domingo, 17 de março de 2019

Leaving Neverland.

 
 




         Pois também fui à HBO ver na televisão o documentário de que todos falam, Leaving Neverland. Quatro horas na cama com Michael Jackson, duas vítimas – e as suas famílias – a falarem dos abusos sofridos às mãos do cantor e músico. Os pormenores das descrições de sexo, por muito que nos impressionem e por muito que pensemos  que estão lá para manipular as emoções dos espectadores, são essenciais, absolutamente essenciais, para percebermos mesmo o que ocorre numa cena de sexo entre um adulto e uma criança; como tudo começa com pequenos gestos, os avanços e recuos, a rotina instalada, os silêncios cúmplices. Podemos desconfiar de algumas coisas: só duas vítimas falaram, entre centenas, e outras alegadas vítimas continuam a negar a pés juntos a maldade de Jackson, Além disso, não se ouvem outros testemunhos, de empregados de Jackson que noutras ocasiões depuseram contra ele – qual a razão para não os ouvir agora, ou pelo menos tentar? Menos convincente é o estafado argumento de que isto é cobardia e traição, uma vez que Michael Jackson morreu e não se pode defender. Desde logo, porque, se assim fosse, nunca se poderia falar dos crimes ou de outros gestos praticados por pessoas falecidas. Por outro lado, porque Jackson morreu mas tem milhões de fãs em todo o mundo, prontos a defendê-lo, por vezes de forma agressiva, ameaçadora até (o filme mostra-o). E Michael Jackson tem uma família numerosa e poderosa, que aliás já veio a terreiro atacar Leaving Neverland. E tem uma herança de milhões, pronta a pagar advogados, legiões de investigadores, etc., etc. Morto, mas não indefeso.

         A questão já não é tanto a de saber se Jackson é ou não culpado. É que, além do depoimento destas duas vítimas (que, no caso de uma delas, nem sequer é novo), outras houve no passado, e que falaram. O cantor foi envolvido duas vezes, pelo menos, e em datas distintas, em acusações de pedofilia, chegou a ser preso. O que perturba no documentário é vermos os mecanismos de manipulação das crianças e das suas famílias, o modo como Jackson usava o seu poder e fama para manietar e calar as vítimas. Michael Jackson era um pedófilo, mas não era um pedófilo qualquer, um tarado de rua, nas raias da miséria humana. Entre ele e as suas vítimas (e aqui incluem-se os familiares das crianças) existia uma colossal assimetria de poder e dinheiro, muito maior do que nos casos «normais» de pedofilia. Também por isso, muitos irão ver o documentário, e a celebridade do agressor volta-se agora contra ele. O que vemos no filme não são casas vulgares de classe média ou ambientes de subúrbio, mas o lendário rancho de Neverland e o seu mundo de fantasia, agora impregnado pelo odor fétido de crimes atrás de crimes. É perturbador perceber – e vamo-nos apercebendo disso lenta e compassadamente – que existia e existe uma ligação íntima, umbilical, entre esse mundo de fantasia e inocência e um universo negro de abusos de crianças de sete anos, como se, além de roubar-lhes a infância, Jackson tivesse conspurcado para sempre o seu – e o nosso – imaginário infantil, aquilo que projectamos ser um mundo de brincadeiras e risos. Ao olharmos para o parque de diversões de Neverland, para as tendas dos índios, para a sala privada de cinema abastecida de chocolates e guloseimas de toda a espécie, não podemos deixar de pensar que tudo isso era fruto de uma mente doentia, que amava as crianças a ponto de abusar delas, mas mantinha a frieza necessária a ocultar os seus crimes e chantagear as vítimas.

         O documentário é muito importante porque, sob pretexto voyeurístico de olharem para a cama de Jackson e para os interiores do seu delirante rancho, muitas pessoas irão perceber à séria – e pela primeira vez – o que é ser vítima de um pedófilo, os mecanismos que as crianças segregam, julgando-se a si próprias culpadas, assumindo que são elas as responsáveis, não o pedófilo, e os efeitos devastadores que tudo isso tem no seu crescimento e na existência das suas famílias. Um dos pontos mais dilacerantes do filme é o testemunho final das mães das vítimas, eternamente culpadas por terem deixado os filhos na cama do agressor, enquanto dormiam tranquilamente no quarto ao lado, gozando as delícias feéricas de Neverland. E não, não basta etiquetar Jackson como «tarado» e seguir em frente; é essencial mergulhar nas irreversíveis marcas e nas fundas sequelas, nas mazelas de corpo e alma, que essa «taradice» deixou neste mundo estranho, traços que irão perdurar por muitos, muitos anos. Michael Jackson está morto, a pedofilia não. Até por isso, Leaving Neverland é um documentário que todos deveriam ver.

 
 
 

2 comentários:

  1. Na minha modesta opinião, estava à vista de todos, só que ninguém quis ver e acho estranho que só agora se fale nisso.

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  2. A minha opiniao quem tem dinheiro e intocavel e vuneravel au mesmo tempo ja nao esta mas aqui más as pessoas sigue tentando tira proveito da situasao

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