quarta-feira, 27 de março de 2019

Abrantes em Burgos.

 
 

 
 
 
A Capela da Conceição ou de Santa Ana é um dos pontos altos da visita à Catedral de Burgos, um dos expoentes do gótico flamejante em Espanha. A sé burgalesa é um magnífico retalho de arte, com sucessivas capelas marcadamente independentes em estilo, além do extraordinário zimbório que domina o interior e o exterior do templo.
 
A capela foi construída como capela funerária para D. Luis de Acuña y Osorio (1426-1495), Bispo de Burgos, ainda em vida deste. Surgiu, ocupando o espaço de duas capelas originais, pela mão de um dos principais arquitectos do templo, Juan de Colonia, que morreu antes de terminada a empreitada, concluída em 1488 pelo seu filho Simón de Colonia.
 
Por essa altura já o escultor Gil de Siloé, omnipresente em tudo o que há de melhor em Burgos, trabalhava no retábulo que é hoje considerado um dos melhores exemplos da escultura tardo-medieval e que se encontra nesta pequena capela. O blogue Viajar con el Arte (http://viajarconelarte.blogspot.com/2014/02/la-capilla-de-la-concepcion-en-la.html), de grande utilidade para um visitante ávido de boa arte sacra, tem uma descrição pormenorizada da capela e também do altar.
 
O elemento central é uma genealogia da Virgem Maria a partir da Árvore de Jessé. Este, como sempre, dorme. Mas confunde-se de forma sublime com as raízes da árvore, em cujos troncos figuram os Reis de Judá, ladeando o encontro de Santa Ana e São Joaquim na Porta Dourada de Jerusalém. A cena é descrita no Proto-Evangelho de Tiago e está, através da Lenda Dourada, muito presente na tradição cristã. É o momento da concepção imaculada que veio a ser decretado dogma por Pio IX em 1854. Daí o nome de Capela da Conceição.
 
 

 
 
Em cima, os troncos da árvore cumprem-se numa flor, aos pés da Virgem com o Menino, ladeados estes por duas figuras femininas que representam o Antigo e o Novo Testamento, aquela de olhos vendados. O altar culmina com um Calvário, estando aos pés do Crucificado as armas do Bispo Acuña. Este repousa em frente, num belíssimo túmulo de alabastro, obra de enorme qualidade do escultor Diego de Siloé, filho do autor do altar e figura que transita as artes familiares para a Renascença espanhola.
 
O Viajar con el Arte falha apenas pela ausência de explicação para aquela que é, para o visitante luso, a surpresa maior na Capela da Conceição: a profusão de armas portuguesas, no altar, nos frescos do arco e nos vitrais. São armas “plenas”, próprias do monarca português, sem “diferença” heráldica. Contudo, não há qualquer referência a uma ligação real portuguesa à construção da capela ou do seu esplendoroso altar. Só no fim do relato do audioguia surge a explicação plausível – a ligação aos Duques de Abrantes.
 

 
 
 
Recuemos a 1640. Por alturas da Restauração da Independência, alguns nobres portugueses permanecem fiéis a Felipe IV de Espanha. Entre esses está D. Afonso de Lencastre, filho segundo do terceiros Duques de Aveiro e “bis-neto” (trineto do lado do pai, tetraneto do lado da mãe) do Rei D. João II. A lealdade é recompensada com a concessão de dois títulos espanhóis com referência a terras portuguesas: Duque de Abrantes e Marquês do Sardoal. A família permaneceu em Espanha, vindo a adquirir vários títulos pelas admiráveis teias de casamento na aristocracia espanhola.
 
Foi o 9.º Duque de Abrantes, D. Ángel María de Carvajal y Téllez-Girón, que patrocinou, entre 1868 e 1870, o restauro da Capela de Santa Ana. Era à época Presidente do Real Cuerpo de la Nobleza de Madrid mas Espanha vivia tempos de tumulto. A Rainha Isabel II fora deposta por uma revolução em Setembro de 1868, acabando com a agonia do seu reinado, mostra das tensões entre o liberalismo progressista, o absolutismo carlista e um centro moderado – porventura não muito distante da actual configuração política espanhola entre PSOE, PP e Ciudadanos. Seguir-se-iam uns anos de incerteza, o reinado de Amadeu de Sabóia e a efémera Primeira República.
 
 
 



 
O pretexto do restauro parece ter sido uma ligação familiar entre o Bispo Acuña (que parece ter tido descendência, legítima, antes de ser ordenado padre) e o 9.º Duque de Abrantes. Inquestionável é que D. Ángel María de Carvajal y Téllez-Girón quis sublinhar a ligação portuguesa através da repetição das armas reais lusas, encimadas pela coroa ducal. No vitral estão ladeadas por um D. e um A., para “Duque de Abrantes”.
 
Nas elaboradas pinturas murais (de um pintor António Lanzuela, que Abrantes contratou), que replicam de forma exemplar os motivos da talha dos dosséis do altar, as armas portuguesas estão rodeadas pelo Colar da Ordem de Carlos III, criada um século antes e da qual o Duque de Abrantes era Cavaleiro Grã-Cruz. Estão, ainda, em ambos os lados da cena central da predela do altar – um Cristo rodeado pelos Instrumentos da Paixão, as Arma Christi, Nossa Senhora e o Evangelista a um lado, Maria Madalena e uma outra mulher ao outro – separando-os desta as figuras de S. Pedro e de S. Paulo.
 

Os restantes elementos da encomenda-restauro de Abrantes são prova da referida teia matrimonial e reflectem o orgulho na sua ascendência entroncada mas várias grandes casas de Espanha, uma espécie de árvore para “rivalizar” com a de Jessé: armas de Fernández de Córdoba (Medinaceli), Acuña, Téllez de Girón (Osuna) e Pimentel (Benavente), referentes à mãe do Duque. Também armas de Carvajal, Sande (Valdefuentes) e, claro, as armas reais de Lancaster com a liga da Ordem da Jarreteira e o seu delicioso Honi soit qui mal y pense. Uma mensagem para os detractores do patrocínio ao restauro?
 
Muito curiosamente, o mesmo 9.º Duque de Abrantes fixou residência em Lisboa, pelo menos durante dois anos, entre 1874 e 1876. Inspirado pelos trabalhos em Burgos ou apartando-se apenas da República, D. Ángel de Carvajal parece ter escolhido o Palácio das Laranjeiras. O Lourenço Correia de Matos, a cujas apuradas faculdades heráldicas e genealógicas recorri para destrinçar várias dúvidas deste emaranhado, encontrou na imprensa da época variadíssimas referências à presença de Abrantes em Lisboa, às suas idas ao São Carlos e aos ameaços de regresso à Madrid já liderada por Alfonso XII na sequência da Restauração.
 
A ligação dos Abrantes a Portugal não se fica por aqui. Fruto do segundo casamento do 9.º Duque, D. Manuel de Carvajal y Jiménez de Molina casaria em Lisboa, em 1888, com Maria Clementina Pinto Leite, com descendência, como me contou o Embaixador Manuel Côrte-Real a partir da sua infinita cultura histórica. O casal seria muito próximo do Rei D. Carlos e da Rainha D. Amélia e o soberano português concedeu mesmo ao filho do Duque de Abrantes o título de Conde de Jiménez de Molina em 1892. A ironia de um título português com nome espanhol para o filho do titular de um ducado espanhol com nome português.
 
O actual e 15.º Duque de Abrantes é D. José Manuel Zuleta y Alejandro, General do Exército espanhol e Chefe de Gabinete da Rainha D. Letizia de Espanha. A sua filha e herdeira usa o título de Marquesa do Sardoal.
 
Ademar Vala Marques
 

1 comentário:

  1. Artigo muito interessante. Como Lancastre (e Abrantes) que sou não simpatizo com esta deriva filipina daquele meu parente, e acho algo pretensioso as armas plenas. Parabéns ao autor pela investigação e ao Lourenço pela preciosa contribuição. Quanto ao mais, "a ligação dos Abrantes a Portugal" (como inocentemente refere o autor) - e à Casa de Bragança, já agora, é absolutamente telúrica.

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