Podia
Ter Sido Pior,
de José Cutileiro
Gostaria, antes de mais, de agradecer
a Myriam Sochack o convite para estar aqui hoje, desde logo porque é uma honra e
um gosto partilhar este espaço com o Senhor Ministro da Defesa, com o meu velho
amigo Pedro Mexia e com a Joana Fisher. Mas sobretudo porque, em dias tão
tumultuosos como têm sido estes, este convite deu-me horas e horas de imenso
prazer ao fazer-me ler textos que parecem ter sido escritos noutro tempo e numa
época tão distante, ainda que muitos deles surpreendam pela sua actualidade e
pela lucidez cortante com que ela é dissecada.
Quando o rei Eduardo VII morreu,
alguém disse uma frase que era mais ou menos esta: «parece que as bóias que
guiavam as nossas existências foram subitamente arrancadas e arrastadas na
distância, perdendo-se pelo mar adentro».
Nas
últimas semanas, a nossa sensação é um pouco essa, é a de que, em breves dias,
o tempo passou a dividir-se inexoravelmente e irreversivelmente entre o mundo de ontem, na expressão de Stefan
Zweig, um mundo que nunca mais teremos, e um mundo de hoje e de amanhã, que
ainda não sabemos qual seja.
Daí
que seja um bálsamo e um privilégio podermos mergulhar, ainda que por breves
instantes, naquele que foi o nosso mundo
de ontem, onde, num mar de incertezas, tínhamos, ainda assim, algumas bóias
ou sinais orientadores – e pessoas como o embaixador José Cutileiro eram
justamente umas dessa âncoras, uma dessas tábuas de Medusa, que, pela sua
sabedoria, nos davam um amparo, uma segurança e uma serenidade de que na altura
não nos apercebemos e a que só agora damos o devido valor.
O
mundo de Cutileiro era o da civilização e o da civilidade e esse mundo, no
passado dia 24 de Fevereiro, talvez tenha desaparecido para sempre. Cabe-nos a
nós batalhar para que tal não suceda e por isso nos reunimos hoje aqui, num
local que, também ele, é expoente ou baluarte desse mundo e desse tempo
pretéritos – os da civilidade e da civilização.
Tal
não significa que esse mundo de ontem, o mundo de José Cutileiro e dos da sua geração,
fosse perfeito ou imune à tragédia. Logo na apresentação do livro, a Myriam
refere algo que, desde muito novo, esteve presente na vida e no espírito do seu
marido, aquilo que um amigo seu designou por o horror subjacente da vida.
Algumas
circunstâncias pessoais e familiares terão certamente contribuído para que José
Cutileiro tivesse desde jovem a percepção clara desse horror existencial, quase
metafísico, conradiano, mas creio que tal consciência decorreu também da
extraordinária e lucidíssima capacidade que José Cutileiro tinha de intuir e
observar aquilo a que mais tarde chamou «o mundo dos outros». De resto, num
texto aqui publicado, evocação de Vitor Cunha Rego, diz que ele era das pessoas
que conhecera «mais conscientes do horror subjacente à vida» e, não tendo
trilhado os passos metafísicos nem as angústias religiosas do seu amigo,
Cutileiro teve também presente que a consciência do horror existencial não deveria
levar ao niilismo ou ao relativismo amoral mas, precisamente o contrário, a uma
maior exigência de rigor ético, característica que apontou a Cunha Rego e que,
por certo, procurou cultivar para si próprio.
Um
dos textos mais espantosos deste livro chama-se «Um português no Afeganistão»,
e foi publicado em 1953, no Diário Popular,
por um jovem de uns 17 anos, por aí. O que é absolutamente assombroso é que já
então o jovem repórter tinha, por um lado, uma invulgar capacidade de observar
e de captar tudo o que o rodeava e, por outro lado, uma prosa límpida, contida,
neoclássica. Eu aconselho ou peço mesmo às pessoas que comecem a leitura do
livro por aí, por duas razões: a primeira, para ficarem maravilhadas com a
precocidade do autor e a segunda para perceberem que aquele estilo britânico e
sóbrio de ver e de dizer as coisas, que celebrizou Cutileiro, não surgiu apenas
da sua ida para Inglaterra fazer o doutoramento – era algo que estava inscrito
desde muito, muito cedo nos genes do futuro antropólogo e embaixador.
Como
tudo quanto sucede na vida, até no horror há ventura e, de facto, se houve
circunstância familiares e pessoais trágicas na juventude de José Cutileiro,
tais circunstâncias também lhe deram algo que foi singularíssimo e
absolutamente único nos intelectuais da sua geração: ao contrário daqueles – e
mesmo assim poucos – que só conheceram o estrangeiro quando foram fazer o
doutoramento fora, José Cutileiro teve, digamos assim, um cosmopolitismo muito precoce e, mais ainda, um cosmopolitismo extra-europeu, feito na Índia e no Afeganistão,
lugares então muito mais exóticos do que hoje, no nosso tempo dos voos low cost, e com laivos coloniais que em
larga medida já se perderam.
A
base de que partiu era, também ela, algo exótica, quiçá com laivos coloniais…,
o Alentejo dos anos 30. Portanto, antes sequer de se matricular no Colégio
Valsassina, em Lisboa, e de andar incerto entre Belas-Artes e Medicina, José
Pires Cutileiro já havia feito a síntese entre Évora e Cabul que, no fundo,
seria a sua marca de vida. Uma vida que foi, por um lado, sumamente distante das
misérias do quotidiano pátrio, mas, por outro, amorosamente ligada às suas
raízes.
É
muito curioso, comovente até, que, mais ou menos na época em que estava na
redacção da Almanaque a fustigar
algumas idiossincrasias nacionais, com o novo-riquismo e o marialvismo à
cabeça, José Cutileiro tenha publicado um livro de poemas, O Amor Burguês, de 1959, onde, além de estrofes dedicadas aos
amigos – e a amizade foi para ele um valor perene, talvez o que mais cultivou e
acarinhou em vida –, além desses testemunhos de amizade, dizia, produziu aquele
que é, quanto a mim, um dos mais belos hinos patrióticos da segunda metade do
século XX português, um poema sem título
que diz assim:
Habito o meu país. As
aves e os rios.
Habito-o com raízes que
me prendem à terra
Habito as casas brancas
pousadas na colina
E a cidade quente aonde a
tarde desce.
Aqui sofro de pé. Aqui
estive sozinho
No dia em que cheguei, no
dia em que parti
Aqui me lembrarás depois
quando morrer
Aqui te esquecerás também
de que morri.
Por isso quando o vento
do largo me arrefece
E nos ossos eu sinto os
países distantes
As pernas se recusam a
partir nos navios
Que demandam o mundo do poente
ao levante.
Sou de aqui. Como as
pedras. Como o ar que respiro.
−A velha acácia seca
novamente floriu –
Se me levassem hoje desta
paisagem triste
D. José, a cavalo, ia
afogar-se no rio.
Foi
devido a esta mescla entre um cosmopolitismo precoce e exótico e uma raiz rural
nunca renegada que José Cutileiro pôde amar o seu país de uma forma muito mais
sadia e «não tóxica», como agora se diz, do que os outros intelectuais
portugueses do seu tempo, que começaram por julgar que todos os males da pátria
se deviam à ditadura e que acreditavam que, uma vez instaurada a democracia,
tudo se resolveria, numa cornucópia de liberdade, justiça e desenvolvimento.
Após o 25 de Abril, e como essa ilusão tardasse em concretizar-se, esses
intelectuais concluíram que Portugal, fosse qual fosse o regime, tinha um «problema»,
e que esse problema se chamava Portugal, como um todo, de há séculos e de alto
abaixo, com uma fatalidade histórica ou destino inescapável, sem nunca terem
tido a prudência e sobretudo a modéstia de se interrogarem se os males estavam
no país ou neles próprios. È que foram eles, tinham sido eles, que, num
primeiro tempo, empo colocaram demasiadas expectativas na suas capacidades de
fazerem uma terra melhor e, depois, num segundo momento, acabaram por usar
Portugal e os portugueses como bode expiatório para frustrações sofridas nos
planos íntimos das suas vidas.
Para
muitos desses intelectuais – e não vou citar nomes – o berço em que nasceram ou
a frequência de uma universidade estrangeira dava-lhes, ipso facto, uma espécie de direito natural e incontestável ao
reconhecimento fervoroso dos seus concidadãos e também um direito natural aos
lugares e às posições que garantissem o melhor acesso a prestígio e estatuto
social, além de rendimentos condizentes com um estilo de vida dispendioso e
caro, mas ajustado à superioridade intelectual de que gozavam, ou julgavam
gozar. Talvez não tivessem nem nunca tenham tido grandes expectativas quanto ao
futuro da pátria, mas tinham grandes, enormes, expectativas quanto ao lugar a
que entendiam ter direito nessa pátria, fosse em ditadura, fosse em democracia.
Com o passar dos anos, a massificação do ensino e outras transformações sociais
ocorridas com o 25 de Abril – e que foram, note-se, democratizadoras,
igualitárias e justas – goraram os planos grandiosos que muitos intelectuais da
geração de Cutileiro tinham para si próprios, o que, naturalmente, fez crescer
neles uma imensa frustração e, logo, aumentou o seu desdém por Portugal, por
aquilo que Portugal não lhes tinha dado.
José
Cutileiro teve a sorte e o talento para se afastar dessa tendência e de se
colocar numa posição privilegiada: «vista de longe a Pátria é cor-de-rosa e
macia; vista de perto, ou melhor de dentro, surgem cores mais sombrias e
asperezas que a saudade disfarçara», escreveu em Março de 1973. Nunca teve, de
resto, ilusões sobre o povo a que pertencia, e guardou até ao fim uma frase que
o seu pai lhe dissera: «Nós não somos descendentes dos que foram à Índia, somos
descendentes dos que cá ficaram».
Por
isso, sem ilusões nem caprichos, manteve-se à margem do movimento que vitimou
muita da intelectualidade portuguesa da segunda metade do século XX, ainda que
convivesse de perto com muitos dos seus actores e protagonistas, e ainda que
tivesse plena consciência das fragilidades lusitanas («nós somos um país
pequeno e somos um país pobre», escreveu num dos seus textos mais famosos, os
«Superportugueses», saído em O Tempo e o
Modo). Dessa consciência, porém, não resultou azedume nem amargura, mas
ternura, e, além dela, moderação, ponderação, sentido de equilíbrio, a
sabedoria de quem, em vez de observar o mundo com o som e a fúria do ranger de
dentes, prefere contemplá-lo com um fleumático e camoniano mover de olhos brando e piedoso. Assim, creio, José Cutileiro pôde
ser – e penso que esse é o traço e o legado maior da sua vida – um homem feliz,
sumamente feliz, capaz de manter um convívio sadio com gente de várias origens
e quadrantes, capaz de amar o seu país na justa medida, tendo consciência dos
seus defeitos e problemas, mas também a noção clara das suas virtudes e muitas coisas
boas.
Estudei
há pouco a revista Almanaque e os
seus protagonistas, num livro que conto publicar ainda este ano, e o que pude
concluir é que, de todos eles – Alexandre O’Neill, Cardoso Pires, Vasco Pulido
Valente, Luís Sttau Monteiro –, José Cutileiro foi o que envelheceu melhor,
mais sereno e mais realizado, mais reconciliado com os outros e com o seu país,
onde, creio, gostaria de ter vivido nos últimos anos.
A felicidade que teve na vida
irradiava do gozo de pequenos ou grandes prazeres hedonistas, da comida aos
vinhos, do culto de uma certa elegância e pose, de uma panache tímida, jamais arrogante, da arte da conversa, das
micro-histórias que ia ouvindo aqui e ali, desde o Alentejo aos corredores da
diplomacia. Essa felicidade ficava patente no facto de José Cutileiro nunca ter
uma atitude inflamada no julgamento dos outros ou das situações, nunca ser
cáustico ou amargo na apreciação dos seus semelhantes, ser capaz de escrever
dezenas e dezenas de textos, de que grande parte é aqui reunida, mas em nenhum
deles ter o timbre da acidez e da cólera. Talvez fosse o snobe mais snobe de
todos, aquele que contempla os próprios snobes de uma forma desprendida e
altiva, com a merecida sprezzatura. Ou
talvez fosse um pessimista feliz, um céptico de si mesmo, que sabia ter uma
invulgar cultura e uma rara inteligência das coisas, mas que tinha também o bom
senso e o bom gosto de perceber que não devia agredir ou humilhar os outros com
a sua indiscutível superioridade. Com infinda sabedoria, nunca teve a ambição
de mudar o mundo, mas apenas de melhorá-lo. Por isso, apoiou com entusiasmo a
revolução de 1974, mas cedo percebeu os riscos dos extremismos e de novas
ditaduras – e recomendo um texto notável, até pela sua coragem cívica e moral,
saído no Diário de Notícias logo em
Outubro de 1974. Anos depois, num texto breve, não constante desta antologia, teve
outra frase certeira – «o país mais parecido com Portugal depois do 25 de Abril
é o Portugal antes do 25 de Abril» – e, como Tocqueville, preferia realçara as
continuidades às rupturas, mesmo as revolucionárias.
«Síntese
dialéctica», é o nome de um dos textos deste livro, tomando uma frase de Gérard
Castello Lopes que dizia que «Luanda era a síntese dialéctica entre Fátima e a
Costa da Caparica». José Cutileiro, na verdade, sempre foi um homem de
sínteses, não de antíteses, e além da síntese entre Évora e Cabul, ou entre
Reguengos de Monsaraz e Oxford, ele foi capaz de, a seu modo, fazer a síntese
perfeita entre as suas convicções de esquerda, que sempre afirmou, e uma visão
conservadora do mundo. Era essa visão que o levava até a considerar, num
domínio que estudou bem, o dos ricos e pobres no Alentejo, que, contanto que
não fossem cometidos abusos ou perpetuadas injustiças extremas, havia uma
espécie de equilíbrio homeostático nas distinções e nas hierarquias de classe.
Sobre
o 25 de Abril, lembrava o desabafo de uma costureira, mulher do motorista de
uns amigos seus, ricos e espoliados na revolução: «para que é que eles estão a
mandar embora os ricos? Para pobres já cá bastávamos nós!». O embaixador
lamentava, aliás, que e, cito, que em Portugal os ricos tivessem sempre sido
poucos, e pouco ricos. Noutra ocasião, escreveu que a sua experiência de vida,
em particular nos Balcãs, lhe ensinara que, na esmagadora maioria das vezes,
«os pobres são piores do que os ricos e as bases piores do que as cúpulas». Neste
livro, aliás, há um texto de 2008 a denunciar a «caça aos ricos» e outro, de
2007, que é um primor de incorrecção política, a propósito dos pedidos de
perdão pós-coloniais. Numa conversa que tivera com Antonio Tabucchi, em que
este lhe perguntara se o Ocidente deveria pedir desculpas aos africanos pela
escravatura, Cutileiro respondeu: «talvez fizessem melhor em pedir desculpa aos
pretos da África ocidental por os seus antepassados não terem sido trazidos
também».
As
sínteses que José Cutileiro era capaz de produzir resultavam daquilo que a sua
mulher, Myriam Sochacki, anotou logo nas primeiras linhas da apresentação desta
obra, quando diz que ele «possuía a arte e o requinte de não se levar muito a
sério».
Dificilmente
se poderia escolher, aliás, melhor título do que este, Podia Ter Sido Pior, que espelha bem uma atitude de vida presente
em muitos dos textos desta frondosa antologia. Uma atitude que, de certo modo,
faz a síntese entre o pessimismo e o optimismo, superando-os. José Cutileiro
não era nem um pessimista derrotado nem um optimista utópico. A sua visão do
mundo seria, quando muito, melancólica, britânica, fleumática, talvez desgastada,
talvez resignada perante as fraquezas alheias. Era, sobretudo, mais complacente
para quem os pequenos e os marginais do que em relação aos poderosos, mas
tolerante para com todos. Uma vez, definiu um professor de Oxford, John Kennedy
Campbell, «um homem sábio com uma visão céptica do mundo e sentido de humor a
condizer». É quase um autorretrato.
Além
de conciliar o Alentejo com o mundo, os ricos com os pobres, as direitas e as
esquerdas, o optimismo com o pessimismo, José Cutileiro foi também capaz de
fazer uma outra síntese mais subtil, entre o infinitamente grande e o
infinitamente pequeno. O seu horizonte intelectual começou por ser o de Vila
Velha, onde fez o trabalho de campo para o doutoramento (e onde regressou para
novas pesquisas no tempo da Reforma Agrária), mas com o tempo e por dever de
diplomata o seu horizonte foi-se alargando até abarcar o mundo inteiro, que
escrutinou em dezenas ou centenas de textos, a maioria dos quais aqui reunidos.
O mais curioso de tudo – e por isso falo do infinitamente grande e do
infinitamente pequeno – é que José Cutileiro era capaz de observar os Balcãs ou
as reuniões magnas da NATO com o ponto de vista de um camponês de Reguengos, e
não o digo por mera boutade: em
muitos dos textos aqui presentes, há episódios e petites histoires, em que a sabedoria de analfabetos do campo e os
seus ditos espontâneos são convocados para ilustrar ou explicar grandes
arranjos da política internacional ou do andamento do mundo. «Adeus, parabéns,
obrigado e desculpe», era o mantra com que uma mulher a dias da sua mãe se
despedia quando saía do trabalho e, em dois textos deste livro, com imensa
graça, é assim que Cutileiro descreve e sintetiza a política externa
portuguesa: «Adeus, parabéns, obrigado e desculpe»
Além
do humor e da cultura, os seus escritos têm também uma característica singular,
muito rara, que eu pomposamente poderia definir como uma sonoridade dialogal,
querendo no fundo dizer que o seu estilo é lendário e cativante porque José Cutileiro
escrevia como se estivesse a conversar connosco, do que resulta que lê-lo é
estar a ouvi-lo, aqui presente, no Grémio Literário ou noutro lugar. Sempre com
a sua imensa tolerância, a qual, neste livro, só parece não ser estendida aos
ditadores, claro, e a três classes de pessoas que sempre o incomodaram, como
escreveu no Diário de Lisboa em 1973:
os escuteiros, os esperantistas e os vegetarianos. De caminho, uma ou outra
farpa, como a hilariante definição da Suécia como «a sogra moral do mundo», mas
nada de muito agreste.
Também
no Diário de Lisboa, e nesse ano de
1973, publicou uma crónica intitulada «Obituários» em que lamentava a sua
ausência na imprensa portuguesa, ao menos na forma, no estilo e na substância
dos jornais ingleses. Depois de uma primeira experiência com Kennedy, nas
páginas de O Tempo e o Modo em 1963,
passou, anos depois, a assinar semanalmente os obituários do Expresso, compilados neste volume. O mais curioso é que, em 1973, Cutileiro
escrevia «talvez o Expresso pudesse criar uma secção de obituários…», um dos
muitos vaticínios que faz neste livro e que vieram a revelar-se acertados.
Quando lemos as crónicas de «O Mundo dos Outros», por vezes ficamos arrepiados
com o seu dom profético. Leio uma publicada em 2015 na revista XXI, da Fundação Francisco Manuel dos
Santos, chamada «A sombra de Putin», cuja primeira frase é «O czar russo é hoje
a principal ameaça à paz. Os países da OTAN mostram estar atentos, mas ninguém
parece querer fazer-lhe frente».
Depois,
dizia: «hoje, perigosamente, uma eventual decisão fatídica parece estar à mercê
dos caprichos de um só homem». E o texto terminava com a frase: «para garantir
a paz teremos às vezes de ir à guerra». Frase que, aliás, é dita mais do que
uma vez neste livro, ficando como um aviso que não escutámos.
Quanto
à China, talvez Cutileiro se tenha enganado no seu prognóstico optimista sobre
a sua ocidentalização, o mesmo se dizendo do modo como relativizou o
aquecimento global, ou na crítica talvez excessiva que fez à Srª Merkel aquando
da crise de 2008.
Mas
teve razão no essencial, um essencial cristalizado em duas frases terríveis:
«não é fácil vislumbrar na História uma linha de progresso moral» e outra,
«somos uma jangada de paz e decência em mar alto onde borbulham monstros».
O
livro termina com um texto extraordinário que, apesar de ter sido escrito em
2015, tem uma impressionante tonalidade crepuscular, é quase o seu adeus português. Chama-se «Verniz a
estalar», e, nesse balanço, Cutileiro concluiu que Portugal não se alterara no
essencial nas últimas décadas, e que «a Ponte Salazar passou a 25 de Abril não
por nós termos mudado, mas por não termos». O país e as suas gentes continuavam
a ser como um homem do campo lhe dissera em 1965: «Isto, Senhor Doutor, o que é
preciso é a gente estar bem com a lei que há».
Por
isso, remata e termina o nosso autor, «Não há-de ser nada».
É
com essa frase que acaba este livro de mais de 800 páginas, com a mais
portuguesa e a mais reconfortante das frases, «não há de ser nada».
Nos
dias em que vivemos, talvez já não tenhamos deixado de acreditar que andrá tutto bene, que vai ficar tudo
bem. Tudo, tudo bem, não ficará, mas talvez «não há-de ser nada».
E,
sobretudo, acima de tudo, podia ter sido
pior.
Muito
obrigado.
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