sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Da Rússia, com amor.







O Oberbürgermeister Haken

 
No dia 28 de Setembro de 1922, o paquete alemão Oberbürgermeister Haken zarpou de Petrogrado, levando consigo a nata dos intelectuais russos que ainda permaneciam no país. Era o chamado “barco dos filósofos” que transportava para o exílio todos aqueles que ameaçavam a política cultural leninista. A todos eles Lenine expulsara advertindo-os de que, se regressassem, os esperaria o pelotão de fuzilamento. Entre eles, seguia o pai do Oppenheimer russo, Yuli Khariton. Anos mais tarde, enquanto este, proibido de contactar os progenitores, se dedicava à física nuclear ao serviço do regime e por amor à Mãe-Pátria, o pai, o jornalista Boris Khariton, voltaria a estar no território soviético após a anexação da Letónia, onde se refugiara, na sequência do pacto Ribbentrop-Molotov e da invasão da Polónia. Foi imediatamente detido pela NKVD e remetido para o Gulag, onde faleceu.
A mãe de Yuli Khariton era a famosa actriz Mirra Birens, musa de Stanislavski, que também se exilou no ocidente após a revolução bolchevique. Veio a casar com o psicanalista Max Eitingon, primo e, quase de certeza, cúmplice de Naum Eitingon, o responsável do NKVD por acções de espionagem no ocidente e no Japão.
Em França, esteve ligado aos raptos dos generais brancos Kutepov e Miller e ao assassínio do filho de Trotsky. Em Espanha, durante a guerra civil, recrutou o assassino de Trotsky, Ramon Mercader. A irmã de Trotsky, Olga Kameneva, era, por sua vez, a responsável pelas relações culturais com o ocidente, tendo recebido, entre outros, Le Corbusier e Theodor Dreiser. Caiu em desgraça com o marido Lev Kamenev, e o irmão. Presa, veio a ser executada pelo NKVD, por ordem de Estaline, em 1941. 

Naum Eitingon


Olga Kameneva

 
Das acções de Eitingon destaca-se o rapto do general Yevgeni Miller, em Paris, em 22 de Setembro de 1937. Levado para um barco soviético dentro de uma caixa, como mala diplomática, não foi detectado a tempo pelos serviços secretos franceses. Tinha sido traído pelo general branco Nikolai Skoblin, e pelo marido da grande Tsetaeva, Sergei Efron, que, apesar de profundamente anti-soviético, se vendeu porque sentia uma necessidade doentia de regressar à Mãe-Rússia. Voltando, foi também ele imediatamente eliminado.
Skoblin fora recrutado para os serviços soviéticos pela sua mulher, a célebre cantora Nadezhda Plevitskaya. Esta, na juventude, começara por actuar com uma trupe de ciganos, mas o seu talento foi reconhecido pelo grande tenor Leonid Sobinov e pelo ainda maior Feodor Chaliapin. Durante a revolução, tornou-se bolchevique e cantou para as tropas durante a guerra civil. Foi capturada pelos exércitos brancos, por uma unidade comandada, calcule-se, pelo general Skoblin, que se apaixonou perdidamente por ela. Casaram no exílio, na Turquia. A sua carreira prosseguiu na Europa e nos Estados Unidos, onde actuou acompanhada por Sergei Rachmaninov, enquanto Skoblin, em Paris, ascendia junto das organizações da emigração russa.


Nikolai Skoblin

 
Sabe-se que Skoblin passou a colaborar com os serviços secretos soviéticos após 1930, porque esse foi o ano em que o antecessor do general Miller, o general Alexander Kutepov, um dos mais sanguinários generais brancos que fuzilava a torto e a direito, foi vítima de uma acção idêntica. Ora, o general Pavel Sudoplatov da NKVD e, depois, do KGB, garante nas suas memórias, publicadas depois da Glasnost, que Skoblin nada teve que ver com o rapto de Kutepov, porque só teria sido recrutado algum tempo depois. Este Sudoplatov foi o escolhido por Beria em 1944 para chefiar o departamento da KGB que organizou toda a investigação da bomba nuclear soviética. Onde encontrou Yuli Khariton que, impávido, continuava o seu trabalho, permitindo-se mesmo pressionar Beria para manter alguns seus colaboradores que estavam destinados a juntar-se ao pai no Gulag. E Beria cedeu, bomba oblige.
Mas regressemos a 1937. Os serviços secretos desconfiam de quem não tem bons motivos para agir. Para a NKVD, era evidente a ambição de Skoblin de substituir Miller à frente dos contra-revolucionários russos de Paris, o que serviria também os intentos dos serviços secretos soviéticos. Na verdade, Skoblin actuou como triplo agente, ao serviço dos russos brancos, do NKVD e, imagine-se, dos alemães. Amigo de Reinhard Heydrich, deste obteve documentos que fez chegar a Estaline: eram as provas que lhe serviram para decapitar o exército vermelho, no célebre processo contra a Organização Militar Trotskysta Anti-Soviética. Aqueles documentos, meio forjados e meio genuínos,  reportavam ao tempo em que o marechal Tukahtchevsky colaborara com os alemães, no período entre as guerras em que quer a Alemanha quer a União Soviética eram párias no sistema internacional.


Reinhard Heydrich


Parece que Skoblin julgou que, enfraquecendo a cúpula militar soviética, convenceria Hitler a atacar a Rússia. Se esse era o seu plano, resultou. E, se assim foi, ele estava a agir por conta própria, por ódio ao comunismo e por amor à Mãe-Pátria. De pouco lhe serviu: Skoblin, pouco depois do desaparecimento de Miller, também desapareceu para não mais ser visto. A sua mulher acabou por ser a única acusada do rapto de Miller, pois descobriu-se no seu apartamento provas de actos de espionagem. Morreu na prisão, em Rennes, em 1940, abandonada por todos.
De Miller também nada se soube até à queda do Muro de Berlim e à descoberta ocasional, nas caves do KGB, de cartas pungentes, embora ingénuas, em que pedia para que a sua mulher fosse informada do seu paradeiro. Sabe-se hoje que, após dois anos de angustiante incerteza, mal foi assinado o Pacto Ribbentrop-Molotov, em 1939, foi condenado à morte e executado no dia seguinte. Teria deixado de ser útil.
Entretanto, uma sobrinha do general Miller, Natália Sergeiewa, não chegando aos calcanhares do tio, pois apenas conseguiu ser agente dupla, serviu ingleses e alemães durante a Segunda Guerra. A certa altura, foi uma peça chave para enganar os alemães quanto ao destino da força invasora do D-Day. Por pouco não deitou a perder a maior acção militar da História por causa do seu amor pelo cãozinho de estimação e do desprezo britânico por canídeos estrangeiros.
Confusos?  Mas ainda alguém julga que a Rússia é um país como os outros?



José Luís Moura Jacinto

1 comentário:

  1. Ficamos assim cientes que os romances de Tolstoi são reportagens e nada devem à imaginaçâo.
    José Navarro

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