A dissertação de
Mestrado da Maria da Graça A. Mateus Ventura teve exatamente o título da
presente obra, Edições Colibri, 1999. Como escreve no prefácio o professor
António Borges Coelho, “Os navios negreiros de que se fala neste texto não
vinham ainda de Angola, mas do Cacheu, da Mina, do Rio dos Escravos, do Níger e
principalmente do grande entreposto e armazém que era Cabo Verde. No novo
continente, os escravos negros afeiçoaram a terra e seguiram nela o preceito
bíblico: crescei e multiplicai-vos. Mas os seus filhos já nasciam escravos. Na
América Espanhola esperava-os o trabalho brutal nas minas de ouro e de prata.
Os grandes financeiros, genoveses e principalmente portugueses, estiveram
envolvidos no negócio, mas eram os portugueses que dominavam as fontes de
abastecimento e rapidamente o principal do trato firmou-se nas suas mãos. O
contrato renderia à Coroa grossas somas e constituiria um dos mais lucrativos
negócios privados desde o tempo do infante D. Henrique. A autora do presente
trabalho identificou e acompanhou a trajetória de alguns destes negreiros
portugueses como Gaspar de Torres e principalmente Manuel Caldeira, argentário
cristão-novo que se tornou fidalgo da casa del-rei. O próprio Fernando de
Noronha, cidadão de Lisboa no tempo de D. João II, cristão-novo, contratador do
pau do brasil em 1502, aparece ligado ao trato dos escravos na costa da Guiné.
Aliás, o contrato com o rei D. Manuel concedia-lhe não só o exclusivo da
importação do pau do brasil como o autorizava a exportar índios escravos”. A
autora vasculhou na Casa da Contratação de Sevilha importante documentação
destes contratos e licenças onde sobressaem negreiros portugueses, como ela
escreve, “É um mundo onde pululam agentes, feitores, onde se constituem
companhias efémeras, se retêm ou desembargam avultadas quantias, onde, em
última instância, se digladiam ou complementar interesses públicos ou
interesses privados”.
Os denominados
Arquivo-Geral de Simancas e o Arquivo-Geral das Índias conservam documentação
referente a Manuel Caldeira, os irmãos Torres têm contratos assinados em
Antuérpia, e há no Arquivo Nacional Torre do Tombo alguns documentos
complementares dos processos em Simancas. A autora dá-nos um quadro da
organização do trato ao regime do comércio e ganha destaque o natural domínio
dos portugueses como fornecedores ou contratantes, um universo onde se
arriscavam pequenas fortunas num negócio de humana mercadoria, lida-se com o
dinheiro dos outros, apura-se a presença de muitos judaizantes e
cristãos-novos. Os memoriais permitem saber quais as áreas de exploração em
África. No memorial que o mercador Jerónimo de Herrera apresentou à Coroa
espanhola sobre a compra de escravos, em 1568, esclarece-se quais as principais
regiões abastecedoras e fala concretamente em Brames, Beafadas, Nalus,
Berberes, Cassangas e Jalofos. André Alvares de Almada no Tratado Breves dos
Rios da Guiné e Cabo Verde descreve em 1594 as regiões onde se encontram
estes povos. Recorde-se que durante todo o século XVI, Cabo Verde, por
Santiago, foi a feitoria mais importante a nível do fornecimento de
contingentes de escravos, só virá a ser superada por S. Tomé. Enquanto Cabo
Verde controlava os rios da Guiné, São Tomé iria absorver os escravos dos
reinos que povoavam a região do Níger. Angola só no século XVII se tornaria o
principal centro negreiro. Convém também não esquecer o arrendamento do trato
da Guiné a Fernão Gomes que ficou obrigado a explorar a costa ocidental
africana. Os contratos de arrendamento dependiam da Casa da Índia, mas havia
quem contratasse diretamente com Castela, caso de Manuel Caldeira. Comércio
lucrativo, mas com todos os riscos inerentes à pirataria, ao corso e aos
naufrágios, isto para já não falar no contrabando e nos negócios particulares
dos feitores. A autora descreve os negócios dos irmãos Torres, influentes
negreiros portugueses durante a União Ibérica, foram os principais fornecedores
da província de Honduras.
Maqueta alusiva ao transporte de escravos e mercadorias rentáveis no comércio negreiro, modelo do Museu Nacional da História Americana, Smithsonian Institution |
A autora dá-nos
o quadro das viagens, a natureza das cargas, as operações da compra e do
transporte, as fortunas destes mercadores, o português Gaspar de Torres era de
longe o mais poderoso. E dá-nos o estudo de Manuel Caldeira, sobre o qual há
imensa documentação, foi-lhe possível compor a biografia, os parentescos, por
onde andou, o que contratou, até o seu testamento é altamente esclarecedor.
Manuel Caldeira não foi um mercador sedentário, viajou de Lisboa à Serra Leoa,
a Azamor, à Flandres, e andou por terras de Castela. Caldeira integrava em 1556
a lista de banqueiros credores de Filipe II, era cavaleiro da Casa Real, e
cavaleiro e comendador da Ordem de Cristo. Seria cristão-novo, a autora
classifica-o assim: “Homem de muito comércio e negócio, abonado para todas as
finanças, envolto em numerosos pleitos, autor de grandes embaraços, traficante
de coisas indevidas, eis um retrato possível deste negreiro português, de cujo
percurso nos aproximámos, afigura-se mercador rico e caudaloso além de
excelente gestor de influências nas esferas de poder das cortes ibéricas. O seu
testamento dá exatamente conta das quantias que ele deixa para descanso da sua
alma. E cuidadoso o estabelecimento de redes sociais: “Interioriza os valores
do seu tempo, orientado pelo valor do dinheiro. Casa o primogénito com a filha
de um embaixador castelhano e institui um morgado. Garante a continuidade do
seu nome e a inalienabilidade de parte significativa dos seus bens. Insiste no
casamento como forma de consolidar laços de poder. Casara com Guiomar, filha de
um sócio, ligou os Roiz aos Caldeira. Casa André com Catarina, ligando os
Caldeira também aos Hurtado de Mendonça. Duas alianças, dois poderes – o
dinheiro e a influência política. Para Beatriz, filha mais velha, quer
casamento rico. Di-lo no testamento. Parece tê-lo conseguido, se foi ela a
esposa de Luís Mendes de Vasconcelos, célebre pelos cargos na Índia e pelos
textos que deixou. Enfureceu-se com os filhos desobedientes pelo facto de não
lhe terem dado ouvidos sobre o seu matrimónio. Só lhes perdoa se forem pobres,
agora que não sabe deles lá pela Índia.
O comércio da pimenta levou-o à Índia, o trato de escravos levá-lo-ia à América. Com a pimenta e a armação de navios, ligou-se aos mercadores e banqueiros portugueses e estrangeiros que prosperavam em Portugal. Com os escravos negros de Cabo Verde e São Tomé, gozando já dos favores de D. João III, liga-se a Castela. Feitor do rei de Portugal, tesoureiro da Sereníssima Princesa de Portugal, Manuel Caldeira sintetiza a atitude dos mercadores portugueses que, alheios a questões de nacionalidade, viam nos negócios com Castela e as suas Índias um prometedor espaço de prosperidade”. A autora anexa documentos importantes, caso da relação da partida de escravos. Obra com muito significado para quem estuda o tráfico negreiro, particularmente o que se exerceu na região da Guiné e Cabo Verde, no século XVI.
Imagem
de tráfico negreiro
Pintura maneirista dos finais do século XVI, Igreja de
São Sebastião de Lagos, vejam-se as embarcações de um porto algarvio que esteve
ligado ao tráfico negreiro
Mário Beja Santos
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