segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Quando um navio abandonado nos faz viajar pelos fantasmas do império.

 

 

O que há de mais eletrizante no romance Angoche, Os fantasmas do Império, de Carlos Vale Ferraz, Porto Editora, 2021, é o aproveitamento de um enigma aparentemente irresolúvel para viajarmos aos derradeiros anos da vida imperial portuguesa. Um navio mercante partiu de Nacala em 23 de abril de 1971, com destino a Porto Amélia (hoje, Pemba). Ia com 24 almas e um importante carregamento de material de guerra. No dia seguinte, um petroleiro encontra o Angoche à deriva, incendiado e sem ninguém a bordo, parecia mais uma dessas histórias de navios-fantasmas. Abre-se inquérito, especula-se quanto ao facto de ter havido duas explosões, atribuiu-se tudo ao terrorismo. Depois do 25 de Abril, os relatórios da PIDE/DGS. O romance do autor da obra-prima Nó Cego questiona a moralidade e o egoísmo, mas o que ficará desta digressão e inquirição, onde se aparenta um trabalho de escrita de crime e mistério, muita conversa do autor com o tio de Dionísio na Ericeira, é irmos às entranhas da guerra em Moçambique, forjam-se amizades entre os homens da Marinha, o capitão-tenente Dionísio era então oficial de informações e as nótulas históricas que o autor introduz como de primordial importância, não exatamente para apurar o desempenho de temíveis serviços secretos sul-africanos que se teriam servido do Angoche para mandar um sério aviso – Moçambique não poderia ser independente. Dentro do círculo em que se move Dionísio há uma ou outra figura que recebe destaque, Saúl, sabia muito de missa sobre o Angoche, entram no terreno literário os homens do BOSS, os Serviços de Informação e Segurança da África do Sul. Era logo evidente na primeira fase de inquérito a contradição das mensagens, houvera manipulação ou distorção para que a mentira falasse mais forte.

É neste contexto que Carlos Vale Ferraz nos desvela uma panorâmica do que foi efetivamente a luta pela independência de Moçambique, dá-nos quadros de intensa vibração entre o que era o norte e o sul, o papel das potências racistas que subordinaram a política portuguesa a um quadro de maior vigilância de terrorismo através do Exercício Alcora, movem-se figuras exuberantes, por vezes completamente dissonantes, como Kaúlza de Arriaga e Jorge Jardim, é magistral o retrato do chefe de brigada da PIDE, Casimiro, há as mulheres de relações fáceis, algumas delas profundamente amadas, aparece um agente da secreta francesa, Dominique de Roux, que andará por Lisboa à volta o 25 de Abril. Tudo isto nos vai aparecendo em encontros entre o autor e o seu tio Dionísio, ele vai soltando a língua com muito vagar, o mistério em espiral deve permanecer até ao fim, Saúl aparece e reaparece, é um cafajeste, ainda por cima ligado a Margarida Palma Vidigal, detentora de muita informação, e há Van den Bergh, o chefe da BOSS, tratado como um porco ou um amoral. E o autor, inopinadamente, dá-nos frescos do melhor recorte literário:

“Os marinheiros de todo o mundo conhecem a Costa dos Esqueletos, no deserto do Namibe. Um local árido, no Atlântico Sul, onde a corrente fria de Benguela choca com o ar escaldante do continente, provocando temporais que atiram os navios contra os baixios de rochas cortantes. Pouco ou nada cresce nas areias do Namibe, e raros animais conseguem adaptar-se a um meio ambiente tão inóspito (…) As instalações discretas, de casernas pré-fabricadas, quase invisíveis nas areias da Costa dos Esqueletos, escondiam a prática de ações fora de qualquer limite e à margem de regras elementares de humanidade por parte dos dirigentes de Pretória, em particular dos polícias sul-africanos. Os barracões, semelhantes aos dos campos de concentração nazis, esconderam laboratórios para a realização de tenebrosas experiências de guerra química e biológica, desenvolvidas pelos Serviços Secretos Sul-Africanos”. Também o que se passa em Moçambique é alvo do impiedoso olhar clínico do autor: “No desconjuntado triângulo do poder em Moçambique, os vértices lutavam uns com os outros para ocuparem o topo. O governador-geral e o comandante-chefe apenas se relacionavam para indispensáveis assuntos de serviço, mas Kaúlza, como Dionísio tivera oportunidade de verificar, também se entendia mal com Jardim, um espinho permanentemente cravado na vaidade do cabo de guerra, através do domínio que o engenheiro exercia sobre as milícias de negros, a DGS, a comunicação social, o seu jornal e a sua rádio, a influência nos países vizinhos, as amizades e cumplicidades entre ele e os políticos e militares da África do Sul, da Rodésia, os dirigentes do Malawi e até da Zâmbia. Jardim ignorava o governador-geral, que por sua vez não lhe reconhecia outro estatuto do que um fura-vidas agente de negócios, e intrigava contra o jornal, espalhando a ideia da sua incapacidade política e militar”.

Há mortes estranhas, como a de Margarida, fez-se constar que se suicidara. Chega o fim da comissão de Dionísio em Moçambique, nestas consecutivas conversas entre o autor e o seu tio Dionísio, apura-se que o Angoche o manchara na sua dignidade e o obrigara a envolver-se nos acontecimentos do 25 de Abril, entramos num universo patético, Jorge Jardim ameaça com uma solução de independência. Há um encontro em Madrid entre dois homens de informação, Dionísio e Peter W, oficial inglês. Este revela a Dionísio que a má sorte do Angoche e dos seus tripulantes caiu no meio do jogo em que as fações do governo da África do Sul travavam dentro da estratégia total. Destas conversas entram e saem dos bastidores outros oficiais da Marinha como Saúl e Cândido, fala-se das ligações de Saúl a Calvão, este ligado ao negócio de armas. Saúl confessou a Dionísio a operação dos Serviços Secretos sul-africanos sobre o Angoche. Calvão merece destaque, ele que ganhara nome na Operação Mar Verde, o assalto a Conacri, aparece ligado a várias insurreições, mas o império desmorona-se.

E nesse mundo em cinzas, o autor socorre-se de outra alegoria, a casa do tio Dionísio desaparece num incêndio criminoso. “As câmaras de vigilância e os sensores contra estranhos, que protegiam a vivenda, haviam sido desligados, os fios cortados. A central de controlo da empresa de segurança não recebera qualquer sinal de intrusão. O corpo do meu tio nunca foi encontrado, nem descoberta a causa do incêndio, nem os autores”. Novo silêncio, como no atentado ao Angoche, os grandes criminosos hão de sair impunes. E os mortos não falam.

De leitura obrigatória. 


Mário Beja Santos



 


Sem comentários:

Enviar um comentário