terça-feira, 10 de janeiro de 2012

O quarto do filho.

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CPL. Christopher Scherer. Marines. 21/7/2007. Sniper. Karmah, Iraque. 21 anos.
Morada: East Northport, NY.
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Richard P. Langenbrunner. 17/9/2007. Suicídio. Rustamiyah, Iraque. 19 anos.
Morada: Fort Wayne, Ind.

Wilfredo Perez Jr. Exército. 26/1/2003. Ataque de granada. Baquba, Iraque. 24 anos.
Morada: Norwalk, Conn.



Carl L. Anderson Jr. Força Aérea. 29/8/2004. Mina anticarro. Mosul, Iraque.  21 anos.
Morada: Georgetown, S.C. 



PFC Karina S. Lau. Exército. 2/11/2003. Queda de um helicópetro atingido pelos rebeldes.
Fallujah, Iraque. 20 anos.
Morada: Livingston, Calif. 


No recente e excelente Afterwards. Contemporary Photography Confronting the Past, de Nathalie Herschdorfer (Thames & Hudson, 2011), conheci um projecto que o fotógrafo australiano Ashley Gilbertson  desenvolve desde 2009 e pensa publicar em livro ainda este ano. Bedrooms of the Fallen.

Ashley Gilbertson, na produção de Bedrooms of the Fallen



Fotógrafo movido por causas sociais desde a juventude (produziu ensaios sobre a toxicodependência em Melbourne,  sua terra natal, ou sobre os refugiados kosovares a quem foi concedido asilo temporário na Austrália), Ashley Gilbertson (n. 1978) esteve no Iraque, captando imagens que lhe valeram prémios, com destaque para a Robert Capa Gold Medal. Uma das  mais conhecidas, tirada no decurso da Batalha de Fallujah, integrou em 2004 a selecção das «Fotografias do Ano» da revista Time. Em 2007, publicou Whiskey Tango Foxtrot, livro que retrata a sua experiência de quatro anos na frente iraquiana. Uma coisa é certa: Ashley Gilbertson esteve lá – e por mais tempo do que é habitual num repórter de guerra. Viu e fotografou os sofrimentos e os combates, facto que, em si mesmo, não lhe concede uma legitimidade moral acrescida no seu trabalho mas que permite, porventura, explicar a génese deste projecto. Com Bedrooms of the Fallen, Ashley Gilbertson prolonga a sua experiência de guerra, apenas transferindo o território do seu olhar para a frente interna, para o interior das moradas de onde partiram os soldados que viu combater no Iraque.  
  Bedrooms of the Fallen contém um devastador conjunto de imagens dos quartos de dormir de casas da América onde viviam jovens soldados que morreram no Iraque e no Afeganistão. Homens sobretudo; mas  também mulheres. Quase todos jovens, muito jovens, de 19 ou 20 e poucos anos. Os que morreram na guerra nunca regressarão aos quartos que habitavam, geralmente nas casas dos pais, e onde guardavam os seus objectos pessoais ou as suas recordações mais preciosas. Como alguém já notou, o aspecto mais impressionante destas imagens reside no facto de os jovens que morreram nunca irem crescer. Nunca irão sair dali, dos quartos captados pela objectiva de Ashley Gilbertson. As fotografias são extremamente concretas e realistas, captadas de modo a fixar os mais ínfimos pormenores. Mas, em simultâneo, são abstractas e «conceptuais» na mensagem que subliminarmente visam transmitir: projectos de vida acabados, futuros incumpridos, existências interrompidas e para sempre aprisionadas em quartos decorados com bandeiras da América, posters do filme Lord of the Rings, taças desportivas ou ursos de peluche. Just kids, como disse quem olhou para estas imagens.
A denúncia da crueza da guerra não é realizada através da exibição de mortos ou feridos na frente de combate, tal como Gilbertson havia feito em  Whiskey Tango Foxtrot. Mas as imagens de Bedrooms of the Fallen são também, de uma maneira muito peculiar, imagens de guerra. Aqui não há feridos nem cadáveres, mas tão-só a ausência de vida em quartos de dormir cuidadosamente arrumados. Aqui, evoca-se a destruição de vidas jovens, mas também o sofrimento dos pais que conservam intocados os quartos dos seus filhos, convertidos em relicários de objectos banais que, todavia, evocam memórias e lembranças de um tempo irrepetível. A sensação de quem olha é de alguma claustrofobia. Vemos o sofrimento sem ver quem o sofre. A paisagem visual é completamente despojada da presença de marcas de dor, mostrando apenas objectos de um quotidiano normal, que aguarda o regresso dos seus filhos. Não há pessoas, só a sua ausência. A sua irreversível ausência. Jamais regressarão ali.   
......Trata-se, sem dúvida, de uma abordagem original e bastante inesperada à fotografia de guerra, que surpreende e comove justamente por isso. Mesmo que não seja absolutamente nova na história da fotografia, sobretudo na mais recente, a perspectiva de Gilbertson entra em ruptura com aquilo que, desde há décadas, é habitual no fotojornalismo de guerra, tingido de sangue e corpos mutilados, marcado pela exposição da dor física. Ao invés, em Bedrooms of the Fallen a dor é, toda ela, moral. A violência, puramente psicológica. Ao retratar vazios e ausências, as imagens de Gilbertson impressionam ainda por outra singularidade: o silêncio. Nas clássicas fotografias de guerra, há ruído, muito ruído; de tiros e de bombas, de choros de mães e gritos de soldados feridos. Aqui, pelo contrário, somos confrontados com o silêncio da não-presença. Perguntamo-nos o que acontecerá a estes quartos juvenis quando os seus guardiões, também eles, desaparecerem. Naturalmente, serão destruídos, pois com a morte dos pais desaparecerá a razão íntima que os preserva na forma imaculada que vemos nas imagens. Para quê arrumar assim o quarto de um filho morto, se este não voltará a casa para o desarrumar de novo? Para quê o escrúpulo do alinhamento perfeito dos objectos, se em vida aqueles quartos nunca estiveram tão ordenados como agora os vemos? 
Além da denúncia da guerra, o propósito de Ashley Gilbertson, segundo o próprio, consiste numa homenagem aos que caíram em combate. Subsiste, todavia, um ponto que deve merecer a nossa reflexão. As fotografias de Gilbertson são indiscutivelmente perturbadoras, com a imagem de um quarto vazio e a legenda a indicar secamente o nome do militar morto, a patente, a idade, a causa do óbito e o lugar onde perdeu a vida, além da morada na terra de origem. Temos, todavia, uma obrigação de distanciamento e um imperativo de reflexão, até para fazer justiça não apenas às vítimas como ao próprio trabalho de Gilbertson. Há uma dimensão «demagógica», por assim dizer, nestas imagens. Mas ela sempre existiu e existirá neste tipo de levantamentos. «Demagogia», nesse sentido, encontramo-la nos trabalhos de diversos autores. Para citar alguns contemporâneos: em Pieter Hugo, com os vestígios dos massacres do Ruanda; em Steven Laxton e as suas fotografias de sobreviventes do Holocausto; em Franziska Vu, com os detidos nas celas da Stasi; em Guillaume Herbaut e as vítimas de Hiroxima; em Suzanne Opton e os seus close-ups dos rostos inexpressivos de soldados americanos vindos do Iraque; em Raphaël Dallaporta com imagens das residências burguesas onde viveram mulheres exploradas; em Dana Ropa e os seus retratos de antigas escravas sexuais que regressaram à Moldávia natal. Em todos estes projectos, não há uma intenção estritamente documental ou testemunhal mas um assumido propósito «artístico», inquestionavelmente «comprometido» com o objecto fotografado, mas nem por isso menos interessante e até, em certos casos, admirável. A militância e o engajamento em nada retiram valor artístico a estes projectos, questão de há muito ultrapassada. Alguns desses levantamentos têm, aliás, como propósito primordial servir uma causa justa. Lembre-se, por exemplo, do trabalho de Peter Pütener (Totenklage, 2006), que fotografou as roupas dos mortos na Bósnia com o intuito de possibilitar o reconhecimento dos cadáveres pelos seus familiares ou amigos. Porém, quando entramos no site que aloja este projecto de Ashley Gilbertson e podemos navegar pelos bedrooms of the fallen, aproximando o cursor (e o olhar) deste pormenor ou daquele, interrogamo-nos sobre se não existirá aqui um voyeurismo que questiona radicalmente os fundamentos deste projecto fotográfico, sejam quais forem as intenções subjectivas  – e por certo generosas – que lhe estão subjacentes. As imagens, naturalmente, foram captadas com autorização. Mas, até em nome de uma homenagem póstuma às vítimas, será  legítimo podermos deixar deslizar o rato do computador pelos seus quartos, refúgios privados de jovens, normalmente avessos à intrusão alheia e muito ciosos da sua intimidade? Nas fotografias divulgadas online, movemo-nos como se lá estivéssemos, mudando de ângulo e perspectiva, fixando o olhar em objectos íntimos, o que adensa suspeições de uma manipulação emocional gratuita. 
A questão é complexa e não quero discuti-la em profundidade. O autor fala do seu projecto aqui e aqui. Explica-o, explica-se. O The New York Times, para o qual trabalha, também o apresenta: aqui. O leitor que forme a sua opinião. O que me surpreende é que este projecto, segundo creio, não pareceu suscitar controvérsia e debate, tendo sido aclamado pela crítica e até já premiado. Porventura, a existirem reacções negativas, elas surgirão dos defensores da intervenção norte-americana no Afeganistão e no Iraque, possuindo, pois, contornos político-ideológicos que nos afastam do ponto que me interessa discutir.     
É certo que muitos projectos desta natureza comportam sempre um ineliminável risco de manipulação emocional e até de intrusão na privacidade alheia. Esse risco é potenciado sempre que o fotógrafo busca um perspectiva diferente  sobre uma realidade já conhecida e observada. Aliás, quanto mais uma realidade foi escrutinada mais a busca de originalidade conduz os autores por caminhos que suscitam nuitas interrogações, sobretudo do foro ético. Quem percorrer as páginas de The Last Album. Eyes from the ashes of Auschwitz-Birkenau, organizado por Ann Weiss, que reúne imagens de álbuns de família de vítimas do Holocausto, com fotografias de infância, de festas e casamentos, de férias felizes, compreenderá decerto a que me refiro. O mesmo ocorre, por exemplo, com o projecto Ausencias (2006), do argentino Gustavo Germano, que se baseia em imagens antigas da vida doméstica de desaparecidos durante a ditadura militar.   
Ashley Gilbertson quis captar a realidade da guerra de uma forma menos usual e mais subtil daquela a que estamos acostumados. Mas, o que é paradoxal, parece faltar justamente alguma subtileza na sua abordagem. Existe aqui uma estranha perda de autocontenção e até, de certo modo, alguma falta de inteligência do olhar, ao contrário do que sucede, por exemplo, nos trabalhos de Taryn Simon, com realce para A Living Man Declared Dead and Other Chapters, que afortunadamente vi na Tate Modern em Julho do ano passado. Em breve gostaria de falar de Taryn Simon.


António Araújo

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