quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Inimizade privada vs. inimizade pública.

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A man cannot be too careful in the choice of his enemies
Oscar Wilde, The Picture of Dorian Gray

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O vocabulário português, ao contrário de outros (pense-se, por exemplo, na distinção entre enemy e foe), não possui substantivos capazes de expressar por si a polémica e significativa distinção, evidente no latim e no grego antigo, entre inimizade privada e inimizade pública. À palavra inimigo correspondiam em latim dois substantivos: inimicus e hostis. O mesmo acontece no grego: echtrós e polémios [i]. O inimicus – ou o echtrós – é um mero adversário, um oponente. Pelo contrário, o hostis – ou o polémios – corresponde a um inimigo público, no sentido de que a sua inimizade afecta toda uma comunidade e não apenas o seu oponente [ii]. É por isto mesmo que, no espírito desta distinção, vem escrito no Primeiro Livro dos Macabeus:

Bene sit Romanis, et genti Judæorum, in mari et in terra in æternum: gladiusque et hostis procul sit ab eis.[iii]
         Ou
Et vocavit Simon duos filios seniores, Judam et Joannem, et ait illis: Ego, et fratres mei, et domus patris mei expugnavimus hostes Israel ab adolescentia usque in hunc diem: et prosperatum est in manibus nostris liberare Israel aliquoties.[iv]

Enquanto no Evangelho Segundo São Lucas se escreve:
Sed vobis dico, qui auditis: diligite inimicos vestros, benefacite his qui oderunt vos.[v]

Estas passagens bíblicas não encerram, de facto, o mesmo tipo de inimizade. O inimigo que São Lucas manda amar não é, nem poderia ser, o mesmo inimigo contra o qual foi estabelecida a aliança entre os judeus e os romanos, nem é o mesmo inimigo contra o qual Simão resistiu. Na passagem do Novo Testamento, encontramos a referência a uma situação típica de inimizade privada, estabelecida no confronto entre simples adversários ou competidores. A inimizade privada tem a sua origem na ofensa dirigida contra um bem eminentemente pessoal, ou na percepção ou iminência dessa ofensa [vi]. Nas duas outras passagens referidas, pelo contrário, não estamos perante meros adversários, mas sim perante inimigos de um povo, de uma comunidade, ou seja, inimigos públicos [vii]. Aqui, o bem agredido é de natureza supra-pessoal, dizendo respeito a toda uma colectividade, porque a ameaça real e contínua é dirigida não contra pessoas particularizáveis mas sim contra a unidade política e contra a existência de um Estado ou de uma comunidade.
Para Carl Schmitt, só é inimigo o inimigo público, ou seja, aquele que se encontra em estado de hostilidade relativamente a toda a comunidade. A inimizade privada, como se disse, focaliza-se na agressão a bens pessoais ou, pelo menos, na percepção dessa agressão. Já a inimizade pública visa a preservação da própria comunidade [viii], daí, em parte, o sentido existencial que Schmitt lhe confere. O inimigo privado é aquele que se odeia e, como realça Álvaro D’Ors, numa passagem que a lição schmittiana está manifestamente presente, “há experiência (...) de como a guerra não implica necessariamente o ódio ao inimigo, porque o ódio é pessoal, como o amor, e a hostilidade bélica acontece entre grupos organizados para fazer a guerra” [ix].
No Diálogo Protágoras, o sofista, explica a Sócrates o porquê dos atenienses exigirem pareceres técnicos em questões de arquitectura ou navegação e, pelo contrário, considerarem que qualquer pessoa é capaz de emitir a sua opinião em questões políticas. Protágoras responde, recorrendo ao mito de Prometeu, que quando o sentido da moral e da justiça foi distribuído entre os homens, Zeus mandou fazê-lo de forma igualitária, acrescentando que todos aqueles que sejam incapazes de participar da honra ou da justiça devem ser eliminados “como uma doença duma cidade” [x]. Este é o inimigo público. Próximo desta ideia, Thomas Hobbes refere no seu Leviatã que “os danos infligidos a quem é um inimigo declarado não podem ser classificados como punições. Dado que esse inimigo ou nunca esteve sujeito à lei, e portanto não a pode transgredir, ou esteve sujeito a ela e professa não mais o estar, negando em consequência que possa transgredir, todos os danos que lhe possam ser causados devem ser tomados como actos de hostilidade. E numa situação de hostilidade declarada é legítimo infligir qualquer espécie de danos” [xi]. Não é por mero acaso que na versão em latim desta obra, da autoria do próprio Hobbes, se traduz desta forma a primeira frase citada: “Malum inflictum hosti manifesto, nomine poenae non comprehenditur; quia hostes cives non sunt” [xii].
A inimizade privada é aquela que opõe meros adversários e que, por isso, se consubstancia na competição ou na concorrência: “o liberalismo procura dissolver o conceito de inimigo, pelo lado económico, no concorrente e, pelo lado do espírito, no oponente numa discussão” [xiii], diz Carl Schmitt, fazendo eco de Juan Donoso Cortés quando este escreve que “um doutrinado pelo pensamento enervante desta escola [liberal e racionalista] chamará aos outros estranhos, porque não tem força para lhes chamar inimigos” [xiv]. Pelo contrário, é na inimizade pública que, propriamente, se enfrentam os inimigos e, por isso, àquilo que os opõe não chamamos competição ou concorrência, mas antes guerra. Melhor que muitos tratadistas políticos, a Iconologia de Cesare Ripa [xv] expõe esta ideia ao colocar a Razão de Estado a cortar com uma vara todos os caules que crescem acima dos demais:
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É face a este inimigo público que a descrição da essência do político construída por Schmitt quebra profundamente com as correntes do pensamento político que o precederam. A distinção entre amigo e inimigo (público) não é aquilo que a política faz, mas sim aquilo que a política é. O político, nesta perspectiva, tanto contém a possibilidade de paz (a amizade), a possibilidade real de guerra (a inimizade) [xvi]. Daí que Schmitt afirme, de forma particularmente radical e quebrando com a tradição hobbesiana, que “se sobre a terra não houvesse mais que neutralidade, não só teria terminado a guerra, mas também a neutralidade em si mesma, de igual forma que desapareceria qualquer política, incluindo a de evitar a luta, se deixasse de existir uma luta em geral” [xvii].
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David Teles Pereira






[i] v. Carl Schmitt, The Concept of the Political, trad. norte-americana, Chicago, 1996, p. 28. Cingimo-nos à aproximação aos conceitos latinos sugerida por Carl Schmitt, optando por não abordar, aqui e a este propósito, outros conceitos de Direito romano identificáveis com esta realidade, mas cuja referência não encontramos no autor alemão, como perduellio (o inimigo interno de Roma, numa formulação algo simplista) e proditio ou, até, como peregrinus, conceito que chegou a ser utilizado como sinónimo de inimigo, fora do seu significado comum de forasteiro ou estrangeiro (a propósito destes conceitos v. Miguel Polaino-Orts, Derecho Penal del Enemigo – Fundamentos, potencial de sentido e límites de vigencia, Bosch, Barcelona, 2009, pp. 148 e 149; e Ana Isabel Barceló Caldeira Fouto, A Transformação do Conceito de Traição Medieval no Contexto da Recepção do Direito Justinianeu e a Construção do Conceito Moderno de Traição, Lisboa, 2005, pp. 30-32).
[ii] O hostis correspondia, no Direito romano, ao inimigo externo de Roma, isto é, aqueles indivíduos pertencentes a um Estado com o qual Roma tivesse entrado em guerra (v. Aquilino Iglesia Ferreirós, La Traición Regia en Leon y Castilla, in «Boletín de la Universidad Compostelana», vol. 75-76 (1967-1968), pp. 15; Miguel Polaino-Orts, Derecho Penal... cit, p. 148; e Ana Isabel Barceló Caldeira Fouto, A Transformação..., cit, p. 30).
[iii] “Felicidade para sempre aos romanos e ao povo judeu, por terra e por mar, e que a espada e o inimigo estejam sempre longe deles” (v. 1.º Macabeus 8:23).
[iv] “Simão chamou, então, os seus dois filhos mais velhos, João e Judas, e disse-lhes: «Eu, os meus irmãos e a casa de meu pai, temos resistido aos inimigos de Israel desde a nossa juventude até ao dia de hoje, e tivemos a dita de libertar muitas vezes a nação»” (v. 1.º Macabeus 16:2).
[v] “Digo-vos, porém, a vós que me escutais: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam” (v. Lucas 6:27).
[vi] v. Álvaro D’Ors, Bien Común y Enemigo Público,  Madrid, 2002, p. 47; George Schwab, Enemy or Foe: A Conflict of Modern Politics, in «Telos», n.º 72, 1987, pp. 196 e ss.; G. L. Ulmen, Return of the Foe, in «Telos», n.º 72, 1987, pp. 187 e ss; e Nuno Rogeiro, Inimigo Público – Carl Schmitt, bin Laden e o Terrorismo Pós Moderno, Lisboa, 2003, p. 21.
[vii] v. ibidem.
[viii] “Só é inimigo o inimigo público, pois tudo aquilo que se refere a um conjunto tal de pessoas ou, em termos mais precisos, a um povo inteiro, adquire, eo ipso, carácter público” (v. Carl Schmitt, The Concept..., cit, p. 28).
[ix] v. Álvaro D’Ors, Bien Común y Enemigo Público, Madrid, 2002, p. 51.
[x] v. Platão, Diálogos I, trad. castelhana, Madrid, 2002, p. 527; e Luis Gracia Martín, El horizonte del finalismo..., cit, p. 117 e ss.
[xi] v. Thomas Hobbes, Leviatã, trad. portuguesa,  Lisboa, 1994, p. 249. Na versão inglesa: “Lastly, harm inflicted upon one that is a declared enemy falls not under the name of punishment: because seeing they were either never subject to the law, and therefore cannot transgress it; or having been subject to it, and professing to be no longer so, by consequence deny they can transgress it, all the harms that can be done them must be taken as acts of hostility. But in declared hostility all infliction of evil is lawful”.
[xii] v. Thomas Hobbes, Leviathan, capítulo XVIII, 13.
[xiii] v. Carl Schmitt, The Concept..., cit, p. 26.
[xiv] v. Juan Donoso Cortés, Obras Completas de D. Juan Donoso Cortes, Marques de Valdegamas, tomo II, Madrid, 1946, p. 491.
[xv] v. Cesare Ripa, Iconologia, vol. II, 2.ª ed., Madrid, 1996, pp. 248 e 249.
[xvi] v. Carmelo Jiménez Segado, Contrarrevolución..., cit, p. 84; e Gabriella Slomp, Carl Schmitt..., cit, p. 8.
[xvii] v. Carl Schmitt, The Concept..., cit, p. 35.
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