Uma invulgaridade da literatura da Guerra da Guiné:
O Silvo da Granada, por José Maria Martins da Costa
Uma
surpresa, e com aspetos bem curiosos, este O Silvo da Granada, Memórias da
Guiné, por José Maria Martins da Costa, Chiado Books, agosto de 2021. O
leitor é colhido por uma prosa onde primam citações de clássicos, a começar
pelo latim, tudo passa a ser entendível quando se lê o currículo que o autor
apresenta: “Natural de Roriz, concelho de Santo Tirso, aí frequentei a escola
primária, finda a qual entrei no seminário, mais precisamente no mosteiro da
Ordem Beneditina. Saí no sétimo ano, talvez para voltar daí a trezentos anos
como o monge de Bernardes. Como trezentos anos demoram a passar, para não estar
ocioso entretive-me a tirar o curso de Filosofia na Universidade do Porto, e
ainda o de Latim, Grego e Português, e respetivas literaturas, na Universidade
de Coimbra. Entretanto, assentei praça no Exército, indo para a Guiné como
combatente da Guerra do Ultramar e assentei arraiais civis no Porto, onde
casei, fui professor e jornalista. Nesta cidade, tenho levado vida plácida e
remansosa, dentro dos parâmetros da Aurea Mediocritas de Horácio. Por
falar em Horácio, ia-me esquecendo de dizer que publiquei há anos um livro de
poemas intitulado Libellus, palavra latina que tanto pode significar
pequeno livro como libelo acusatório. Fora das partes líricas, acusava
realmente e castigava alguns dos costumes e vícios da sociedade contemporânea.
Queria endireitar o mundo. Mas o mundo ignorou o livro e continuou cada vez
mais torto”.
Nunca vai ficar esclarecido neste livro as razões pelas
quais, com tais habilitações, vai parar à Guiné como primeiro-cabo das
Transmissões, chega em maio de 1968, regressa um pouco mais de dois anos
depois, assiste a grandes transformações no Sul da Guiné, o então brigadeiro
Spínola manda encerrar um conjunto de quartéis que eram considerados
estratégicos pelo seu antecessor, Guileje, um fortim aparentemente
inexpugnável, é a sentinela avançada daquela região onde o PAIGC se move muito
à vontade. A invulgaridade destas memórias não passa só pelo recurso permanente
às citações dos clássicos, tanto dos portugueses como os da literatura greco-latina,
o que já por si determinaria a invulgaridade, nada, nem de perto nem de longe,
é referenciado como tal na literatura da guerra que travamos em três frentes
africanas; o seu registo de usos e costumes nada tem de peculiar, o que assoma,
e nos comove, é a sua profunda atração por aqueles autóctones que vivem debaixo
de um fogo cerrado, aquele silvo da granada permanente, povo prazenteiro e
acolhedor, tem histórias para contar, há quem em Guileje teça comentários
mordazes a este primeiro-cabo que prefere a companhia daquela gente Futa-Fula;
e na arquitetura destas memórias até se podia abrir campo para usar aquelas
colunas de abastecimento, aqueles patrulhamentos e vigilâncias, como vivências
pessoais de intenso sofrimento, acontece que Martins da Costa não se perde em
vanglórias, nunca nos deixa a imagem do herói anónimo; é crente, reza sempre
que pode, não tem pejo em alardear a sua fé, como se nada tivesse a perder com
o rasgo da sua sinceridade.
Dirá em dado momento: “Isto não é um diário. Antes fosse;
que tudo iria por sua ordem, sem as errâncias de uma pena vadia, agora e logo
perdida em digressões, por vezes longas, decerto fastidiosas. Também não vai
escrito por meses, posto às vezes pareça. Já agora, como se diria, se fosse?
Aos anais, as décadas, os diários. Só para a escrita por meses não se inventou
nome, decerto porque nunca foi preciso; e também não é agora”. O que se espraia
por estas memórias é acima de tudo um olhar de deslumbramento. Na generalidade
destas obras, conta-se muito sobre o sofrimento e a solidão, os corpos
retalhados, o desvario que se vive naquelas tempestades de fogo das intensas
flagelações. O primeiro-cabo de Transmissões não quer veleidades, chegou a
Bissau em rendição individual, metem-no numa embarcação para Gadamael, dias
depois entra em Guileje e adapta-se à sua vida no posto de rádio, aos
patrulhamentos, às colunas de abastecimento. Não faz retórica à volta daquelas
tempestades de fogo, que são frequentes, descobre e procura imergir na procura
de respostas com o seu quê de etnografia, antropologia e etnologia.
Deslumbra-se com a natureza, o desabar das chuvas, a vegetação luxuriante,
aproveita todas as ocasiões para fazer comentários a essa vida tropical com
quem tão bem convive, basta um exemplo, o prenúncio de uma chuva diluviana:
“Anuncia-a, lá ao fundo, aquela barra escura, carregada. É uma negridão a todo
o largo do céu, que cresce cada vez mais e está avançando para cá com a
lentidão e tenacidade do Sol a pôr-se. Desliza de manso, implacável, sobre o
azul, expulsando-o, avassalando-o, assenhoreando-se da vasta amplidão destes
céus. Para trás nem uma réstia, uma nesga do azul vivo de há pouco. É com a
inocência do sertão nos olhos que o Martins assiste ao espetáculo inesperado e
insólito que o transe. Quando nisto, já com a nuvem iminente, e rompe sobre
Guileje uma ventania doida, que aos ares férvidos ergue revoltas espirais de
pó; um golpe mais rijo do vento arremessa para longe uma pesada chapa de zinco
das instalações militares. Fim estertoroso de uma estação ou furibundo prelúdio
da que está para vir? Com a nuvem, de um tom espesso de tinta-da-china,
cingindo todo o espaço por cima de Guileje, como exausto o vento cessa; e como
se só estivesse esperando a quietação dos ares, clamoroso chuveiro desaba sobre
a terra requeimada, que fumega”.
Obra totalmente
imprevista neste ramo da literatura, mais de alguém que se apresenta como um
aprendiz entusiasta das ciências sociais e humanas e muito menos como
combatente, revela uma sensualidade contida, tem a sinceridade de nos dizer que
deixou Guileje naquele estado paradoxal, sentindo alívio por deixar um dos
quartéis mais flagelados e mais temidos por qualquer militar, mas com uma
saudade imensa, tal como sentirá noutras paragens, como Catió e Cufar. Naquelas
derradeiras páginas em que se despede dos autóctones que o prendem com afeto,
assume por inteiro o amor gerado por aquela nesga da Guiné, no adeus da
partida: “Doravante, um abismo se interporá entre eles. Mas por cima desse
abismo, como uma imensa ponte sobre um desfiladeiro precipitoso, a memória
vencerá sempre a distância e o afastamento”. E toma o avião agradecendo a Deus
ir vivo e ileso; reza pelos que não tiveram a mesma sorte.
Uma obra a ter em conta em toda a literatura da guerra colonial.
Mário Beja Santos
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