quinta-feira, 14 de março de 2019

Antes que seja tarde.


 

 
Por muito cepticismo que tenhamos sempre que existe, merecida ou imerecidamente, uma onda de lapidação colectiva contra uma pessoa ou uma classe profissional, a revista Visão de hoje merece ser lida. Por vezes, é fácil retirar expressões desastradas (e desastrosas) do contexto de uma sentença judicial e, à mistura com alguma ignorância jurídica e bastante má-fé, construir a partir daí um libelo acusatório.

Simplesmente – e independentemente do peso que tiveram numa sentença, isto é, mesmo que sejam meros obiter dicta, considerações marginais e laterais que em nada influenciam o conteúdo e o sentido final e uma decisão –, há frases que não têm «contexto» que as salve nem argumento que as redima. Tiradas ou não do contexto, exprimem um modo de pensar que nos deve fazer pensar. Nada de generalizações apressadas, nada de julgar que todos os juízes são assim ou mesmo que os juízes que escreveram aquilo são assim no todo das suas vidas. Uma frase infeliz, por muito infeliz que seja, não retrata uma personalidade. O que importa, pois, e com a máxima serenidade, é meditar, meditar um pouco, sobre como é possível escrever coisas destas:
 
«Instada sobre porque nunca foi ao hospital na sequência dos maus-tratos, disse que tinha vergonha de o fazer, o que não é muito plausível para quem consegue prostituir-se» (Tribunal da Relação do Porto, 2014)
 
«Uma mulher que comete adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral» (Tribunal da Relação do Porto, 2017)
 
«A senhora não tinha filhos, portanto, a primeira coisa que podia fazer era sair de casa» (Tribunal de Viseu, 2018)
 
«O facto de a ofendida, antes de abandonar o lugar onde ficou livre o arguido, ter anotado a matrícula do automóvel daquele, pela presença de espírito que revela, é pouco compatível com um grande abalo psicológico» (Tribunal da Relação do Porto, 2007)
 
«Conversa pornográfica é troca de palavras com a criança ou com terceiro diante da criança de modo a excitar sexualmente a vítima. Não está incluído o monólogo» (Tribunal da Relação de Coimbra, 2018)
 
         Não vale a pena dar mais exemplos, entre tantos que a revista Visão apresenta (alguns discutíveis e que aconselham uma leitura integral das sentenças). Perante coisas destas, bastante recentes, mesmo parecendo medievais, seria importante, e até imperioso, que alguém – o Centro de Estudos Judiciários, o Ministério da Justiça?, o Conselho Superior de Magistratura? – fizesse um levantamento exaustivo e sistemático do modo como estas questões são tratadas nos tribunais. Violência doméstica, crimes sexuais, maus-tratos, por aí fora. Uma análise rigorosa, sem preconceitos de um sentido ou de outro, sobre el sexo de sus señorias, título de um livro algo leve e jocoso que, há alguns anos, recenseou o modo como os tribunais espanhóis abordam a sexualidade. Ou Antologia del disparate judicial, de Quico Tomás y Valiente, um retrato também jocoso, em jeito de brincadeira, que, como é óbvio, não se propõe como modelo para o estudo que deve ser feito, serena e desapaixonadamente. Um estudo sobre uma realidade nada leve e jocosa, pois o tempo não está para brincadeiras e não, não adianta mais esgrimir o argumento de que isto é «pressão mediática» ou uma crispação artificial de uma ínfima parcela da opinião pública e das redes sociais, atreitas a crispações. É mais do que isso, não adianta negar. Até para salvaguarda do prestígio do poder judicial, que não pode nem deve  ignorar mais este assunto, é tempo de agir. Antes que seja tarde.

 




 

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