segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Combray.

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Citadino impenitente, avesso à vida campestre, é contudo a uma casa de campo que me mantenho fiel. Uma casa na “província”, como se dizia em outros tempos, fica à entrada de uma vila mas é como se estivesse isolada, fora do mundo. As gerações mais velhas conhecem os vizinhos, mas eu só lhes sei o nome, ou nem isso, não é uma comunidade, esta casa, mas um castelo, um castelo ao baixo e não num alto, um castelo aberto, até há poucos anos tractores e carros de bois atravessavam o pátio, era “servidão de passagem” que estudei na faculdade, a casa não é porém uma “quinta” ou uma “herdade”, apenas um casarão antigo no campo, espaçoso, vetusto, de aspecto rústico e fidalgo, a minha Combray.
Uma casa é uma forma de identidade, uma permanência, uma ilusão de perpetuidade. Tanto que imaginamos que nada muda, embora saibamos que a mudança é uma inevitável; por exemplo as divisões da casa criam a sua mitologia, a sala onde agora escrevo era a cozinha, existiu aqui uma cozinha durante tantas décadas, e para mim nunca deixará de ser a cozinha, embora no futuro ninguém se lembre disso. A mitologia renova-se, cada geração tem a sua. No lugar desta casa havia outra, houve um incêndio, há uns duzentos anos, não sei bem, reconstruíram-na, e portanto a casa imemorial da qual avós e pais e tios se lembram era na verdade uma nova casa, tão nova como esta em que estamos agora, refeita por dentro depois da morte da avó e de uma divisão pelas filhas; e no entanto tantas modificações não alteram em nada a nossa imagem da casa, a imagem mental, é a mesma casa ainda que tenha mudado várias vezes, a sua identidade é igual à nossa, mudámos tanto, alguns de nós, quase não somos as mesmas pessoas, e no entanto continuam a conhecer-nos e a reconhecer-nos, como nós à casa. Custou-me ver as obras, há uns anos, embora fossem obras necessárias, acompanhadas de querelas desnecessárias, mudaram as coisas de sítio, uma escada é agora um quarto de dormir, um corredor é agora um armário, custou-me, custou-nos, desarrumaram a imagem da nossa infância, é isso uma casa, uma imagem da infância, um abrigo quase feminino.
Para nós que a tínhamos como segunda casa era também um ritual, a casa, colada ao calendário, a festas, férias, celebrações, baptizados, casamentos e funerais, todo o teatro da nossa alegria e fugacidade. Aqui havia longos verões, férias que pareciam ter dois anos, como em Júlio Verne; Natais à lareira; e tardes pascais que passavam devagar debaixo da olaia, à sombra do chorão, perto do grande tanque grande e tosco. Imagens que me passais pela retina: os primos escondidos no jardim a atirarem camélias a quem passava; as tangerinas do quintal contra as janelas. Antes de conhecer quaisquer perigos, o poço era o grande perigo, avisavam que não nos aproximássemos, contavam histórias de gente que tinha caído lá dentro, histórias falsas, quase de certeza, para meter medo, ainda hoje nada me mete mais medo do que um poço, em pequeno andávamos à volta, espreitávamos uma ou outra vez o pavoroso abismo, com as suas paredes de pedra e musgo, o seu fundo escuro e líquido, caí algumas vezes ao poço, em adulto, um poço bem mais fundo, para o qual não me tinham avisado, e pensei sempre nesse poço da infância, o pior de todos os perigos, bem à nossa vista, e no entanto uma fonte de consolo e de sustento. Entenda quem puder.
Em noites que não fossem muito frias, sentávamo-nos, sentamo-nos, no alpendre, a ver a serra lá em cima, é estranho como um lisboeta tem essa imagem da serenidade, quase da eternidade, os caminhos íngremes da serra, arvoredo e luzes esparsas, alguma povoação, e cá em baixo um comboio ruidoso e visível, que agora também já não há. E os sons sobre os quais escrevi um dos meus primeiros poemas, a madrugada de galos, a manhã de pássaros, a noite de grilos. Não conheço figura mais exemplar da fidelidade e da infelicidade do que o cão preto envelhecido, com as orelhas sem ferida, uma espécie de tosse, uma espécie de brandura, um cão do qual não havia mal algum a esperar, que talvez não nos defendesse de nada, mas que sairia em nossa defesa, de quantos humanos temos tal certeza? E a fantasmagoria das galinhas a andar em círculos sem cabeça, como eu na altura pensava que apenas as galinhas eram capazes.
E agora a casa é parcialmente minha, mas não me pertence, nunca me pertenceu, é ainda a casa dos avós, mesmo com os avós repousando num jazigo ao cimo da rua; e no entanto sempre foi e é a minha casa, tão segundo quanto primeira, a minha Combray, fui feliz aqui, aqui havia descanso, pertença, os irmãos que não tive, era uma zona de excepção, onde o mundo não entrava; também me lembro de sofrer nesta casa, mas era uma mágoa em surdina, um pressentimento, antecipava de algum modo a crueldade no mundo, mas este era um mundo diferente, tantas vezes passadista ou arcaico nas suas devoções, mas gentil, afável, um miúdo que também se criou aqui mais tarde ou mais cedo ia encontrar em Lisboa aquilo em que nunca pensou, aquilo para que nunca foi preparado. Alguma coisa que não estava nas arcas mágicas de quinquilharia no sótão, no crescimento colectivo de iguais, na música das festas de verão, na primeira pessoa do plural que nunca mais usei, na fornada de pão nocturno que íamos comprar e que em casa, ainda sem luz do dia, repartíamos.

Pedro Mexia


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