quinta-feira, 24 de março de 2022

24 de Março de 2022.

 


 

24 de Março de 2022

 

Li no jornal que a democracia

ultrapassa hoje a ditadura por um dia

17 500 dias de liberdade

contra 17 499 de exiguidade

mais hora menos hora, claro

pois é sempre difícil saber com precisão

o momento exacto em que estas trocas se dão

aquele minuto triste em que o garrote aperta   

aquele instante decisivo em que o povo dele se liberta

 

Mas deixemos as minúcias

li no jornal e nos jornais não há censura nem travão

se está errado, outros há para publicarem a correcção

lá está, é uma das vantagens dos últimos 17 500 dias

em relação aos 17 499 onde não havia tais ousadias

 

“Que diferença faz um dia, 24 pequenas horas”

reza a popular cantora enquanto descreve as melhoras

não parece muito tempo, por mais que a ele te consagres

e por boa vontade que haja, os cravos não fazem milagres

era um país pobrezito

não enriqueceu em instantes

e se tinha trastes a mandar

tem também hoje alguns tratantes

o povo, esse, que vivia de cerviz dobrada

não mudou de posição de uma forma acelerada

a fatal inércia dos corpos

como se aprende na escola

é carro que não arranca

é avião que não descola

 

Este é, porém, um ponto de vista oblíquo

no mínimo, desajustado

que troca os pés assentes no chão

pelo sonho de um cavalo-alado

poder despachar um governo apenas com boletins de voto

escrutinados nas cidades e em qualquer lugar remoto

parece pouco mas é muito: um pequeno papel para cada um

e lá vão os incompetentes

tiros: zero; sangue: nenhum

 

O voto, sublinhe-se, não é suficiente condição  

pois a liberdade diverge da tirania da multidão

é aquela velha história que nunca é de mais contar

em que dois lobos e um cordeiro elegem o menu do jantar

respeitar e proteger quem discorda da maioria

ainda que de um para mil seja o grau da assimetria

é o que separa inteiramente o joio do puro trigo

a democracia semeada por Deus do vil simulacro do Testigo

 

Sabemos que os homens de Abril não estavam de acordo em tudo

alguns até, como é notório, preferiam a planta do Chifrudo

mas se há facto que de tão óbvio ainda hoje perdura

é que nesse dia se extirpou do ventre pátrio a ditadura

eleições regulares e limpas?

direitos do indivíduo e da minoria?

vieram depois, acalmada a inevitável vozearia

o despotismo de décadas, esse, morreu ali, numa só jornada

encharcado em nervoso suor

mostrando da liberdade os seus umbrais

abrindo as portas de um sonho maior

foi pouco? Em 24 pequenas horas difícil seria fazer mais

foi imperfeito? Em 24 pequenas horas difícil seria fazer melhor

 

Que não se use então o que falta como arma de arremesso

pois Abril não foi o fim, foi apenas um começo

 

E a todos os que confundem prosperidade com decência

(mesmo que à boa-fé, num assomo de inocência)

corte-se sem hesitações o argumento bem cerce

pois Abril não foi telhado, foi apenas alicerce

 

Sérgio Barreto Costa

 

 

 




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