domingo, 22 de julho de 2012

O Palácio Industrial do dr. Kahn.

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Fritz Kahn (1888-1962)

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Antes do 25 de Abril, muitos lares portugueses tinham nas suas estantes Nossa Vida Sexual, do dr. Fritz Kahn, em edição brasileira. Talvez seja essa a razão pela qual ainda alguns se lembram do seu nome. De certeza que a sua reputação em Portugal não se deveu às 64 páginas de O Mundo Maravilhoso dos Insectos, saído entre nós na década de cinquenta, na colecção “Biblioteca Mocho” da Editorial Organizações.

Médico ginecologista, de origem judaica, Fritz Kahn (1888-1962) notabilizou-se pela forma absolutamente inovadora e desarmante como apresentava o corpo humano. Em 2009, saiu um livro sobre ele, creio que o primeiro – e único – grande trabalho sobre Kahn. Fritz Kahn – Man Machine, de Uta von Debschitz e Thilo von Debschitz, publicado com a chancela da Springer, em edição bílingue (inglês-alemão). O livro, fascinante, mostra-nos o universo de Kahn em todo o seu esplendor mecanicista. Uma outra análise da sua obra pode encontrar-se neste artigo, aqui.
Sempre existiram metáforas antropomórficas, bastando recordar o celebérrimo frontispício de Leviathan de Hobbes (para não buscar exemplos mais remotos). Por outro lado, o organicismo foi uma doutrina política e jurídica que marcou a Europa, em especial a Alemanha. O que maravilha em Fritz Kahn é o modo como este explora o paralelismo entre o corpo humano e as máquinas, fazendo-o não com um propósito primordialmente estético mas didáctico. É óbvio que as suas imagens buscam a beleza, sofrem influências do surrealismo e de uma estética industrialista muito típica dos anos 20 e 30, estética que encontramos nos Estados Unidos ou na União Soviética ( onome que me ocorre de imediato é o de Viktor Koretski). Há também marcas de Art déco, do fotorrealismo documental em voga na época e do movimento Neue Sachlichkeit ("Nova Objectividade"). Simplesmente, a estética de Kahn, a maravilhosa estética de Kahn, fruto de uma imaginação prodigiosa e de uma inventividade desconcertante, não se esgotava em si mesma, visando antes ilustrar pedagogicamente, através da analogia corpo/máquina, o modo de funcionamento do corpo humano. Não hesitava em recorrer ao humor e à ironia, como os caricaturistas e os cartoonistas. Um dos exemplos mais curiosos é uma ilustração chamada “O médico do futuro”, de 1925. Um doutorado em Medicina a fazer desenhos assim? A sua obra mais conhecida foi.. um poster, “O Homem como Palácio Industrial”, de 1927.
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O Médico do Futuro, 1925. A fumar...


O Homem como Palácio Industrial, 1927



Não surpreende, pois, que milhares e milhares de pessoas tenham ficado de imediato seduzidas pelos seus livros, de uma tremenda originalidade e absolutamente fora dos padrões "normais" que caracterizavam as obras de divulgação científica da época. Imagens sobre imagens, todas diferentes; em cada uma delas, uma surpresa de inteligência e de inigualável talento narrativo. 
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A carta de Einstein para o cônsul dos Estados Unidos em Lisboa



Durante a República de Weimar, os cinco volumes de Das Leben des Menschen, que começaram a ser publicados em 1922, tiveram um sucesso estrondoso. Judeu, os nazis perseguiram-no. Expulso da Alemanha, fugiu para a Palestina e depois para França. Conseguiu finalmente escapar para Lisboa, graças a uma carta que Albert Einstein enviou ao cônsul norte-americano na capital portuguesa. Tendo-se fixado nos Estados Unidos, onde continuou a ser admirado e a ter êxito (inclusivamente, comercial), viu as suas criações serem plagiadas em livros de médicos e cientistas nazis. Primeiro, queimaram os seus livros; depois, copiaram-nos descaradamente. Com uma pérfida nuance: aditavam capítulos demonstrativos da superioridade da raça ariana e da inferioridade do povo judeu. No livro Der Mensch und sein Leben, Gerhard Venzmer copiou com despudor a obra de Kahn, acrescentando um capítulo intitulado “Ciência Racial e Pureza Racial”, em que fustigava sem piedade os “povos estrangeiros, particularmente os ciganos e os judeus”. 
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Pessoalmente, ao que parece, Kahn era um ser complexo, como as máquinas que desenhava. Sempre que se via acossado ou em perigo, fechava-se e escrevia, escrevia. Escrevia sem parar, horas a fio. Fê-lo nas trincheiras da Grande Guerra, para onde foi como médico; na casa de banho do seu gigantesco apartamento de Berlim, quando os nazis o começaram a rondar, ameaçadoramente; no campo de concentração em França, onde foi detido sob a acusação de espionagem. Um ser complexo e até desprezível. Senhor de um enorme magnetismo pessoal, era cheio de si, um exímio contador de histórias efabuladas, um sedutor e mulherengo que tratava as mulheres como objectos, exactamente como as máquinas que desenhava. Para ele, uma mulher deveria funcionar com uma precisão mecânica: servir-lhe de assistente, fazer investigação em bibliotecas, secretariá-lo, tratar-lhe das finanças e, se possível, cuidar da casa e do jantar. De igual modo, não ligava aos que não lhe interessavam para a concretização dos seus projectos, sendo muito pouco atento a filhos e netos. Mesmo do ponto de vista científico, não primava pelo rigor. O que lhe interessava, acima de tudo, era a popularidade – o que só seria alcançado se as pessoas gostassem e compreendessem os seus desenhos educativos, ao mesmo tempo complexos e simples. Uma vez, quando lhe apontaram erros nos seus trabalhos, respondeu: “Está bem, podem estar errados, mas as pessoas percebem-nos!”. Era só isso o que importava. Entrementes, interessou-se pela teoria da relatividade e pela filosofia oriental, não sendo por acaso que valorizava nesta a ideia de unidade entre todas as formas de vida. Mas, paradoxalmente, defendia o uso da Medicina como arma de guerra e fez a apologia da terapêutica hormonal como forma de a Humanidade alcançar a felicidade e a perfeição eternas. Em vida, teve grande sucesso, com uma bela casa em Long Island e nome a figurar na lista do Who’s Who. Em 1956, decide regressar à Europa, fixando-se na Suíça. Mas, de quando em quando, fazia périplos pelo solarengo Mediterrâneo. Em 1960, em Agadir, passou por uma estranha e horripilante peripécia: ao que parece, caiu num sarcófago, onde ficou encerrado horas a fio, no iminente risco de a tampa se fechar a todo o instante. Causou sensação por isso, sendo entrevistado para a televisão norte-americana. O cônsul da Dinamarca encaminhou-o, e à mulher Ellen, para esse país, onde residiu durante uns tempos. Entrou no ocaso. Na Dinamarca, os seus livros foram arrasados pela crítica, sendo objecto de escárnio. Com 79 anos, muito debilitado, decidiu viajara até Ticino, onde morreu contemplando um esplendoroso cenário alpino. “Rodeia-te de beleza…”, era a máxima de vida de Fritz Kahn. Morreu fiel a ela.
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Fritz Lang, Metropolis, 1927

Kraftwerk, The Man-Machine/Die Mensch-Maschine, 1978
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Apesar de ter sido esquecido durante muitos anos, a influência de Fritz Kahn é imensa e tem sido objecto de crescente interesse. Não terá sido o primeiro a retratar daquele modo o corpo humano, mas fê-lo de uma forma extremamente cativante, imediatamente apreensível para o cidadão comum e simultaneamente sedutora para os criadores artísticos. Fritz Lang inspirou-se nele quando realizou Metropolis e os Kraftwerk produziram em 1978 o álbum The Man-Machine. Mais recentemente, um trailer da MTV-Brasil, de Vinicius Costa, realizado em 2007, segue de perto a obra de Kahn. E, em 2009, Henning Lederer homenageou-o, neste vídeo:
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Vídeo de H. Lederer, 2009



Ilustrações de Fernando Vicente


Nos nossos dias, o ilustrador espanhol Fernando Vicente segue de perto, em muitas das suas criações, a abordagem de Fritz Kahn. E não só a analogia corpo/máquina é explorada em vários domínios, como se encontra perfeitamente instaurada uma cultura visual do corpo, em que aspectos relacionados com a Saúde, a História da Medicina ou outros servem de modelo e fonte de inspiração. Fala-se em "corporeidade"... Até Damien Hirst foi contaminado por esta pandemia estética e académica. Sem ofensa para ninguém, talvez a versão contemporânea mais acabada de Fritz Kahn seja a obra de Gunther von Hagens (n. 1945), o controverso mestre da plastinação de cadáveres importados da China. Agora, todas as máquinas, até as humanas, vêm da China. Sinais dos tempos.


 António Araújo
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