quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Elena e os polímeros.


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Foi um destacado membro do Partido Comunista da Roménia – integrou o Comité Municipal de Bucareste (1968), o Comité Central (1972), o Comité Executivo (1973) e o respectivo Gabinete Permanente (1977) e presidiu à Comissão de Quadros do Partido e do Estado (1980). Foi também, enquanto vice-primeiro-ministro, a segunda figura na hierarquia do Estado romeno (1980−1989). E se é inquestionável que a sua ascensão a estes e a outros cargos decorreu essencialmente do facto de ser casada com o homem que por mais de três décadas dominou a Roménia, não o é menos que ao exercê-los revelou excepcional desenvoltura e invulgares atributos, concretizados em inúmeros feitos, dos quais uma ínfima parte bastaria para lhe garantir, de pleno direito (e dispensando a marital intercessão) um lugar neste sombrio recanto do nosso cemitério.

Sucede, porém, que não é por conta dessas negras e conhecidas proezas que trago aqui hoje Elena, mas de outras, que ainda hoje me causam fascínio. Um absurdo, enviesado e inexplicável fascínio diante do que de grotesco, quase patético, tem o poder exercido de forma desmedida e desconectada da realidade.  

A queda do regime romeno, em 1989, tornou bem patente o abissal contraste entre a sua mirífica imagem, veiculada pela propaganda, e a sinistra realidade das várias atrocidades por si concebidas, ordenadas e cometidas. Um aspecto houve, contudo, que na torrente de dados sobre a vida de Elena me intrigou especialmente: o seu impecável e extenso curriculum académico e científico, o qual incluía um PhD em química de polímeros – com uma tese considerada, à época, um major breakthrough na área – cerca de 11 livros, 90 artigos em revistas científicas, romenas e estrangeiras, e mais de 30 patentes de invenção registadas em seu nome. Achievements próprios de uma vida dedicada ao estudo e à investigação, no resguardo de laboratórios, bibliotecas e gabinetes – e claramente inconciliáveis com uma tão intensa actividade pública como era a sua, entre os lugares políticos que acumulava e a omnipresença, ao lado do marido, enquanto “mãe da nação romena”. A explicação para tão improvável sobreposição de percursos surgiria pouco depois, através de sucessivas revelações que eu segui, num ávido e mórbido crescendo de horror e deleite.

Elena nasceu em 1919, no sul da Roménia, numa família modesta que, ainda assim, a conseguiu manter a estudar até aos catorze anos, altura em que decidiu abandonar a escola – com negativas a tudo, excepto a costura – e rumar a Bucareste. Aí trabalhou como assistente de um laboratório clandestino que produzia pastilhas para emagrecer e como operária têxtil. Nos anos cinquenta, já casada com Nicolae Ceausescu, inscreveu-se num curso nocturno de química, num instituto dedicado à instrução de adultos, a cujas aulas raramente comparecia e do qual foi expulsa por ter sido apanhada a copiar num exame. Inexiste qualquer prova de que tenha prosseguido os seus estudos ou completado uma licenciatura. E, no entanto, escassos anos depois, em 1960, doutorou-se summa cum laude, com uma monografia intitulada Stereospecific Polymerization of Isoprene on the Stabilization of Synthetic Rubbers and Copolymerization. Seguiram-se a nomeação para a presidência do ICECHIM, o principal laboratório de investigação química da Roménia (1965), a condecoração com a Ordem do Mérito Científico de 1ª Classe (1966), a Presidência do Conselho Nacional da Ciência e Tecnologia, criado para si (1970), o ingresso na Academia Romena das Ciências (1974), a Presidência do Conselho Nacional da Cultura e Educação (1975). Tudo isto em estreito – e inequívoco – paralelo com a firme e imparável ascensão do seu marido no interior do Partido Comunista e à frente dos destinos da Roménia.

A mesma ganância que fez Imelda Marcos juntar uma obscena colecção de 3000 pares de sapatos terá, numa bem mais retorcida versão, levado Elena Ceausescu a acumular títulos e distinções e a construir um impressionante curriculum, recorrendo, para tanto, aos mais ínvios e tortuosos métodos. Se Evita quis ser lembrada pela sua generosidade e bondade para com os descamisados, Elena de tudo fez para criar e consolidar uma imagem de inteligência, competência e sabedoria que estava longe de possuir.

Sabe-se hoje que se contava entre os seus planos receber um Nobel. Que as viagens oficiais do casal Ceausescu eram precedidas de nada discretas diligências junto das principais universidades do país em causa, no sentido de lhe serem atribuídos – espontaneamente, claro – doutoramentos honoris causa. E que chegaram a frustrar-se ou a estar em risco algumas dessas viagens ante a recusa, peremptória, de várias universidades, irredutíveis apesar das pressões diplomáticas e políticas “ao mais alto nível”*. Já então no Ocidente se questionava abertamente a autoria dos trabalhos de Elena – que a incansável máquina de propaganda do regime romeno se encarregava de distribuir, traduzidos, pelas bibliotecas científicas de referência. As suspeitas radicavam em raras, mas esclarecedoras, prestações públicas em que aquela exibira uma confrangedora ineptitude em matérias em que seria perita e nas denúncias que, clandestinas, chegavam da comunidade científica romena.

Só com o fim da era Ceausescu a verdade emergiu. Acerca da extorsão a que haviam sido submetidos inúmeros cientistas, desapropriados, sob ameaça de represálias, dos resultados de anos de paciente e dedicada investigação, os quais eram publicados e, sendo o caso, patenteados por Elena, em seu nome e proveito. Mas também quanto à falta de capacidades intelectuais e de qualificações básicas desta para poder sequer aspirar a tal carreira. São especialmente ilustrativas as circunstâncias em que obteve o seu doutoramento: a recusa inicial da sua tese pelo respeitado Prof. Simionescu (que por isso foi afastado da universidade e cujos trabalhos foram tornados inacessíveis, como se o seu autor jamais houvesse existido), a sua aceitação por um académico menor (que com tal feito se lançou numa fulgurante carreira) e, last but not the least, a prova, que não decorreu na data e local marcados e de forma pública, tendo sido antecipada e realizada à porta fechada. Elena não chegou a comparecer, tendo enviado, através de agentes de Securitate, a sua defesa gravada em cassette, não fosse ter de responder a alguma questão do júri…

Durante mais de trinta anos, Elena fez-se passar por grande académica e investigadora, na mira do prestígio que julgava daí lhe advir. Fê-lo à custa da coacção e da exploração exercidas sobre cientistas capazes mas indefesos, os quais foram injustamente privados do reconhecimento e dos frutos económicos do seu trabalho e remetidos a um anonimato forçado, a troco de paz e sossego. Conta-se que no julgamento sumário que antecedeu a sua execução, no Natal de 1989, um dos oficiais se lhe dirigiu repetidamente usando a alcunha por que era conhecida nos meios científicos -codoi”, a forma peculiar e por demais reveladora da sua ignorância, como se referia ao dióxido de carbono (CO2). A visão disso e do que se seguiu poderá até ter sido uma catarse para muitos. O mal feito, esse é mais difícil de reparar: a autoria de muitos trabalhos e patentes subsiste inalterada e é possível que decorram muitos anos até ser reposta a verdade. Ou que isso nunca venha a acontecer, full scale. Porque muitos daqueles que foram despojados morreram já e muitos outros partirão sem ter a satisfação de ver o seu trabalho e o seu mérito reconhecidos.
 
 

* Foi o caso de Oxford, Cambridge e da major league das universidades americanas. Mas não já das Universidades de Atenas, de Lima, de Buenos Aires, de Nice, de Quito, Teerão, de Amman, de Manila, do Central London Polythechnic (actual University of Westminster) que lhe atribuíram doutoramentos honoris causa e, bem assim, da Royal Society of Chemistry e da Illinois Academy of Sciences, que a admitiram como membro.
 
 
Joana Vasconcelos
 

3 comentários:

  1. Há muito que nada me deixava tão perplexo!
    Vou ser apanhado muitas vezes a rir sozinho ...codoi!!! :)
    Um trabalho excelente, obrigado.

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  2. Nos idos de 1976 ou 77, estava eu em Copenhague quando Ceausescu a e sua mulher fizeram uma viagem de Estado à Dinamarca. Após desembarcar do avião a Srª Ceausescu foi impedida de entrar no país por um diligente funcionário da Alfandega que a mandou despir o casaco de pele de leopardo que trazia vestido, alegando que se tratava de uma espécie protegida, e como tal proíbida de entrar. A indignada senhora recusou despir o casaco, e o funcionário recusou deixa-la passar. Foi o marido que, dizem, furioso, e depois de quase uma hora de negociações que envolveram os governos de ambos os países, a obrigou a voltar do avião, despindo o casaco e enfiando um outro, para que finalmente podessem em conjunto encetar a famosa viagem de Estado. A notícia veio nos jornais da época, muito comentada e discutida. Curioso que não ouvi de nenhum dinamarquês qualquer reclamação contra a actuação firme do funcionário alfandegário. A madame nunca mais voltou à Dinamarca.

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