Para
quem procura entender as motivações ideológicas dos Nazis à procura de provas
de supremacia germânica, da sua origem ariana, do culto do homem em branco de
cabelo loiro e olhos azuis como a raça destinada a dirigir a humanidade e
desfazer-se a prazo das raças nefastas, como judeus, é de primordial
importância ler este trabalho pautado pelo rigor e seriedade, O Delírio Nazi,
os académicos de Himmler e o Holocausto, entre a superstição, a ciência e o
terror, por Heather Pringle, Casa das Letras, 2022.
Quando
tudo parecia dito sobre esta escabrosa mitologia forjada por pseudociência, a
poderosa investigação da jornalista canadiana Heather Pringle dá-nos uma grande
angular das motivações do número dois do Nazismo, Heinrich Himmler, alguém que
desde a juventude se interessava pela mitologia nórdica e que recrutou
académicos sérios que, seduzidos pelo dinheiro, pelo poder e pelas suas
próprias fantasias se entregaram a estudos completamente delirantes. Para
Himmler, as suas
Himmler
criou em 1935 a Ahnenerbe (algo herdado dos antepassados, é o seu significado),
um alegado instituto nazi de investigação que tinham uma missão oficial dupla:
procurar reunir novos indícios e provas dos feitos e triunfos dos antepassados
alemães e a responsabilidade de divulgar todas essas descobertas entre o
público alemão. Este instituto ficou tristemente célebre por produzir mitos,
praticar gravíssimos roubos e desvios culturais e colaborar com o Holocausto,
apoiando a todo o momento as ideias raciais de Hitler, cujo conceito de raça
ariana comprovadamente não tinhas pés nem cabeça, mas conseguiu hipnotizar o
povo alemão até à hecatombe. Por mais que falasse na raça ariana, não havia
qualquer prova de uma raça de alemães primordiais altos e de cabelo loiro que
tivessem estado entre os criadores da civilização. Para intentar dar resposta
ao problema foi criado aquele instituto político de elite. E a autora observa:
“Himmler estava convencido, como muitos outros alemães influentes da sua época,
de que em tempos correra nas veias das antigas tribos germânicas o puro sangue
ariano. Se os investigadores da Ahnenerbe conseguissem recuperar esse
conhecimento primordial germânico através da arqueologia e outras ciências,
talvez descobrissem formas superiores de cultivas cereais, curar os doentes,
inventar armas ou regular a sociedade”. Se tal acontecesse, o Terceiro Reich
ficaria na dianteira da civilização e da cultura. No instituto juntou-se um
grupo variado de estudiosos e cientistas – arqueólogos, antropólogos,
etnólogos, classicistas, orientalistas, estudiosos das runas nórdicas,
biólogos, musicólogos, filólogos, geólogos, zoólogos, botânicos, linguistas,
folcloristas, geneticistas, astrónomos, médicos e historiadores. Himmler tomava-se
como pensador e expoente moral, tinham obsessões, uma delas era de que a homossexualidade
era uma doença contagiosa e receava que ela atingisse proporções epidémicas na
Alemanha. Himmler não se limitou às expedições alucinantes que este livro
descreve ao pormenor, as efetuadas e as planeadas, pediu apoio a estes
académicos para a solução do chamado “problema judaico”. Toda aquela ideologia
aberrante era por vezes confrontada com quadros paradoxais, foi o que se passou
em 1942 na Crimeia e no Cáucaso, os assassinos da SS sentiam-se confusos com
aqueles judeus e muçulmanos que viviam lado a lado ao longo de mais de mil
anos, casando entre si e transmitindo costumes ancestrais, tradições religiosas
e línguas: quem era afinal judeu e quem não era? Como não havia resposta
científica, adiantou-se uma impostura, não se podia ofender ou fazer perigar o
delírio nazi.
A
autora fala-nos da formação de Himmler, das fantasias sobre o arianismo, da
ascensão de Himmler na hierarquia nazi, dos primeiros programas da Ahnenerbe,
estudos sobre as tribos germânicas, as origens da raça nórdica, procuravam
referências em gravuras da Idade do Bronze na Suécia, estudaram a feitiçaria
lendária da Carélia, as Sagas nórdicas, o mito da Atlântida, a antiga
literatura do Oriente, percorreram o Iraque e todo o Médio Oriente e trouxeram
a notícia importante para os nazis de que a generalidade dos árabes detesta os
judeus; procuraram a origem dos povos germânicos no homem de Cro-Magnon,
percorreram importantes museus de história natural, preparou-se um exposição
científica ao reino do Tibete em busca de tribos arianas perdidas, bem curioso
é o relato que a autora nos dá desta viagem aos Himalaias.
Nisto,
Hitler desencadeia o ataque à Polónia, e o instituto pseudocientífico obteve
novas missões, primeiro a roubar os museus e os bens culturais polacos, caso do
altar da igreja de Santa Maria em Cracóvia, foram rapinados tesouros, isto
enquanto Himmler, para satisfazer uma outra fantasia, restaurou um castelo que
seria a sede espiritual das SS. Mas o instituto foi envolvido na questão
judaica, era preciso estudar os judeus de forma sistemática, os crânios, a
forma das orelhas ou as maçãs do rosto, assim foram solicitados crânios aos
assassinos das SS, haverá roubos aquando da invasão da União Soviética, sempre
à procura de traços dos povos germânicos primitivos, e enquanto tudo isto se
passa pseudocientistas vão até aos campos de concentração à procura de matéria
prima para estudos anatómicos dos judeus. As rapinas não paravam, quando a Itália
baqueou as SS iam trazendo tesouros e satisfazendo caprichos dos
pseudocientistas. Hitler ia confiando cada vez mais missões a Himmler, fez dele
Ministro do Interior da Alemanha, deu-lhe o comando pelo Exército de Reserva,
nomeou-o Chefe do grupo de Exércitos do Alto Reno, era o segundo homem mais
poderoso do Reich, mas a derrota dos alemães estava à vista, em breve o mundo
iria ficar surpreso com a notícia barbárie nazi e a ciência da treta dos povos
germânicos primitivos ficou totalmente ridicularizada. Heather Pringle irá
entrevistar um desses pseudocientistas, veio desfeita, ninguém obrigara estes
homens a juntar-se às SS e ao seu braço científico. “Não podemos saber o que
estes homens estavam a pensar quando abandonaram de forma consciente a sua humanidade
e passaram para lá da linha que os separava da barbárie. E também é impossível
dizer exatamente por que razão fizeram o que fizeram, embora a explicação mais
provável seja uma combinação fatal de ambição, fraqueza moral, preconceitos
inconcebíveis. Embora muitos outros historiadores tenham escrito acerca das
consequências desastrosas deste tipo de fraquezas humanas no Terceiro Reich,
estou convencida de que o terrível poder da ciência, e a maneira como ela foi
manipulada para justificar algumas das piores atrocidades do Holocausto, é uma
história mal conhecida. Hoje gostamos de pensar que a ciência é imutável, o
padrão-ouro do conhecimento humano, mas, como nos mostrou a história da
Ahnenerbe pode ser deformada e enviesada para servir finalidades catastróficas.
Não podemos permitirmo-nos esquecer esta lição”.
De leitura obrigatória.
Mário Beja Santos
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