sábado, 24 de setembro de 2016

Açores, 1959.

 
 
 
 
Angra do Heroísmo. Carta militar, 1959
 
 
Edouard Henri Georges Toudouze (1877-1972) foi um prolífico escritor e historiador bretão, que assinou os seus livros com vários nomes, entre os quais tão-só Georges Toudouze. Na sua vasta produção literária, a qual não parece ter deixado grande rasto, encontra-se a série «Cinq jeunes filles», que deram lugar a treze romances para adolescentes. Um deles passa-se nos Açores – ou melhor, nos mares em seu redor – e foi originalmente publicado em 1959, com ilustrações de Henri Faivre, sendo editado entre nós dez anos depois, com tradução de Maria de Barros, com a chancela da Editorial Verbo. O livro, naturalmente, não descreve ao pormenor o arquipélago dos Açores, sendo apenas revelador, quanto muito, de um certo olhar «inocente» e vagamente informativo sobre um destino tido por «exótico».
 


  
- Comandante, sabes o que é aquela coisa que se avista com pouca nitidez ao lume da água?
         Martiale, que, de compasso em punho, trabalhava sobre um mapa do Atlântico, onde ia traçando a rota, levantou a cabeça e olhou para Marguerite Trévarec, que tinha aparecido na escada interior:
         - Com certeza; estive a observá-la há pouco com o binóculo: é a Terceira – isto é, a «terceira» ilha dos Açores, como o próprio nome indica. Vamos passá-la por estibordo para recuperarmos o mais possível o tempo perdido com a calmaria…
         - É habitada, a Terceira?
         - É, como todas as outras ilhas.
         - O que quero dizer é se tem vida comercial? Lojas? Coisas que se possam comprar?
         Martiale pousou o compasso e o lápis:
         - Por que são essas perguntas, Gait?
         - É que, como comissário de bordo e, portanto, responsável pela alimentação, devo informar-te de que o nível da despensa desce a olhos vistos.
         - Mas nós enchemo-la antes de largar de Gibraltar!
         - Pois é, comandante: mais um dia de navegação e serei obrigada a recorrer às conservas com feijão-verde.
         - É impossível. Tinhas calculado que os géneros frescos nos chegavam, sem tocarmos terra, até…
         - Porque fiz as contas para cinco estômagos e sem prever estes dias de calmaria: afinal somos seis, e durante estes três dias não deixámos de comer três vezes por dia, sem contar que só o «pendura» come e bebe tanto como nós as cinco juntas. Não é um homem vulgar, esse fenómeno… É um esfomeado ambulante, a quem o ar do mar ainda aguçou mais o apetite. Serve-se três de tudo o que se lhe dá – aliás com a carinhosa cumplicidade da Paulette, desvanecida com o seu antigo companheiro no jantar no Lion. Eu já nada posso fazer e só vejo duas soluções: ou deitamos ao mar o Jean Hardy, antes que ele acabe com as reservas, ou fazemos uma escala de duas horas na Terceira, para comprar géneros frescos… Que achas?
          - Terceira… umm… menos comprida do que S. Miguel e mais larga… umm… inacessível, excepto a leste pela Praia, e a sul pela baía dominada pelo vulcão do monte Brasil… Campos de feijão-verde…
                - Muito obrigada… feijão-verde tenho de sobra - interrompeu Gait.
                - Criação de bois… trigo… milho… frutas…
         - Está a crescer-me água na boca: peço uma escala de duas horas.
         - Concedida. Vamos acostar ao molhe da cidade: Angra do Heroísmo.
         - Bonito nome… mas o que interessa é encontrar bons bifes…
         Martiale fechou o livro, enrolou o mapa e subiu para o convés com Marguerite.
         - Vira dois graus para norte e aponta para aquela ilha - ordena Martiale a Geneviéve, a timoneira,
         - O quê? Estamos atrasadas e ainda vamos a terra?
         Marie-Antoinette, que não esperava esta alteração de rota, manifestou a mesma surpresa. Mas Martiale explica:
         - Reabastecimento exigido pela Gait. Duas horas no porto de Angra: depois procuraremos recuperar…
 
Georges Toudouze
 
 
 
 

2 comentários:

  1. Boa tarde. Já acompanho o seu blog há algum tempo e quero apenas agradecer-lhe por tudo aquilo que já aprendi ao lê-lo e desejar que continue por muito mais tempo. As histórias que partilha, sobretudo, sobre Portugal (e resto do mundo) dos anos 30 e 40 são deliciosas. Obrigado.

    Cumprimentos.

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  2. Muito obrigado por tão simpáticas palavras, um incentivo para continuar na busca destes textos de estrangeiros sobre Portugal, uns mais conhecidos, outros menos.

    Cordialmente,

    António Araújo

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