sexta-feira, 18 de março de 2022

Podia Ter Sido Pior.

 


 

Podia Ter Sido Pior,

de José Cutileiro

 

 

 

          Gostaria, antes de mais, de agradecer a Myriam Sochack o convite para estar aqui hoje, desde logo porque é uma honra e um gosto partilhar este espaço com o Senhor Ministro da Defesa, com o meu velho amigo Pedro Mexia e com a Joana Fisher. Mas sobretudo porque, em dias tão tumultuosos como têm sido estes, este convite deu-me horas e horas de imenso prazer ao fazer-me ler textos que parecem ter sido escritos noutro tempo e numa época tão distante, ainda que muitos deles surpreendam pela sua actualidade e pela lucidez cortante com que ela é dissecada.

 

          Quando o rei Eduardo VII morreu, alguém disse uma frase que era mais ou menos esta: «parece que as bóias que guiavam as nossas existências foram subitamente arrancadas e arrastadas na distância, perdendo-se pelo mar adentro».

 

Nas últimas semanas, a nossa sensação é um pouco essa, é a de que, em breves dias, o tempo passou a dividir-se inexoravelmente e irreversivelmente entre o mundo de ontem, na expressão de Stefan Zweig, um mundo que nunca mais teremos, e um mundo de hoje e de amanhã, que ainda não sabemos qual seja.

 

Daí que seja um bálsamo e um privilégio podermos mergulhar, ainda que por breves instantes, naquele que foi o nosso mundo de ontem, onde, num mar de incertezas, tínhamos, ainda assim, algumas bóias ou sinais orientadores – e pessoas como o embaixador José Cutileiro eram justamente umas dessa âncoras, uma dessas tábuas de Medusa, que, pela sua sabedoria, nos davam um amparo, uma segurança e uma serenidade de que na altura não nos apercebemos e a que só agora damos o devido valor.

 

O mundo de Cutileiro era o da civilização e o da civilidade e esse mundo, no passado dia 24 de Fevereiro, talvez tenha desaparecido para sempre. Cabe-nos a nós batalhar para que tal não suceda e por isso nos reunimos hoje aqui, num local que, também ele, é expoente ou baluarte desse mundo e desse tempo pretéritos – os da civilidade e da civilização. 

 

Tal não significa que esse mundo de ontem, o mundo de José Cutileiro e dos da sua geração, fosse perfeito ou imune à tragédia. Logo na apresentação do livro, a Myriam refere algo que, desde muito novo, esteve presente na vida e no espírito do seu marido, aquilo que um amigo seu designou por o horror subjacente da vida.

 

Algumas circunstâncias pessoais e familiares terão certamente contribuído para que José Cutileiro tivesse desde jovem a percepção clara desse horror existencial, quase metafísico, conradiano, mas creio que tal consciência decorreu também da extraordinária e lucidíssima capacidade que José Cutileiro tinha de intuir e observar aquilo a que mais tarde chamou «o mundo dos outros». De resto, num texto aqui publicado, evocação de Vitor Cunha Rego, diz que ele era das pessoas que conhecera «mais conscientes do horror subjacente à vida» e, não tendo trilhado os passos metafísicos nem as angústias religiosas do seu amigo, Cutileiro teve também presente que a consciência do horror existencial não deveria levar ao niilismo ou ao relativismo amoral mas, precisamente o contrário, a uma maior exigência de rigor ético, característica que apontou a Cunha Rego e que, por certo, procurou cultivar para si próprio. 

 

Um dos textos mais espantosos deste livro chama-se «Um português no Afeganistão», e foi publicado em 1953, no Diário Popular, por um jovem de uns 17 anos, por aí. O que é absolutamente assombroso é que já então o jovem repórter tinha, por um lado, uma invulgar capacidade de observar e de captar tudo o que o rodeava e, por outro lado, uma prosa límpida, contida, neoclássica. Eu aconselho ou peço mesmo às pessoas que comecem a leitura do livro por aí, por duas razões: a primeira, para ficarem maravilhadas com a precocidade do autor e a segunda para perceberem que aquele estilo britânico e sóbrio de ver e de dizer as coisas, que celebrizou Cutileiro, não surgiu apenas da sua ida para Inglaterra fazer o doutoramento – era algo que estava inscrito desde muito, muito cedo nos genes do futuro antropólogo e embaixador. 

 

  Como tudo quanto sucede na vida, até no horror há ventura e, de facto, se houve circunstância familiares e pessoais trágicas na juventude de José Cutileiro, tais circunstâncias também lhe deram algo que foi singularíssimo e absolutamente único nos intelectuais da sua geração: ao contrário daqueles – e mesmo assim poucos – que só conheceram o estrangeiro quando foram fazer o doutoramento fora, José Cutileiro teve, digamos assim, um cosmopolitismo muito precoce e, mais ainda, um cosmopolitismo extra-europeu, feito na Índia e no Afeganistão, lugares então muito mais exóticos do que hoje, no nosso tempo dos voos low cost, e com laivos coloniais que em larga medida já se perderam.

 

A base de que partiu era, também ela, algo exótica, quiçá com laivos coloniais…, o Alentejo dos anos 30. Portanto, antes sequer de se matricular no Colégio Valsassina, em Lisboa, e de andar incerto entre Belas-Artes e Medicina, José Pires Cutileiro já havia feito a síntese entre Évora e Cabul que, no fundo, seria a sua marca de vida. Uma vida que foi, por um lado, sumamente distante das misérias do quotidiano pátrio, mas, por outro, amorosamente ligada às suas raízes.

 

É muito curioso, comovente até, que, mais ou menos na época em que estava na redacção da Almanaque a fustigar algumas idiossincrasias nacionais, com o novo-riquismo e o marialvismo à cabeça, José Cutileiro tenha publicado um livro de poemas, O Amor Burguês, de 1959, onde, além de estrofes dedicadas aos amigos – e a amizade foi para ele um valor perene, talvez o que mais cultivou e acarinhou em vida –, além desses testemunhos de amizade, dizia, produziu aquele que é, quanto a mim, um dos mais belos hinos patrióticos da segunda metade do século XX português, um poema sem título  que diz assim:

 

Habito o meu país. As aves e os rios.

Habito-o com raízes que me prendem à terra

Habito as casas brancas pousadas na colina

E a cidade quente aonde a tarde desce.

 

Aqui sofro de pé. Aqui estive sozinho

No dia em que cheguei, no dia em que parti

Aqui me lembrarás depois quando morrer

Aqui te esquecerás também de que morri.

 

Por isso quando o vento do largo me arrefece

E nos ossos eu sinto os países distantes

As pernas se recusam a partir nos navios

Que demandam o mundo do poente ao levante.

 

Sou de aqui. Como as pedras. Como o ar que respiro.

−A velha acácia seca novamente floriu –

Se me levassem hoje desta paisagem triste

D. José, a cavalo, ia afogar-se no rio.

 

 

Foi devido a esta mescla entre um cosmopolitismo precoce e exótico e uma raiz rural nunca renegada que José Cutileiro pôde amar o seu país de uma forma muito mais sadia e «não tóxica», como agora se diz, do que os outros intelectuais portugueses do seu tempo, que começaram por julgar que todos os males da pátria se deviam à ditadura e que acreditavam que, uma vez instaurada a democracia, tudo se resolveria, numa cornucópia de liberdade, justiça e desenvolvimento. Após o 25 de Abril, e como essa ilusão tardasse em concretizar-se, esses intelectuais concluíram que Portugal, fosse qual fosse o regime, tinha um «problema», e que esse problema se chamava Portugal, como um todo, de há séculos e de alto abaixo, com uma fatalidade histórica ou destino inescapável, sem nunca terem tido a prudência e sobretudo a modéstia de se interrogarem se os males estavam no país ou neles próprios. È que foram eles, tinham sido eles, que, num primeiro tempo, empo colocaram demasiadas expectativas na suas capacidades de fazerem uma terra melhor e, depois, num segundo momento, acabaram por usar Portugal e os portugueses como bode expiatório para frustrações sofridas nos planos íntimos das suas vidas.

 

Para muitos desses intelectuais – e não vou citar nomes – o berço em que nasceram ou a frequência de uma universidade estrangeira dava-lhes, ipso facto, uma espécie de direito natural e incontestável ao reconhecimento fervoroso dos seus concidadãos e também um direito natural aos lugares e às posições que garantissem o melhor acesso a prestígio e estatuto social, além de rendimentos condizentes com um estilo de vida dispendioso e caro, mas ajustado à superioridade intelectual de que gozavam, ou julgavam gozar. Talvez não tivessem nem nunca tenham tido grandes expectativas quanto ao futuro da pátria, mas tinham grandes, enormes, expectativas quanto ao lugar a que entendiam ter direito nessa pátria, fosse em ditadura, fosse em democracia. Com o passar dos anos, a massificação do ensino e outras transformações sociais ocorridas com o 25 de Abril – e que foram, note-se, democratizadoras, igualitárias e justas – goraram os planos grandiosos que muitos intelectuais da geração de Cutileiro tinham para si próprios, o que, naturalmente, fez crescer neles uma imensa frustração e, logo, aumentou o seu desdém por Portugal, por aquilo que Portugal não lhes tinha dado.

 

José Cutileiro teve a sorte e o talento para se afastar dessa tendência e de se colocar numa posição privilegiada: «vista de longe a Pátria é cor-de-rosa e macia; vista de perto, ou melhor de dentro, surgem cores mais sombrias e asperezas que a saudade disfarçara», escreveu em Março de 1973. Nunca teve, de resto, ilusões sobre o povo a que pertencia, e guardou até ao fim uma frase que o seu pai lhe dissera: «Nós não somos descendentes dos que foram à Índia, somos descendentes dos que cá ficaram». 

 

Por isso, sem ilusões nem caprichos, manteve-se à margem do movimento que vitimou muita da intelectualidade portuguesa da segunda metade do século XX, ainda que convivesse de perto com muitos dos seus actores e protagonistas, e ainda que tivesse plena consciência das fragilidades lusitanas («nós somos um país pequeno e somos um país pobre», escreveu num dos seus textos mais famosos, os «Superportugueses», saído em O Tempo e o Modo). Dessa consciência, porém, não resultou azedume nem amargura, mas ternura, e, além dela, moderação, ponderação, sentido de equilíbrio, a sabedoria de quem, em vez de observar o mundo com o som e a fúria do ranger de dentes, prefere contemplá-lo com um fleumático e camoniano mover de olhos brando e piedoso. Assim, creio, José Cutileiro pôde ser – e penso que esse é o traço e o legado maior da sua vida – um homem feliz, sumamente feliz, capaz de manter um convívio sadio com gente de várias origens e quadrantes, capaz de amar o seu país na justa medida, tendo consciência dos seus defeitos e problemas, mas também a noção clara das suas virtudes e muitas coisas boas.

 

Estudei há pouco a revista Almanaque e os seus protagonistas, num livro que conto publicar ainda este ano, e o que pude concluir é que, de todos eles – Alexandre O’Neill, Cardoso Pires, Vasco Pulido Valente, Luís Sttau Monteiro –, José Cutileiro foi o que envelheceu melhor, mais sereno e mais realizado, mais reconciliado com os outros e com o seu país, onde, creio, gostaria de ter vivido nos últimos anos.

 

          A felicidade que teve na vida irradiava do gozo de pequenos ou grandes prazeres hedonistas, da comida aos vinhos, do culto de uma certa elegância e pose, de uma panache tímida, jamais arrogante, da arte da conversa, das micro-histórias que ia ouvindo aqui e ali, desde o Alentejo aos corredores da diplomacia. Essa felicidade ficava patente no facto de José Cutileiro nunca ter uma atitude inflamada no julgamento dos outros ou das situações, nunca ser cáustico ou amargo na apreciação dos seus semelhantes, ser capaz de escrever dezenas e dezenas de textos, de que grande parte é aqui reunida, mas em nenhum deles ter o timbre da acidez e da cólera. Talvez fosse o snobe mais snobe de todos, aquele que contempla os próprios snobes de uma forma desprendida e altiva, com a merecida sprezzatura. Ou talvez fosse um pessimista feliz, um céptico de si mesmo, que sabia ter uma invulgar cultura e uma rara inteligência das coisas, mas que tinha também o bom senso e o bom gosto de perceber que não devia agredir ou humilhar os outros com a sua indiscutível superioridade. Com infinda sabedoria, nunca teve a ambição de mudar o mundo, mas apenas de melhorá-lo. Por isso, apoiou com entusiasmo a revolução de 1974, mas cedo percebeu os riscos dos extremismos e de novas ditaduras – e recomendo um texto notável, até pela sua coragem cívica e moral, saído no Diário de Notícias logo em Outubro de 1974. Anos depois, num texto breve, não constante desta antologia, teve outra frase certeira – «o país mais parecido com Portugal depois do 25 de Abril é o Portugal antes do 25 de Abril» – e, como Tocqueville, preferia realçara as continuidades às rupturas, mesmo as revolucionárias.  

 

«Síntese dialéctica», é o nome de um dos textos deste livro, tomando uma frase de Gérard Castello Lopes que dizia que «Luanda era a síntese dialéctica entre Fátima e a Costa da Caparica». José Cutileiro, na verdade, sempre foi um homem de sínteses, não de antíteses, e além da síntese entre Évora e Cabul, ou entre Reguengos de Monsaraz e Oxford, ele foi capaz de, a seu modo, fazer a síntese perfeita entre as suas convicções de esquerda, que sempre afirmou, e uma visão conservadora do mundo. Era essa visão que o levava até a considerar, num domínio que estudou bem, o dos ricos e pobres no Alentejo, que, contanto que não fossem cometidos abusos ou perpetuadas injustiças extremas, havia uma espécie de equilíbrio homeostático nas distinções e nas hierarquias de classe.

 

Sobre o 25 de Abril, lembrava o desabafo de uma costureira, mulher do motorista de uns amigos seus, ricos e espoliados na revolução: «para que é que eles estão a mandar embora os ricos? Para pobres já cá bastávamos nós!». O embaixador lamentava, aliás, que e, cito, que em Portugal os ricos tivessem sempre sido poucos, e pouco ricos. Noutra ocasião, escreveu que a sua experiência de vida, em particular nos Balcãs, lhe ensinara que, na esmagadora maioria das vezes, «os pobres são piores do que os ricos e as bases piores do que as cúpulas». Neste livro, aliás, há um texto de 2008 a denunciar a «caça aos ricos» e outro, de 2007, que é um primor de incorrecção política, a propósito dos pedidos de perdão pós-coloniais. Numa conversa que tivera com Antonio Tabucchi, em que este lhe perguntara se o Ocidente deveria pedir desculpas aos africanos pela escravatura, Cutileiro respondeu: «talvez fizessem melhor em pedir desculpa aos pretos da África ocidental por os seus antepassados não terem sido trazidos também».     

 

As sínteses que José Cutileiro era capaz de produzir resultavam daquilo que a sua mulher, Myriam Sochacki, anotou logo nas primeiras linhas da apresentação desta obra, quando diz que ele «possuía a arte e o requinte de não se levar muito a sério».

 




Dificilmente se poderia escolher, aliás, melhor título do que este, Podia Ter Sido Pior, que espelha bem uma atitude de vida presente em muitos dos textos desta frondosa antologia. Uma atitude que, de certo modo, faz a síntese entre o pessimismo e o optimismo, superando-os. José Cutileiro não era nem um pessimista derrotado nem um optimista utópico. A sua visão do mundo seria, quando muito, melancólica, britânica, fleumática, talvez desgastada, talvez resignada perante as fraquezas alheias. Era, sobretudo, mais complacente para quem os pequenos e os marginais do que em relação aos poderosos, mas tolerante para com todos. Uma vez, definiu um professor de Oxford, John Kennedy Campbell, «um homem sábio com uma visão céptica do mundo e sentido de humor a condizer». É quase um autorretrato.

 

Além de conciliar o Alentejo com o mundo, os ricos com os pobres, as direitas e as esquerdas, o optimismo com o pessimismo, José Cutileiro foi também capaz de fazer uma outra síntese mais subtil, entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno. O seu horizonte intelectual começou por ser o de Vila Velha, onde fez o trabalho de campo para o doutoramento (e onde regressou para novas pesquisas no tempo da Reforma Agrária), mas com o tempo e por dever de diplomata o seu horizonte foi-se alargando até abarcar o mundo inteiro, que escrutinou em dezenas ou centenas de textos, a maioria dos quais aqui reunidos. O mais curioso de tudo – e por isso falo do infinitamente grande e do infinitamente pequeno – é que José Cutileiro era capaz de observar os Balcãs ou as reuniões magnas da NATO com o ponto de vista de um camponês de Reguengos, e não o digo por mera boutade: em muitos dos textos aqui presentes, há episódios e petites histoires, em que a sabedoria de analfabetos do campo e os seus ditos espontâneos são convocados para ilustrar ou explicar grandes arranjos da política internacional ou do andamento do mundo. «Adeus, parabéns, obrigado e desculpe», era o mantra com que uma mulher a dias da sua mãe se despedia quando saía do trabalho e, em dois textos deste livro, com imensa graça, é assim que Cutileiro descreve e sintetiza a política externa portuguesa: «Adeus, parabéns, obrigado e desculpe»

 

Além do humor e da cultura, os seus escritos têm também uma característica singular, muito rara, que eu pomposamente poderia definir como uma sonoridade dialogal, querendo no fundo dizer que o seu estilo é lendário e cativante porque José Cutileiro escrevia como se estivesse a conversar connosco, do que resulta que lê-lo é estar a ouvi-lo, aqui presente, no Grémio Literário ou noutro lugar. Sempre com a sua imensa tolerância, a qual, neste livro, só parece não ser estendida aos ditadores, claro, e a três classes de pessoas que sempre o incomodaram, como escreveu no Diário de Lisboa em 1973: os escuteiros, os esperantistas e os vegetarianos. De caminho, uma ou outra farpa, como a hilariante definição da Suécia como «a sogra moral do mundo», mas nada de muito agreste.

 

  Também no Diário de Lisboa, e nesse ano de 1973, publicou uma crónica intitulada «Obituários» em que lamentava a sua ausência na imprensa portuguesa, ao menos na forma, no estilo e na substância dos jornais ingleses. Depois de uma primeira experiência com Kennedy, nas páginas de O Tempo e o Modo em 1963, passou, anos depois, a assinar semanalmente os obituários do Expresso, compilados neste volume.  O mais curioso é que, em 1973, Cutileiro escrevia «talvez o Expresso pudesse criar uma secção de obituários…», um dos muitos vaticínios que faz neste livro e que vieram a revelar-se acertados. Quando lemos as crónicas de «O Mundo dos Outros», por vezes ficamos arrepiados com o seu dom profético. Leio uma publicada em 2015 na revista XXI, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, chamada «A sombra de Putin», cuja primeira frase é «O czar russo é hoje a principal ameaça à paz. Os países da OTAN mostram estar atentos, mas ninguém parece querer fazer-lhe frente».

 

Depois, dizia: «hoje, perigosamente, uma eventual decisão fatídica parece estar à mercê dos caprichos de um só homem». E o texto terminava com a frase: «para garantir a paz teremos às vezes de ir à guerra». Frase que, aliás, é dita mais do que uma vez neste livro, ficando como um aviso que não escutámos.     

 

Quanto à China, talvez Cutileiro se tenha enganado no seu prognóstico optimista sobre a sua ocidentalização, o mesmo se dizendo do modo como relativizou o aquecimento global, ou na crítica talvez excessiva que fez à Srª Merkel aquando da crise de 2008.

 

Mas teve razão no essencial, um essencial cristalizado em duas frases terríveis: «não é fácil vislumbrar na História uma linha de progresso moral» e outra, «somos uma jangada de paz e decência em mar alto onde borbulham monstros».

 

O livro termina com um texto extraordinário que, apesar de ter sido escrito em 2015, tem uma impressionante tonalidade crepuscular, é quase o seu adeus português. Chama-se «Verniz a estalar», e, nesse balanço, Cutileiro concluiu que Portugal não se alterara no essencial nas últimas décadas, e que «a Ponte Salazar passou a 25 de Abril não por nós termos mudado, mas por não termos». O país e as suas gentes continuavam a ser como um homem do campo lhe dissera em 1965: «Isto, Senhor Doutor, o que é preciso é a gente estar bem com a lei que há».

 

Por isso, remata e termina o nosso autor, «Não há-de ser nada».

 

É com essa frase que acaba este livro de mais de 800 páginas, com a mais portuguesa e a mais reconfortante das frases, «não há de ser nada».  

 

Nos dias em que vivemos, talvez já não tenhamos deixado de acreditar que andrá tutto bene, que vai ficar tudo bem. Tudo, tudo bem, não ficará, mas talvez «não há-de ser nada».

 

E, sobretudo, acima de tudo, podia ter sido pior.

 

Muito obrigado.

 

  


 

 

 

 

 

 

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