domingo, 22 de janeiro de 2012

Nino Ferrer (1934-1998): a report on the evil of banality.

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Nino Ferrer, nome artístico. De baptismo, Nino Agostino Arturo Maria Ferrari (1934-1998), cantor, actor e jazzman franco-italiano, como podem ver na infalível Wikipédia ou na sua página oficial.
..........  Passou os primeiros cinco anos de vida na Nova Caledónia, onde o pai, engenheiro, trabalhava numa mina. Em 1939, o pequenino Nino Agostino veio de férias a França, com a mãe, mas já não pôde regressar à Nova Caledónia devido ao deflagrar da 2ª Guerra. Até ao reagrupamento da família, em 1947, mãe e filho, encontrando-se bem, atravessaram todavia grandes privações.    
O futuro cantor teve, ao que parece, uma educação esmerada, formando-se em Etnologia e Arqueologia. Fez trabalho de campo em escavações arqueológicas, ocupou os seus dias no Musée de l’Homme com André Leroi-Gourhan. Viajou pelo mundo a expensas da avó e, segundo dizem observadores benévolos, foi pintor com algum talento. Depois, tendo aprendido a tocar vários instrumentos, dedicou-se à música, para nosso infortúnio. A sua carreira teve altos e baixos, cíclicas saídas de cena e regressos não particularmente brilhantes (em 1982, num dos seus vários come-backs, encarnou Deus em L’Arche de Noé, um musical para crianças que teve um êxito bastante moderado). Suicidou-se em 1998 com um tiro no coração, num milheiral perto de casa, pouco antes de perfazer 64 anos. No rating do bom gosto, todas as agências credenciadas o classificam como «lixo». E, nos dias de hoje, só é recordado em blogues idiotas como Malomil.
Mas, até para não continuarmos aqui a copiar à bruta da Wikipédia, entremos de imediato no maior contributo de Nino Ferrer para a Civilização Ocidental. Em 1967, de uma rajada, lega à posteridade a canção Mao et Moa e outro lamentável trabalho, Mon copain Bismarck. No ano seguinte, Nino esmagou os cânones artísticos com mais um pavor musical, le Roi d’Angleterre.
 Para uma primeira aproximação à sua vasta obra, e para termos uma pálida ideia do artista cujo trabalho agora escrutinamos, um elucidativo ponto de partida é a música Le Téléfon, perpetrada em 1966. Ei-la:  
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Gostaram? Agora já estamos em melhores condições para apreciar a versão de Mao et Moa no vídeo seguinte:
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Os que acompanharam o clip detectaram certamente uma leve dessincronização entre imagem e som: em momento algum daqueles fatídicos 3min e 19sec as palavras musicadas de Nino Ferrer coincidem com os seus movimentos labiais. Da boca do cantor, mais do que música, emanam os novelos do fumo dum cigarrito existencialista. Mau, muito mau. Nino Ferrer. 
Se a música é tenebrosa, a letra constitui uma lição de auto-ajuda. O poeta Ferrer ensina-nos que, por pior que estejamos na vida, é sempre possível cair ainda mais baixo:

Si je suis rapide et rusé
Quand je fais mes Mao croisés
Me disait un esquiMao
C'est grâce à la pensée de Mao
S'il est vrai que plaisir d'amour
Ne dure qu'un Maoment très court
Mao je dis qu'un bon Maoment
Vaut bien deux cornes d'éléphants
C'est Mao que je suis pour Mao contre Liou Chao-Chi
J'ai mon bréviaire de Révolutionnaire
Dans tous les bouges Moa je bois des Quarts de rouge
Le quart de rouge c'est la boisson du garde rouge   
Lorsque je dîne avec Thérèse
Je prends des oeufs durs Maonaises
Thérèse prend un gelati Maotta
Le chat prend du Maou pour les chats
Le dimanche en Automaobile
On va visiter la Sicile
Ses plages et ses Maonuments
Quand on rentre on est bien contente
C'est Mao que je suis pour Mao contre Liou Chao-Chi
            J'ai mon bréviaire de Révolutionnaire
Dans tous les bouges Moa je bois des Quarts de rouge
Le quart de rouge c'est la boisson du garde rouge
Si j'aime bien la marche à pied
C'est à cause de la société
Protectrice des Animao
Qui protège mon Chamao
Si la chromolithographie
Engendre la Maonotonie
La Maontagne ça a du bon
Et c'est normal car c'est Normaond
Monsieur Maorice a été maordu
Par un guitariste barbu
Monsieur Maorice est Maoribond
Gai gai dansons le rigodon
Si je suis rapide et rusé
Quand je fais mes Mao croisés

Apresentamos agora – é irresistível, desculpem… – uma outra versão de Mao et Moa. Esta, ainda pior, com requebros corporais pop e em linguajar castelhano, apresentada num programa de variedades da TVE. Corria 1969, ano em que o cançonetista teve um fugaz affaire com a fogosa Bardot. Observemos agora o nosso Nino na sua prestação caramelos Viuda de Solano: 



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Como viram, o Mao de Nino Ferrer é muito mau. Muito mau, mesmo. Péssimo. Desconhecemos se a música de Ferrer teve sucesso ou suscitou polémica. A sua época não primou nem pelo bom gosto nem pelo bom senso. Comprova-o a seguinte antologia de capas dos trabalhos de Nino Ferrer, aqui apresentada sem preocupações de exaustividade:

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Simplesmente, com as suas ridículas pretensões satíricas, todas absolutamente previsíveis, todas de uma vulgaridade grotesca, Nino Ferrer acabava por desferir um golpe profundo num dos mais sagrados ícones culturais da altura. Muito possivelmente – o que torna o seu génio ainda mais retumbante –, Ferrer não teve consciência da dimensão histórica do seu contributo cultural, que não musical (e o facto de uma péssima música ser um grande contributo cultural é outra faceta surpreendente desta história). Nino Ferrer não se apercebeu de nada. Quis gozar com o Grande Timoneiro e gozou, pronto. Mas, ao fazê-lo, a sua performance surgia a contracorrente e abandalhava a figura intocável de um ditador que matou milhões e milhões de seres humanos. Mais do que isso, o kitsch de Nino Ferrer antecipava-se em sensatez a toda a intelligentzia do seu tempo. É sempre bonito ver um cantor popular de melena loura e fartas patilhas pôr em causa – e com razão! – uma hegemonia de pensamento que ninguém ousava questionar.     
Nesses anos, de facto, a máquina de propaganda chinesa, montada na sequência do conflito sino-soviético, começava a dar os seus frutos (1). O caso francês é paradigmático (2), ainda que o fenómeno tenha ocorrido noutras paragens, como a Itália (3). Também entre nós se diz que «é difícil compreender hoje o que significou o maoísmo para a juventude dos anos 60 e 70. O maoísmo europeu era uma utopia, uma ficção, que nada tinha que ver com o maoísmo chinês, que era o contrário de tudo isso», refere Amadeu Lopes Sabino, que recebera em Paris, das mãos de Hélder Costa, vários exemplares da primeira edição em língua portuguesa das Citações de Mao Zedong, os primeiros a serem trazidos para Portugal (4).
«Víamos os gulags soviéticos mas não os chineses, idealizávamos totalmente o que se passava na China», refere Lopes Sabino (5), numa síntese perfeita do que foi a chamada «sinofilia ocidental» (6). Em França, quando é publicado pela primeira vez, em 1971, o livro Les habits neufs du président Mao, de Simon Leys, que criticava violentamente o regime de Pequim, a obra passa quase despercebida (7). Em Itália, o importante ensaio de Leys será dado à estampa por uma minúscula casa editorial anarquista, as Edizioni Antistato. Menos ainda se atendeu ao J'Accuse la Chine (1966), onde o antigo Presidente do Congo-Brazzaville, Fulbert Youlou, fazia um ataque muito cerrado, de uma lucidez extraordinária, aos efeitos nefastos do «colonialismo chinês» em África (8). Premonitório, não?
Pouco se evoluíra, na verdade, relativamente a La longue marche, um best-seller que Beauvoir publicara em 1955 ou, ainda que menos conhecido - e, aliás, muito menos alinhado -, ao livro Cara Cina (1966), de Goffredo Parise. Ou ao livro Na Órbita da China (1967), de Harrison Salisbury (9); ou ainda ao panegírico absoluto feito pela pena de Alberto Moravia. Este, em La rivoluzione culturale in Cina (1967), chegava a afirmar que os Guardas-Vermelhos eram «crianças pela qualidade candidamente religiosa da sua crença» (10) Nessa obra, Moravia enaltecia, justificando todas as suas falhas, o «romantismo voluntarioso e populista de Mao», dizendo existir na China «uma luta política de tipo religioso» (11). Neste ponto, não andava longe do que, anos antes, o seu compatriota Curzio Malaparte escrevera. Malaparte concluíra o seu périplo pela China, realizado em 1956, enviando um comovido telegrama a Mao Zedong: «Vim à China como amigo, parto enamorado da China». (12)  
La Cina è vicina, era o título de um célebre filme de Marco Bellochio, de 1967, que cativou legiões de intelectuais que buscavam num Oriente mitificado e imaginário a alternativa ao «centralismo burocrático» e ao «estatismo autoritário» (13). Nesse ano de 1967, aquele em que o desastre da Revolução Cultural se fez sentir com mais intensidade, continuavam a publicar-se no Ocidente obras descaradamente apologéticas, como The Chinese Chameleon, de Raymond Dawson. Data de 67 o livro de Moravia, como vimos. E, pois claro, foi precisamente em 1967 que Nino Ferrer nos brindou com a sua cançãozita, que atrás apresentámos em duas versões Youtube.      
A moda, porém, continuou. Para uns, disso não passou, de uma moda, até no vestuário pret-a-porter da estudantada do Boul’Mich. Para outros, a moda virou fé, fé de café, os templos por excelência da nova religião laica, implacavelmente dogmática. Na altura, os êxitos em França eram De la Chine (1971), de Maria-Antonietta Macciocchi («Mao é essencialmente antidogmático e antiautoritário»), ou os textos que Josué de Castro publicava no Le Monde Diplomatique louvando a civilização milenar dos chineses e a necessidade de o Ocidente «estender a mão e falar cara a cara com a China» (14). Edgar Morin, sempre banal, enaltecia a «superioridade humana do comunismo chinês». Na China, Sollers encontrava, maravilhado, «a esperança para os revolucionários do mundo inteiro». Roland Barthes afirmava: «a China é pacífica», mas, atenção!, distanciar-se-á do maoísmo na sua faceta opressora (15). À época, acusava-se o Ocidente de «sinofobia» (16). Dizia-se que a China constituía para os ocidentais uma «lição de humildade» (17). Saudava-se até o espírito ecológico dos chineses, dizendo que «as cortes de bicicletas das amplas avenidas de Pequim não deitam fumo; os detritos são recuperados, os desperdícios insignificantes, a poluição reduzida ao mínimo, a consciência socialista atinge ali nível muito elevado» (18).
Como escreveu o historiador Richard Pipes, «não foram poucos os intelectuais radicais do Ocidente que simpatizaram com as barbaridades de Mao e buscaram a sabedoria nos seus textos insípidos» (19). Poucos se atreveram a sair da linha justa. Se o fizessem, pagavam caro. Como pouco tinha a perder, Nino Ferrer deu forte e feio no Timoneiro. De caminho, apanhou também Bismarck, vá-se lá saber porquê. Os génios do calibre de Nino Ferrer têm destas coisas, embirrações só lá deles, são gente muito implicativa, muito niquenta.    
Em Espanha, a recordação de Antonio Muñoz Molina é eloquente quando diz que, em comparação com o Caudillo de voz aflautada, que todas as tardes rezava o Rosário com sua mulher no Palácio do Pardo, «muito mais admirável parecia, a muitos jovens antifranquistas, o distinto Mao, que vivia na Cidade Proibida, em Pequim, e escrevia tratados filosóficos e breves poemas de um exotismo entre o oriental e o revolucionário e, para mais, era autor daquele Livro Vermelho de máximas anti-imperialistas que alguns levavam como um breviário no bolso traseiro das calças, tirando-o com reverência para recitar um trecho de destilada sabedoria: Os imperialistas são tigres de papel» (20). Molina recorda ainda a publicação de uma obra maoísta de carácter devocional, China, una revolución en pie, da autoria de Baltasar Porcel. Sobre o caso português, Miguel Cardina publicou há pouco a sua belíssima tese de doutoramento, onde o maoísmo lusitano é esquadrinhado à exaustão. Recomenda-se vivamente: Margem de certa maneira. O Maoismo em Portugal, 1964-1974 (Lisboa, 2011).   
Para percebermos até que ponto o Livro Vermelho tinha uma divulgação em massa basta dizer que, na China, todos os anos um comité especial se encarregava de produzir as 13.000 toneladas de plástico necessárias para fazer as capas daquele breviário de referência – e de reverência. Ao que parece, até De Gaulle andava inebriado pela ideia de conhecer pessoalmente o Presidente Mao (21). E, na América, o senador William Fulbright apelava a que se agisse relativamente à China com «compreensão» e com «generosidade» (22). Como recordou o jornalista portuense Manuel António Pina, «só finalmente vislumbrei o rosto (e era um rosto monstruoso) do maoísmo e da Grande Revolução Cultural Proletária quando os Guardas Vermelhos proibiram Mozart e começaram a queimar pianos. Até aí, as notícias que chegavam de Pequim esbarravam sistematicamente, à conta de propaganda, na minha confiança (na verdade, uma fé que se julgava inatacavelmente racional) no “Grande Timoneiro”» (23). Os seguidores dos ensinamentos do Livro Vermelho eram glorificados em livros vários, como Les Maos en France (1972), da autoria da prolífica jornalista Michèle Manceaux.
A atracção pela China de Mao devia-se a vários factores, segundo escreve Christophe Bourseiller num excelente livro sobre o maoísmo francês, Les maoïstes. La folle histoire des gardes rouges français (2008). Primeiro, a vontade de aplicar o modelo chinês e, em particular, a Revolução Cultural. Depois, o apoio concedido por Pequim às causas do terceiro-mundismo e da revolução mundial: basta recordar que na capital chinesa são recebidos Nkrumah, Sékou Touré, Ferhat Abbas, entre tantos outros (24). Em terceiro lugar, o anti-sovietismo. Finalmente, diz Bourseiller, o populismo (25). Ainda assim, mesmo no seu apogeu, em 1971-1972, a causa maoísta em França não deve ter tido mais do que uns sete milhares aderentes (26).
Nino Ferrer, com a sua desastrosa cançoneta, não foi um precursor absoluto, convenhamos. Antes dele, em livro, já George Paloczi-Horvath ou Fulbert Youlou tinham tentado alertar consciências e arrepiar caminho. Não os escutaram e, por conta disso, andou toda esta Europa seduzida por um dos mais sanguinários dirigentes políticos da História do mundo. Vamos a contas. Quando se desloca a Pequim, em 1965, André Malraux ficará impressionado com a serenidade de Mao Zedong, «uma serenidade tanto mais inesperada quanto é certo que tem fama de violento» (27). A fama era justificada: Mao foi responsável por cerca de 70 milhões de mortes em tempo de paz, ultrapassando nessa cruel estatística qualquer outro líder do século XX (28). Mao Zedong, recorde-se, admitiu serenamente, num discurso de 1957, que 840.000 pessoas tinham sido liquidadas entre 1949 e 1954. Afirmou, noutra ocasião, não temer um ataque nuclear da União Soviética, mesmo que tal dizimasse metade da população do seu país; sobre os escombros, a gigantesca China ergueria uma nova civilização, pelo que as bombas atómicas teriam até um efeito purificador. A reforma agrária de 1950 ceifou entre 2 e 5 milhões de chineses. Oito anos depois, em 1958, o VII Congresso do Partido Comunista Chinês fixou uma meta ambiciosa: ultrapassar a Grã-Bretanha em quinze anos. Ora, de 1959 a 1962, a fome matou, segundo algumas estimativas, 43 milhões de chineses. André Malraux, o da haute culture, impressionava-se com a «serenidade de Mao Zedong». Nino Ferrer, o das cantigas, não foi nessa música.
O que existe, ao mesmo tempo, de extraordinário e caricato na obra de Nino Ferrer é o poder virtuoso da maldade. Deparamo-nos em Nino Ferrer com o mal radical, o mal absoluto. Nino Ferrer é uma versão musicada de Adolf Eichmann. Nino Arturo Ferrari era mau como cantor. Radicalmente mau. Um desastre completo. Mas, sendo tão mau do ponto de vista artístico ou cultural, foi um visionário. E, mais ainda, um visionário involuntário, um profeta sans conscience de soi. Se, para Hannah Arendt, no seu famoso Report on the banality of evil,  Eichmann era um clown, Nino Ferrer partilha essa característica circense, essa trágica comicidade, com o criminoso nazi. Sem ofensa para Nino, moço que apreciamos, mas é um facto que era tão mau, tão mau, que fazia nas calmas a transição do bad para o evil.
Sendo mau como músico, Ferrer teria de ser forçosamente mau para com Mao. Era impossível ser bom, até na sátira. Dali, de Nino Ferrer, só podia vir mal. O rapaz não dava para mais. Grande Nino Ferrer. O ícone sínico foi, pois, duplamente destruído pelo iconoclasta da pop music: destruído enquanto objecto de gozo e destruído porque o gozo era, em si próprio, muito, mas mesmo muito mau, assim a modos que a raiar o péssimo. Só que, nessa dupla maldade, o pacato/terrífico Nino Ferrer acabou fazendo o bem, dando um saudável, ainda que risível, contributo para caricaturar o ídolo de Beauvoir, de Sollers, de Morin, de Moravia, de Malaparte, da Macchiocci ou de Josué de Castro, figuras cimeiras da cultura que se viram ultrapassadas em clarividência e lucidez por um cantor popularucho de quinta categoria. Nino agiu numa época em que poucos, muito poucos, tinham os olhos abertos para um mal maior, horrivelmente maior, do que o seu pavoroso gosto musical. Para suprema ironia desta pequena história, o autor de Mao et Moa, génio distraído, não se apercebeu de nada: de quão má era a sua música, do mal que causou ao Timoneiro, do pioneirismo do seu acto e, enfim, do bem que fez à Humanidade, ainda que fazendo mal aos tímpanos e ao gosto de muita gente.
Eis, em suma, como um pequeno acidente cultural pode significar um grande progresso civilizacional. Nino Ferrer mói, mas não mata. Mao Zedong, em contrapartida, foi responsável pela destruição de mais de 70 milhões de vidas. A China continua a venerar a sua memória.
....... Entretanto, vai comprando o mundo graças ao trabalho escravo e ao dumping ambiental. Vivem-se hoje novos tempos de sinofilia, mas agora pela pior das razões, a da avidez desumana do ganho material e do lucro fácil. No Ocidente, a esquerda clama pelo direito à memória e exige justiça planetária, retroactiva mas selectiva, esquecendo os 70 milhões de mortos causados pelo Grande Líder. E, quanto a direitos humanos, pena de morte, etc., estamos conversados… Tianamen é o quê, uma freguesia do concelho de Moncorvo? Por seu turno, a direita quer menos Estado por cá para que o muito Estado de lá nos compre as empresas, públicas e privadas – todas! Empresas falidas em larga medida devido à concorrência desleal do made in China. Quer dizer: a China leva-nos ao tapete para depois nos comprar barato. Curioso. Vende barato, destrói, e a seguir compra barato. Mais curioso ainda: fá-lo à conta de uma doutrina liberal, a do comércio livre de todas as nações, como se fosse «livre» o comércio entre países com tão fundas diferenças e exigências políticas, sociais ou ambientais. E nós, tontos como as beauvoirs e os moravias de outros tempos, julgamos que o nosso capitalismo sem Estado irá ser salvo pelos capitais de um Estado que não prescinde do seu comunismo. Estranho comunismo, aliás: em Pequim já circulam mais BMW’s do que em Berlim. O governo instituiu agora um sistema de sorteio para comprar automóveis, tamanha é a procura.
No espaço de poucos dias, no início deste 2012, o multimilionário Warren Buffett gravou para a cadeia estatal CNTV uma canção saudando o Ano Novo chinês, enquanto o Presidente Hu Jintao escreveu na revista de reflexão teórica do PCC que «forças ocidentais estão a tentar ocidentalizar-nos e dividir-nos através da ideologia e da cultura». Em resultado disso, foram eliminados programas em 34 canais de televisão, para preservar os «valores socialistas». O americano canta, o chinês manda calar quem desafina. Tudo, claro, em nome dos «valores». Quais serão os «valores» do milionário capitalista Warren Buffett? E, já agora, quais serão os «valores» do presidente comunista Hu Jintao? O mundo às avessas, tudo ao contrário. Perante este desconcerto celeste e terrestre, que fazer? Ouvir de novo, vezes sem conta, o grandioso hino patriótico Mao et Moa. No seu indiscutível foleirismo, o esquecido Nino Ferrer é, afinal, o mais coerente de todos nós. Essa sua coerência é atestada pelo facto, singelo mas decisivo, de a música que criou ter sido sempre, mas sempre, um horror completo. Saudemo-lo até por isso: nunca produziu nada que se aproveitasse. Nadinha que se aproveitasse, nada de nada. Longa vida ao camarada Nino Ferrer. Com ponto de exclamação, assim: !       

    
António Araújo






Notas, todas muito eruditas
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(1) Cfr. PEREIRA, José Pacheco - «O Um Dividiu-se em Dois». Origens e enquadramento internacional dos movimentos pró-chineses e albaneses nos países ocidentais e em Portugal (1960-65). Lisboa: Alêtheia Editores, 2008, pp. 41ss, o qual refere que pelo menos até meados dos anos sessenta a informação sobre a China, de cariz laudatório, circulava mais livremente em Portugal do que a literatura sobre a URSS (ob. cit., p. 121). Existiam, todavia, obras que escapavam a este padrão: cfr., por ex., PALOCZI-HORVATH, George – Mao Tsé-Tung. O Imperador das Formigas Azuis. Trad. portuguesa. Lisboa: Ulisseia, 1966.
(2) Cfr. a síntese de WOLIN, Richard – The Wind From the East. French Intellectuals, the Cultural Revolution, and the Legacy of the 1960s. Princeton: Princeton University Press, 2010.
(3) Cfr. FERRANTE, Stefano - La Cina era vicina. Il Sessantotto e il maoismo all'italiana. Milão: Sperling & Kupfer, 2008. MARINO, Giuseppe Carlo - Biografia del sessantotto: utopie, conquiste, sbandamenti. Milão: Tascabili Bompiani, 2004, pp. 184ss.
(4) Cfr. SABINO, Amadeu Lopes, SOUSA, Jorge de Oliveira e, MORAIS, José e PAIVA, Manuel – À Espera de Godinho. Quando o Futuro Existia. Lisboa: Editorial Bizâncio, 2009, pp. 298-299.

(5) Cfr. SABINO, Amadeu Lopes, SOUSA, Jorge de Oliveira e, MORAIS, José e PAIVA, Manuel – À Espera de Godinho..., cit., p. 333. Sobre a China como «geografia imaginada» da ideologia maoísta, num breve apontamento sobre o caso português, cfr. CARDINA, Miguel – O maoísmo em Portugal: 1964-1974. In AA.VV. – Lutas Velhas, Futuro Novo. Lisboa: Dinossauro Edições, 2009, pp. 68ss. Id. – Margem de certa maneira. O maoismo em Portugal, 1964-1974. Lisboa: Tinta da China, 2011, passim. Numa perspectiva mais vasta, ALEXANDER, Robert J. – International Maoism in the Developing World. Westport: Praeger Publishers, 1999. Id. – Maoism in the Developed World. Westport: Praeger Publishers, 2001.

(6) Cfr. CARDINA, Miguel – O Essencial sobre a Esquerda Radical. Coimbra: Angelus Novus, 2010, pp. 17ss e pp. 93ss, salientando, todavia, que «a China nunca conseguiu fazer frente à União Soviética no seio do movimento comunista internacional». Id.  Guerra à guerra. Violência e anticolonialismo nas oposições ao Estado Novo. Revista Crítica de Ciências Sociais. 88 (Março de 2010), p. 212. 

(7) Cfr. LEYS, Simon - Les habits neufs du Président Mao. Chronique de la «Révolution culturelle». Paris: Éditions Champ Libre, 1971; sobre esta obra de Simon Leys («a voz fora do coro») e o seu impacto no tempo em que foi publicada, cfr. RAMPINI, Federico - L'ombra di Mao. Sulle trace del Grande Timoniere per capire il presente di Cina, Tibet, Corea del Nord e il futuro del mondo. Milão: Mondadori, 2007, pp. 98ss.

(8) Cfr. YOULOU, Fulbert - Acuso a China. Trad. portuguesa. Lisboa: Editorial Verbo, 1966.

(9) Cfr. SALISBURY, Harrison – Na Órbita da China. Trad. portuguesa. Lisboa: Publicações Dom Quixote, s.d.

(10) Cfr. RAMPINI, Federico - L'ombra di Mao..., cit., pp. 70ss. Sobre o advento do marxismo-leninismo e da atracção pela China maoísta em Itália, cfr. BALESTRINI, Nanni e MORONI, Primo – L’orda d’oro, 1968-1977. La grande ondata rivoluzionaria e creativa, politica ed esistenziale. 4ª ed. Milão: Giangiacomo Feltrinelli Editore, 2007, pp. 154ss e pp. 159ss.

(11) Cfr. MORAVIA, Alberto - A Revolução Cultural Chinesa. Trad. portuguesa. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1970, p. 63 e p. 111, respectivamente.

(12) Cfr. MALAPARTE, Curzio – Eu, na Rússia e na China. Trad. portuguesa. s.l.: Círculo de Leitores, 1976, p. 211.

(13) Se a atracção pelo modelo chinês se baseava numa crítica ao carácter hierárquico do estalinismo, muitos descobrem um «maoísmo hierárquico», não coincidente com o «maoísmo anti-hierárquico»: cfr. FIELDS, A. Belden – Trotskyism and Maoism. Theory and Practice in France and the United States. Nova Iorque: Autonomedia, 1988, p. 226.

(14) Cfr. CASTRO, Josué de - O Ocidente contra a China. In AA.VV. - A China e o Ocidente. Dir. de Afonso Cautela. Lisboa: Cadernos do Século, 1971, p. 19.

(15) Escreveu, após viajar pela China entre Abril e Maio de 1974: «seria necessário, portanto, pagar a Revolução pelo preço de tudo o que eu gosto: o discurso “livre”, isento de toda a repetição e imoralidade»: cfr. BARTHES, Roland – Cadernos da Viagem à China. Trad. portuguesa. Lisboa: Edições 70, 2010, p. 221.

(16) Cfr. Raízes da Sinofobia Ocidental. Trad. portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim, 1973.

(17) Cfr. SCHOOYANS, Michel - La provocation chinoise. Paris: Les Éditions du Cerf, 1973, p. 118.

(18) Cfr. DUMONT, René - Utopia ou Morte! Trad. portuguesa. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1975, p. 149, onde se acrescenta: «as nossas sociedades desenvolvidas encontrariam, sem dúvida, na China as bases de uma nova fé no homem e nas suas possibilidades de progresso».

(19) Cfr. PIPES, Richard - O Comunismo. História Breve. Trad. portuguesa. s.l.: Círculo de Leitores, 2001, pp. 124-125. Ainda hoje, de resto, algumas obras manifestam uma grande tolerância para com o regime maoísta, a ponto de se afirmar que foi a Revolução Cultural que preparou a transição chinesa para uma economia de mercado, como sustentou Giovanni Arrighi no livro Adam Smith in Beijing (2007); numa perspectiva mais moderada, mas ainda assim algo desculpabilizadora, cfr. PRIESTLAND, David – The Red Flag. Communism and the Making of the Modern World. Londres: Allen Lane, 2009.

(20) Cfr. MOLINA, Antonio Muñoz – Larga vida al presidente Mao. El País/Babelia, de 6-II-2010.

(21) Cfr. MARTINS, António Coimbra - Década 60 e Maio 68, cit., p. 141.

(22) Cfr. FULBRIGHT, William - A Arrogância do Poder. Trad. portuguesa. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 195.

(23) Cfr. Notícias Magazine, de 22-VIII-2010.

(24) Além do mais, poder-se-á referir a intensa propaganda chinesa levada a cabo na Europa e a acção de «agentes» como Jacques Vergès, que logo em 1961 se encontra em Marrocos com diplomatas chineses, por um lado, e com representantes da União dos Povos dos Camarões, do Congresso Nacional Africano, do MPLA e da FRELIMO, após o que fundará o semanário Révolution africaine, inteiramente financiado pela FLN e destinado a apoiar a luta dos «povos irmãos». No conselho de redacção encontrar-se-á Castro da Silva, por Angola, e, como redactores, Régis Debray, Camilo Torres ou Hilda Gadea, a primeira mulher de Che Guevara: cfr. BOURSEILLER, Christophe – Les maoïstes. La folle histoire des gardes rouges français. Paris: Points, 2008, pp. 48ss.

(25) Cfr. BOURSEILLER, Christophe – Les maoïstes…, cit., pp. 23-24.

(26) Cfr. BOURSEILLER, Christophe – Les maoïstes…, cit., p. 24.
(27) Cfr. MALRAUX, André - Antimemórias. Trad. portuguesa. Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 475.
(28) Cfr. CHANG, Jung e HALLIDAY, Jon - Mao. A história desconhecida. Trad. portuguesa. Lisboa: Bertrand Editora, 2005, p. 21. Sem avançar um número de vítimas da Revolução Cultural, mas falando em «muitos milhões», cfr. SPENCE, Jonathan - Mao. Trad. castelhana. s.l.: Ediciones Folio, 2003, p. 193. MacFARQUHAR, Roderick – The sucession of Mao and the end of maoism, 1969-82. In AA.VV. – The Politics of China. The Eras of Mao and Deng. 2ª ed. Dir. de Roderick MacFarquhar. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, em esp. pp. 319ss. MacFARQUHAR, Roderick e SCHOENHALS, Michael – Mao’s Last Revolution. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2008. SHORT, Philip - Mao. A Life. Nova Iorque: Henry Holt and Company, 2000. Cfr. ainda as estimativas de COURTOIS, Stéphane et all. - O Livro Negro do Comunismo. Crimes, terror e repressão. Trad. portuguesa. Lisboa. Quetzal Editores, 1998, pp. 523ss. Numa revisão da bibliografia, propendendo para as estimativas mais elevadas, cfr. RAMPINI, Federico - L'ombra di Mao..., cit., em esp. pp. 25ss. É impressionante a contabilização das vítimas e o relato, que inclui inúmeras referências a casos de canibalismo, realizados por BECKER, Jasper – Hungry Ghosts. Mao’s Secret Famine. Nova Iorque: Henry Holt and Company, 1998, pp. 266ss. DIKÖTTER, Frank – Mao’s Great Famine : The History of China’s Most Devastating Catastrophe, 1958-1962. Nova Iorque: Walker Publishing Company, 2010.



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