régulos, e que tem doze léguas de comprido sobre seis
de largo. Recorda que foi no reinado de D. José I, em 1766, que se mandou
construir a fortaleza que tem a forma de um quadrado abaluartado. A aguada
faz-se uns 300 passos ao sul da praça, à beira-mar, nalguns poços escavados na
profundidade de 5 a 6 palmos de areia, e trata-se de uma água que não é
agradável ao paladar. É uma descrição minuciosa, temos um militar por detrás:
“O fundeadouro defronte da praça é muito seguro em todas as estações porque o
mar está sempre em calma com um fundo tão firme que com boas amarras em tempo
algum há perigo. Apesar da bondade do porto, as entradas e saídas são de muita
demora, visto que não é possível bordejar por causa dos numerosos baixos”. Dá
elementos sobre o povoado de Bissau: “Umas 300 habitações, todas miseráveis
palhoças, sendo seis mais sofríveis abertas com telha, formam a povoação que
jaz debaixo do fogo da praça. Aqui assistem alguns negociantes portugueses, e o
resto são pretos cristãos ou apenas batizados. Os gentios vizinhos não têm nenhum
respeito, nem temor, deixam tremular a bandeira portuguesa por ser do seu
interesse, tirando daqui a pólvora, aguardente e outros artigos que já são para
eles quase de primeira necessidade. Todavia, vêm sempre ao mercado armados, e
dizem por vezes que chegando as chuvas hão-de arrasar a fortaleza. É muito
frequente matarem alguns habitantes da povoação e entram quando querem em casa
do governador sendo muitas vezes paisano e negociantes, habita fora das portas
da fortaleza, tiram-lhe o chapéu da cabeça ou algum outro traste que lhes
agrada, e tudo isso ele sofre impunemente. O comércio é na totalidade explorado
por Franceses, Ingleses e Americanos, porque navios portugueses poucos lá vão”.
E
dá-nos igualmente outras informações sobre a nossa posição no distrito. Fala
assim do Ilhéu do Rei: “Defronte do fundeadouro da praça de Bissau está o lindo
e arborizado Ilhéu do Rei, chamado pelos Ingleses e Franceses Sorciers e que
nalgumas cartas portuguesas vem denominado de Superstição: nome que lhe foi
dado por existir neste ilhéu a crença de que qualquer indivíduo que for caçar
ou matar alguma coisa ali infalivelmente morre em breve. É de suma importância
ocupar este ilhéu e talvez estabelecer ali sede das autoridades. O governador
Marinho por intervenção do Sr. Honório (Pereira Barreto) obteve em 1837 do
gentio a cessão dele; resta agora fazer algum forte e construir casas para o
governador e a tropa”.
É
pormenorizado na descrição das ilhas dos Bijagós, faz largos comentários à
cobiça inglesa, e depois segue para descrição de Fá e Geba. Fá situava-se a 40
léguas acima de Bissau, era uma posição ocupada depois de 1820, então um
comerciante português dera início a uma feitoria que nos primeiros anos trouxe
prosperidade, o comerciante morreu e o governador de Bissau mandou alguns
soldados para ali. “Porém, não há forte algum, no ano passado havia um sargento
e seis soldados desarmados que moram numa palhoça. O território pertence à
Fidalga de Fá”. Geba situava-se a 60 léguas acima de Bissau, território de
Mandingas. No princípio do século XIX tinha até 2 mil batizados que habitavam
em 400 casas baixas. “Hoje existem ali só seis brancos. Há uma igreja que
muitas vezes está sem sacerdote”.
Este
general de origem polaca mostra que estudou metodicamente a geografia, as
populações, o comércio, a indústria, é extremamente crítico sobre o estado
geral das fortificações: “Não há senão miseráveis fortins, que fora do alcance
da sua artilharia não exercem influência nenhuma, e os portugueses
estabelecidos preferem o ganho fácil na troca dos géneros, à nobre, honrada e
já tão adiantada arte nos países civilizados, a arte de cultivar a terra. O
nome do colono tão estimado e honrado, é aqui ignorado. A fazenda da D.ª Rosa
de Cacheu, no Poilão do Leão, é a única que existe nos limites da Guiné
Portuguesa. Nos últimos anos, principiou o Sr. Honório alguma cultura da ilha
de Bolama, e o Sr. Matos na das Galinhas; mas isto são coisas tão
insignificantes que mal se podem mencionar. Talvez até a de Bolama já acabasse,
desde que no ano passado os Ingleses invadiram esta ilha e roubaram ao colono
300 escravos que empregava nesta cultura. Na vizinhança de Farim, o Sr. Pascoal
comprou terrenos que à falta de força não pode nem sequer semear por causa dos
atrevidos ladrões gentios. A agricultura portanto não faz ainda nenhuns
progressos nesta parte de África. E considera que chegou o momento de falar da
população gentílica:
“Cada
aldeia dos gentios é cercada de um vasto território, composto de bosques,
prados e terras que são concedidas a quem quiser encarregar-se do trabalho e
das despesas. No resto pastam os gados. Não é conhecido entre eles o direito da
propriedade. A terra entanto é tão fecunda, que sendo húmida em oito dias
depois de semeada já é um prado, em dois meses um campo coberto de espigas
douradas. Nestes climas de fogo, a água é a principal condição de
fertilidade. Todos os cereais, é
verdade, são pequenos, de grão muito duro, mas em paga a natureza oferece aos
mandriões dos habitantes palmas de diversas qualidades, milhares de várias
árvores de fruta, debaixo das quais, tendo a sombra para abrigo e descanso, o
suculento fruto lhes serve de alimento”. E curiosamente vamos passar a ter
informação sobre a cultura do arroz: “É principalmente cultivado no país dos
Felupes, país abrangido entre o rio de Cacheu e o de Casamansa, ocupando uma
região de mais de vinte léguas quadradas. Como o terreno é em parte lodoso, em
parte arenoso, mas em geral cortado de regatos e alagadiço, promove muito as
cearas de arroz que aqui se chamam bolanhas; como todavia, por falta de
indústria nos seus trabalhos rurais, são expostos a verem num momento, pela
invasão do mar, frustradas todas as esperanças da colheita. Não vendem nunca os
Felupes a colheita do ano anterior sem terem já a do corrente segura. A única
produção deste país é um arroz ordinário, muito miúdo, mas de bom gosto e de
muita nutrição. A cor escura que ele tem, resultará talvez, como observou muito
judiciosamente o Sr. Lopes Lima na sua Memória sobre os Felupes, de
arrecadarem eles o seu arroz na palha dos sótãos das casas, aonde durante o
decurso de todo o ano é exposto a um fumo insuportável. Nas beiras do rio de
Cacheu cultiva-se também bastante arroz, que é muito claro, e de onde o vêm
buscar os Ingleses da Gâmbia, e depois debaixo do nome desta sua colónia metem
em comércio. A culpa disso não é só do Governo, como dos negociantes
portugueses que deixam explorar aos estrangeiros um género tão lucrativo, não
se lembrando que tomando o meio termo das importações, sai de Portugal só pelo arroz,
1 milhão e 300 mil cruzados por ano”.
Refere
igualmente Chelmicki que há culturas de milho, arroz, algodão e uma espécie de
milho-painço nas vizinhanças das aldeias. Também refere que os Papéis de Bissau
cultivam o arroz e o fundo. A lavoura dos Mandingas difere no milho e no
arroz dos mais gentios. Mais adiante tem outra curiosidade: “Noutro tempo houve
ali um grande ramo de comércio para Portugal, pimenta da Guiné. Os holandeses
ao fim de muitos esforços conseguiram desacreditar tanto esta como a de S.
Tomé, para poder lucrar mais na sua, que traziam das Molucas; por isso hoje,
totalmente deixado ao esquecimento, esta especiaria já não é procurada”.
Exposto
o estado da agricultura em Cabo Verde e na Guiné, enfatiza as causas, tome-se
em consideração que ele está conjuntamente a falar de Cabo Verde e da Guiné: a
imensidade dos morgadios; os caminhos impraticáveis; a falta de instrução e
educação; a miséria em que são criados os habitantes; a falta de povoações e o
facto de não se facilitar aos colonos estrangeiros o seu estabelecimento. Mas
Chelmicki ainda tem outras coisas para nos dizer, a indústria, o comércio, o
sistema defensivo e ainda mais.
Ao
contrário de outros autores, ele não amesquinha o labor indígena, dignifica-o,
veja-se como ele fala do artesanato, e com que entusiasmo:
“Quanto
à Guiné, nos estabelecimentos portugueses é impossível procurar vestígios de
indústria. Não podemos dizer o mesmo dos indígenas: denotam grande aptidão para
todos os ofícios mecânicos. Assim os Mandingas Mouros são muito engenhosos.
Fiam, tecem, e matizam panos de algodão, ainda que não com a mesma perfeição
dos das ilhas de Cabo Verde. São ferreiros, carpinteiros, sofríveis
serralheiros. Vi uma espada feita à imitação das nossas, que nada talvez
deixava a desejar. Cortam bem os couros e peles, dão-lhes cor, e imitam
perfeitamente a marroquim e cordovão. Fazem bolsas para caça, polvorinhos de
chifres, primorosamente cobertos com couro. Consertam células, fazem bolsas
como carteiras para arrecadar papéis, âmbar, ouro, coral, etc. Encontram-se não
menos hábeis ferreiros fazem estruturas para portas, armas de guerra, freios,
estribos, esporas, etc.”
Fala
também do azeite e vinho de palma, das operações de extração, refere a
existência de uma cerveja de milho, e mais adiante escreve: “Os Balantas
fabricam sal, fervendo água do mar em tachos de barro. Este sal é claro, mas
muito miúdo, pelo que apesar de haver o das ilhas de Cabo Verde, este é
preferido pelo gentio. Os Jalofos fazem também a tinta de anil, quase do mesmo
modo como em Cabo Verde. Apanham as folhas dos arbustos, antes da sua
fortificação, e só a quantidade necessária para tingir imediatamente os seus
panos, dos quais, como fica dito, são mui formosos e tão tintos que ficam
parecendo cetins”, citando André Alvares de Almada. Noutro lugar, voltará a
exaltar a panaria, deste modo:
“Os panos, tecidos e colchas atraem a admiração de todos os
viajantes, por bem-feitas, cores lindas e lindos lavores: porém, sobretudo,
pela maneira como são fabricados”. Descreve minuciosamente o modo de fiar, o
tipo de tear (peça única, com muitas camas, feito a obra de arte e o tear vai
para o fogo) e carateriza depois os panos: “Estes panos são de algodão, só ou
misturado com lã ou seda. Compõem-se de seis ou mais bandas de um pé de largura
sobre seis ou oito de comprimento: cozidas umas às outras pelas ourelas,
conforme a largura do pano que se quer ter”.
Referindo-se à organização militar e ao sistema defensivo, dá-nos
igualmente informações preciosas. “Numa parte da província, como em Guiné,
estão os nossos presídios cercados de hordas selvagens, e são expostos aos seus
insultos, ataques e diárias depredações e rapinas”. Fala do desgraçado estado
da Guiné, diz mesmo que presenciou os insultos com muita frequência, tanto dos
aliados da Europa como dos gentios da Guiné, e conta uma história que é
eloquente:
“No ano de 1836, entrou no porto de Bissau, a esquadrilha francesa
de Gorée com artilharia carregada e morrões acesos, exigindo certa quantia, que
o governador francês do Senegal quis extorquir do Sr. Caetano Nozolini,
negociante português estabelecido nesta praça. Este, suspeito de ter influído
para a morte de um capitão mercante francês, chamado Dumège, estava naquela
ocasião perante os tribunais de Lisboa, por exigência das mesmas autoridades
francesas, livrando-se desta acusação. A esquadrilha fundeou defronte da
fortaleza, ameaçando de romper o fogo, não sendo imediatamente pagos os 10 mil
francos em que o tribunal de Gorée condenou o Sr. Nozolini. Como, porém, o dito
senhor estava ausente, e o governador, ou aliás um negociante que interinamente
fazia as suas vezes por 800 mil reis por ano, e por isso não podia com a alma
mercantil combinar sentimentos mais nobres, em lugar de repelir agressão tão
nefanda, declarou aos piratas visto existirem ali os armazéns do Sr. Nazolini
podiam-se indemnizar com as suas mãos; o que não tardou. Oficiais e marinhagem
saltaram em terra, e carregaram para bordo couros, peles, marfim, arroz e o
mais que acharam. Esta carga foi à praça em Gorée, e depois pagas as despesas e
custas da justiça, algumas moedas que sobraram foram religiosamente
restituídas. Culpado decerto foi o Governo em não ter resistido; mas mesmo
ainda que fosse outro, a artilharia quase toda até sem reparos, e uns 60
pretos, vulgarmente chamados soldados, descalços e nus, com armas que em maior
parte não podem mandar fogo, constituíam a guarnição. No ano de 1839, o mesmo
Sr. Nozolini roubou uma corveta inglesa da Serra Leoa, uma escuna fundeada no
porto da Ilha de Bolama, bem como 200 escravos que lá trabalhavam na roça.
Quando voltará o Marquês de Pombal para reprimir semelhantes ultrajes!”
Chelmicki vai fazendo súmulas ou pontos de situação, é
irresistível o que ele escreve depois de uma descrição pormenorizada a ilhas do
arquipélago dos Bijagós em que há presença portuguesa:
“Eis aqui o que nos resta depois de 400 anos de posse; miseráveis
presídios, nenhuma indústria, falta de comércio e de cultura, um deplorável
estado de ruína. Tudo, tanto nas Ciências e Artes, como nas administrações, não
tendo melhoras, não tendo progressos, ficará estacionário, em breve é
retrógrado. Portugal, com os olhos fitos no novo hemisfério com a riqueza das
minas, não se importou com as possessões africanas. Aquelas estão perdidas para
sempre, mas com estas que ainda existem na posse, Portugal, em poucos anos, com
boa administração, tornará a ganhar o seu esplendor. Consideremos as possessões
da Guiné como colónias comerciais e agrícolas, isto é, de cultura de plantas
exóticas. Elas estão em muito melhor situação que as inglesas e francesas.
Cinco grandes rios, como o de Casamansa, S. Domingos (Cacheu), Geba, Rio Grande
(Buba) e Nunez (Guiné Conacri), navegáveis muito para o interior, oferecem
fáceis meios de navegação. Ocupando as embocaduras destes rios com pequenos
fortes, cuja construção muito pouco custará ao Governo, em razão da sua
utilidade, dilataremos a fronteira marítima desde o Rio de S. Pedro até ao Cabo
da Verga, e proibindo de facto a exportação de escravos de toda esta costa, os
habitantes voltarão às pacíficas ocupações de agricultura, retomarão o nobre e
perdido caráter da humanidade; penetrarão as Artes, indústria e comércio nestes
selvagens mas férteis países, e Portugal senhor de todos estes rios conservará
facilmente o monopólio desta nova esfera de atividade.
As ilhas do arquipélago adjacente dos Bijagós, habitadas hoje por
uns ferozes negros, em breve, de facto, serão sujeitas à Coroa Portuguesa que,
assim, antes de 100 anos, concluída esta grande obra de civilização, contará
aqui mais de um milhão de súbditos.
Os terrenos obtêm-se com facilidade dos indígenas: estes devem ser
repartidos em grandes sesmarias, a proprietários ricos, zelosos do bem público
e inteligentes nos seus interesses. Mandem-se vir colonos da Holanda, Suíça e
Alemanha, de onde eles trarão a indústria e civilização, e aumentarão assim a
população branca sem diminuirmos a do Reino. Favorecendo o Governo os
açorianos, eles hão de preferir estabelecer-se aqui, e com trabalho, sabendo
que o ganho é deles, enriquecer-se em pouco, do que servirem de escravos
brancos aos brasileiros. Os degredados formarão debaixo da polícia colónias
agrícolas militares; e assim após o acréscimo da agricultura e comércio,
teremos força real”.
Ganha-se a consciência de
que o distinto oficial recebera a incumbência de tudo anotar e tudo perguntar,
desde os usos e costumes, a natureza das gentes, onde e como se produzia, o
sistema defensivo, a Saúde, a Educação, não se fica com a convicção de que foi
a todos os lugares, mas vemo-lo altamente informado e conclui com raro
entusiasmo, propondo a afluência de gentes, havia que contrariar o estado
deplorável em que se encontrava a Guiné. Propôs pequenos fortes nas embocaduras
dos rios; considerou que a Guiné Portuguesa deveria ser uma colónia de
exportação de produções agrícolas como de café, arroz, anil, algodão, açúcar. Um
comércio ativo em troca dos géneros do país, e enuncia o que se deve exportar:
goma, marfim, azeite de palma, tartaruga, ouro, peles, couros. O
desenvolvimento iria repousar na agricultura, Chelmicki lembra a superior
qualidade da madeira que devia ser destinada para a construção naval e de
guerra, bem como para o comércio.
A carta da Guiné Portuguesa, 1843
O estado atual da Guiné é
como na descoberta, ou pior ainda, pois sem nenhuns haver melhoramentos,
vestígios de mão europeia, há nocivos costumes, usos e superstições
inveteradas, obstáculos a qualquer inovação. Tudo está por fazer, e como tudo é
possível consegui-lo com os rendimentos da Província, ficando para o futuro os
lucros à metrópole.
Assim da imediata
precisão é ocupar o Ilhéu dos Mosquitos na foz do Casamansa, como obter a cessão
de Sedhiou, ponto que no mesmo rio ocuparam os franceses, violando todos os
tratados inclusive o de 1814, onde claramente se considera este rio de
Casamansa como pertencente unicamente à Coroa Portuguesa. Simultaneamente deve
ocupar-se a embocadura do Rio Grande e Rio Nunez, formar um estabelecimento na
Bolama e Ilha das Galinhas, e pôr uma guarnição nos ilhéus do Rei e de Bandim”.
Lembra a quem o está a ler que no Rio Grande de Buba e Rio Nunez há restos de
ruínas de antigos mas abandonados estabelecimentos, diz haver grande comércio
de ouro em pó na Guiné, comenta dizeres de viajantes que referem haver muito
ouro no reino de Geba (o que se demonstrou ser falso). E assim termina:
“Eis a descrição
geográfica da província das ilhas de Cabo Verde e costa da Guiné, no desgraçado
estado em que está atualmente. Com muitíssimo talento, conhecimento de causa e
profundeza, tratou este mesmo objeto o Exm.º Visconde de Sá da Bandeira, no seu
belo relatório do Ministério do Ultramar de 19 de fevereiro de 1836. Oxalá que
o sábio Congresso Legislativo atenda como convém. Limitamos aqui a descrição da
província das ilhas de Cabo Verde e Guiné; embora sentimos com demasia a sua
insuficiência, e quanto restava ainda a dizer a penas mais hábeis que juntassem
mais perfeito conhecimento da localidade”.
É um documento,
insista-se, do maior interesse, procurei edições recentes da obra e só
encontrei editores estrangeiros, é lastimável a falta de edição portuguesa.
Chelmicki regista os efetivos militares, propõe a criação para a Guiné de um
primeiro batalhão de caçadores de África que se repartiria por Bissau, Cacheu,
Geba, Farim, Fá, Bolama, Ilha das Galinhas, deu-nos a saber o estado deplorável
em que estavam os edifícios religiosos da Guiné em S. José de Bissau, a Igreja
de Nossa Senhora da Graça em Geba, a Igreja de Nossa Senhora do Nascimento em
Cacheu, a Igreja de Nossa Senhora da Graça em Farim e a Igreja de Nossa Senhora
da Luz em Ziguinchor, tudo a pedir reparos. Ao tempo em que Chelmicki viajou já
só havia lembranças de conventos e hospícios, tudo se perdera. “O convento de
Bissau era mais pequeno que o de Cacheu, sempre conservava porém pelo menos
três ou quase religiosos; tinha uma cerca com muitas laranjeiras e uma fonte
que servia para os padres lavarem, cozinharem e beberem”. Diz claramente não
haver instrução pública na Guiné. Diz que a costa da Guiné é doentia e
muitíssimo prejudicial aos europeus. Alude ao temível vento Sirocco ou
Harmattan. O embaciado quase opaco, um pó fino que cobre o ar, a secura da
pele, dos beiços e do nariz, como se fossem expostos ao gelo, o encorneamento
de livros e papéis, o encolher-se das juntas da madeira, tudo isso são sinais
precursores deste terrível filho dos desertos”. Como se disse, descreveu fauna,
botânica, geologia e mineralogia. Não é possível avaliar o número de
habitantes. O seu quadro das etnias reproduz aquele que foi utilizado por
Francisco Azevedo Coelho em 1669: Jalofos, Felupes, Banhuns, Balantas,
Cassangas, Brames ou Papéis, Fulas, Nalus e Mandingas. Verdadeiramente sonhador,
como se viu atrás, apela a que se mandem vir colonos da Holanda, Suíça e
Alemanha e também dos Açores, todos os degredados iriam para a agricultura….
Curiosamente quando faz a história da Guiné não fala dos Tangomaus que tanto
importância tiveram, durante séculos, no comércio de rios como o Gâmbia e o
Senegal.
E é tudo, só resta dizer que é um livro de história que interessa a três países, Portugal, Cabo Verde e Guiné-Bissau, é muito estranho que este precioso documento de consulta só esteja acessível num número reduzido de bibliotecas.
Mário Beja Santos
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