terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Uma geração que passa.

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Storm, Montana, EUA.

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O meu pai nasceu em 1925, numa altura em que ninguém pensava que o doutor Salazar um dia viria a ser ministro. Quando acabou a II Guerra, tinha vinte anos, idade mais do que suficiente para perceber, mesmo na província atrasada de um país atrasado, que um conflito de enormes proporções devastara o coração da Europa. Apesar da Censura, através do circunspecto Diário de Notícias as pessoas iam acompanhando os avanços e recuos dos Aliados. Com a bomba de Hiroxima, ficaram a saber que tinham entrado numa coisa chamada «a era do átomo», um tempo paradoxal de incertezas e de equilíbrios. Entretanto, quem podia ia estudar para Coimbra, condição mais do que suficiente para arranjar um emprego no Estado, o que dava segurança, um nível de vida decente para os padrões frugais da altura e, acima de tudo, algum prestígio social. Não havia desemprego para quem tivesse estudado em Coimbra, ainda que houvesse fome para quem não tivesse emprego no Alentejo.
Como mais de 80% dos portugueses do seu tempo, o meu pai cresceu na província e ainda hoje recorda o compasso na Páscoa. Com o passar dos anos, o 25 de Abril e os fundos comunitários, o país pode ter mudado muito, mas ainda são coisas como a visita pascal ou o tempo das semeaduras que fazem vibrar o coração de quem cresceu na província e nela quer ser enterrado. O meu pai pertence à geração que fez o século XX de Portugal. Quando nasceu, vivia-se e morria-se num mundo rural em que a «política» era uma coisa longínqua de Lisboa, que em nada afectava os valores que se transmitiam sem sobressaltos de pais para filhos, sempre com a bênção da Santa Igreja. Nasceu num tempo em que apenas havia rádios alemães, sólidos e grandes como móveis de sala, e vive agora numa terra em que existem 9 milhões e 636 mil assinantes de telemóveis e onde as crianças só conseguem fazer os trabalhos de casa se os pais puderem pagar Internet de banda larga.
A geração do meu pai é a geração-charneira que fez a transição entre um Portugal agrícola e atrasado e um Portugal «europeu» que continua a não ser avançado. A geração que suportou todos os embates, todas perplexidades e todas grandes mudanças de um século. Educada no catolicismo, discutiu em cafés fumarentos o Drama de Jean Barois e chegou aos anos sessenta mergulhada na dúvida sobre «Deus, o que é?», como perguntava O Tempo e o Modo. Os meus pais pertencem à última geração francófila, que debatia com paixão filmes «de tese» mas acabou esmagada pelos reality-shows e pela tirania «do que o povo gosta». Uma geração que nunca falou inglês correctamente mas que sempre teve os impostos em dia. Que tinha escondidos em casa a Antologia da Poesia Erótica, números esparsos da Vértice e os livros do José Vilhena, que nunca se percebeu se era subversivo por ser ordinário ou se era ordinário por ser subversivo. A geração que começou a divorciar-se em massa porque não conseguiu definir um estatuto para as mulheres quando estas passaram a trabalhar fora de casa. De nada lhes valeram as leituras de Fritz Kahn. Uma geração que queria ser «moderna» e «avançada» na educação dos filhos e para isso seguiu com metódica aplicação as receitas do Doutor Spock, mas acabou por ser a primeira a ver a «droga, loucura e morte» entrar-lhe portas adentro. Nostálgica da «quarta classe do antigamente», dos cognomes dos reis e dos rios ultramarinos, teve de suprir em casa ou pagar a explicadores as falhas de um ensino objecto de sucessivas «reformas» imaginadas por engenheiros, todos com fama de génios. A geração que mais profundamente viveu o drama de não poder transmitir aos filhos os valores que tinha herdado dos pais e, pior ainda, que pressentiu ser impossível criar novos valores em tão pouco tempo – o tempo de uma geração-charneira. O meu pai pertence a uma geração e a um tipo social que nunca seriam capazes de nos dar a liberdade, mas que foram os únicos capazes de nos dar a democracia. Sem as classes médias, o dr. Soares teria estado a falar sozinho num palanque na Fonte Luminosa. Festejaram o 1º de Maio, mas foi o seu atávico conservadorismo e o medo do risco que salvaram Portugal de aventuras extremistas, de esquerda ou de direita. Fizeram comissões seguidas na guerra de África apenas «porque sim» e não porque acreditassem na mitologia de um Portugal do Minho a Timor. Com esse mesmo espírito aceitaram a descolonização, apesar de saberem que os dirigentes africanos nunca conseguiriam governar os países que lhes ofereceram. O tempo e milhões de mortos dar-lhes-iam razão. Durante o PREC, esta gente voltou a sintonizar a BBC à noite, discretamente, como nos tempos da II Guerra.
O conformismo nem sempre é defeito. Para que uns embarquem nas caravelas, são precisos muitos que fiquem em terra a cuidar dos gados e a amassar o pão. Destes, é raro falar-se. Aqui ninguém teve «percursos» habilidosos que começaram na extrema-esquerda e acabaram nos picos da Europa. Pessoas como o meu pai não têm «percursos». Têm carácter.  Entretanto, viram desaparecer o que restava do seu pequeno mundo, recebendo em troca um país com auto-estradas e hipermercados cheios de produtos «europeus». Chegam ao ocaso da vida um pouco confusos. O 11 de Setembro ou as agências de rating não os atormentam muito. Já não são coisas do seu tempo. Agora, vivem só para os netos. Mas todas as noites os telejornais lhes falam de gente que tem prazer em abusar de crianças da idade dos seus netos. Por tudo o que fizeram, mereciam melhor do que o folhetim Casa Pia, a Casa dos Segredos ou o major Valentim Loureiro. Portugal ainda não percebeu quanto lhes deve.



António Araújo


2 comentários:

  1. O seu pai nasceu em 1925, tendo se for vivo como muitos outros da mesma geração 85 ou 86 anos aparentemente era francófilo e falava inglês mal, ou seja era de uma classe bastante previlegiada
    Quando acabou a II Guerra, tinha vinte anos e não estava como muitos outros dstacado numa zona fronteiriça de Portugal numa barraca de lona, com uma mauser nas unhas e dois pentes de munições e idade mais do que suficiente para perceber, mesmo na província atrasada de um país atrasado, que um conflito de enormes proporções nada mudara em lado nenhum quanto aqueles que são tirados dos seus empregos para ir às sortes e os que lhe escapam.

    Apesar da Censura, lia quem sabia ler o século, comprado umas 20 ou 30 vezes por ano se era lavrador de meios ou lia-se em 2ª mão com 2 meses de atraso no barbeiro

    um tempo paradoxal de incertezas e de )desequilíbrios como todos os tempos para quem não pertence às cliques de merda

    Entretanto, quem podia ia estudar até à 4ªclasse ou fazia os estudos na tropa se ia para sub-oficial ir para Coimbra, para Lisboa ou para Farmácia ou Engenharia no Porto condição mais do que suficiente para arranjar um emprego no aparelho de Estado,ou no privado dependente das avenças do estado

    para os padrões frugais da altura que tinham rádios móveis alemães de 3 ou 5 contos de réis
    quando um ganhão levava com sorte 5$00 por dia


    cresceu na província e nela quer ser enterrado..paciência desde que haja gente para abrir a cova ao morgado.... O seu pai pertence à geração que fez o século XX de Portugal

    acha? sinceramente? ok

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  2. e na fonte luminosa estava muito do pessoal dos serviços assalariados de Lisboa a 1200$ ao mês agricultores do vale de santarém e de Mafra e Fanhões a 2 ou 3 hectares cada e trolhas da construção civil
    chamar a isso classes médias ou nã tava lá ou tem má memória
    e principalmente muita canalha sem profissão ou estudantes entre os 17 e os 25 anos (alguns filhos da classe média mas outros nem por isso) e muitos aspirantes ao cartão do partido
    a corrida ao poder
    dá-se bem nas manif's
    isso e o sexo deve ser das feromonas segregadas pela multidão

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