terça-feira, 10 de julho de 2012

As crianças de Golzow.

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Vim parar a Golzow à boleia do Zé Navarro de Andrade. Sem ele, sem a sua generosidade amiga, sem a alegria que o Zé tem em partilhar o seu encantamento por tudo o que há mundo fora, nunca teria chegado a esta vilória na Alemanha.

Golzow foi o cenário do mais longo documentário da História. Em 1961, Barbara e Winfried Junge começaram a filmar 18 crianças de Golzow, na antiga República Democrática Alemã. E continuaram a filmá-las até 2007, acompanhando a sua evolução. Ao longo de 46 anos, filmaram, filmaram, filmaram, dedicando praticamente toda a sua vida profissional a este projecto, que deu lugar a 19 documentários – todos juntos têm 42 horas e 52 minutos, mas a versão comercial fica-se por umas escassas 5 horinhas. Diz quem a viu, aqui, que em momento algum o espectador se aborrece ou enfastia com a lenta narrativa biográfica de 18 seres humanos, pessoas que nada de extraordinário fizeram, salvo viver as suas vidas – o que, em si, já é um feito extraordinário. 

Em 1985, um dos episódios, Lebensläufe, entrou no Guinness Book como o filme com o maior período de produção da História. E em Goldow existe um museu inteiramente dedicado ao filme. É justo: Goldow nunca seria conhecida se não fosse palco desta desmesura toda. As 18 crianças, colegas da mesma turma, tiveram a sua vida inteira filmada e exibida ao mundo. Para alguns, pode ser um voyeurismo excessivo, uma intrusão questionável. Na verdade, mesmo com todas as autorizações e na maior das legalidades, não há dúvida de que, a partir de certo momento, as vidas daquelas 18 pessoas passaram a identificar-se com a de protagonistas de um documentário realizado durante quase 50 anos. Acabaram, afinal, por ser envolvidas no vórtice obsessivo que levou um casal de cineastas a dedicar 46 anos de trabalho a esta empresa única, singularíssima, que converteu Die Kinder von Golzow num modelo ímpar, certamente irrepetível, de longitudinal docummentary.
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O projecto permite reconstituir trajectos biográficos, estórias de vida individuais, mas também a evolução de um lugar e, reflexamente, a evolução de um país, a Alemanha. As filmagens decorreram maioritariamente no período da RDA, mas o documentário prolongou-se após a queda do Muro. Está lá tudo, desde os tempos do comunismo até às esperanças da reunificação. Cinco décadas de ilusões políticas. O filme tem esta dimensão «social» ou «histórica», mais objectiva. Mas tal dimensão, confesso, pouco me interessa. O que me interessa está aquém e além da Alemanha dividida ou reunificada. O que me interessa está aquém da grande História: são as pessoas – crianças que cresceram, adolescentes que namoraram, jovens adultos que casaram ou se juntaram, tiveram filhos, empregaram-se e desempregaram-se, tiveram momentos de alegria e períodos de dor. Em suma, viveram. Viveram envelhecendo. Dezoito vidas humanas condensadas em várias horas de película.
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Mas há outra dimensão que me interessa, e que está além da História e das pessoas que efemeramente a habitam. Die Kinder von Golzow retrata os percursos de dezoito pessoas, de uma vila, de um país. Mas ilustra também – ou acima de tudo – o caminhar do tempo, algo que não é palpável. Raramente nos apercebemos do pretérito que vamos sendo. Só à distância – à distância do tempo – conseguimos ver em que medida o tempo passou por nós. Nunca saberemos por que motivo o tempo passou por nós, ainda que tenhamos plena consciência que ele nos atravessou, inexorável. O filme tem esse sortilégio de tornar visível o que não é tangível. Mostra a marcha dos dias vivida em pessoas reais.
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Tornar tangível a marcha do tempo é um exercício a que todos nos entregamos. E por isso guardamos papéis e objectos, numa acumulação que chega a ser tão insana quanto a obsessão de registo que consumiu 46 anos de vida aos Junger. Filmaram a turma de uma escola mas talvez não se tenham apercebido de que também eles, filmando, se filmavam a si próprios. O que de mais profundo subjaz à narrativa – acompanhar a trajectória de um grupo, de uma afinidade geracional – acabou por envolver a argumentista, Barbara, e o realizador, Winfried. Isto, sim, é completamente Malomil. Se as crianças foram aprisionadas neste projecto documental, quem o produziu foi igualmente apanhado nas suas malhas. Malomil puro. Obrigado, Zé Navarro!



Voltemos a nós todos. Conservamos papéis e objectos, tralhas de ephemera. Temos especial cuidado em guardar fotografias, arquivadas em álbuns, sobretudo as dos nossos filhos quando crianças. Malomil já se cruzou com um álbum de uma criança que ao fim de décadas voltou às mãos da legítima proprietária, numa história pequenina que começou aqui e acabou aqui.

Ao guardarmos imagens, não pretendemos fazer parar a marcha do tempo. Fazemo-lo, creio, para nos podermos ver no futuro, ou para que alguém veja como éramos no passado, ou para que os nossos filhos se vejam quando desconheciam o andar do tempo (feliz é o tempo de quem o desconhece.) As imagens, os retratos, são a melhor forma que temos de captar os efeitos do tempo em nós próprios, já que não conseguimos observar no quotidiano a natural consequência de envelhecermos a todo o instante. E é por isso que nos espantamos ou comovemos quando nos confrontamos com o que fomos. No dia-a-dia, as mudanças são imperceptíveis. Só a distância as torna claras.

Die Kinder von Golzow mostra mais do que a evolução de pessoas ou de um país. É toda a evolução do mundo que também aí vai inscrita. O caminhar do tempo não conhece fronteiras políticas, limites artificiais que, também eles, são consolidados pelo caminhar do tempo – do longo tempo de muitas décadas ou de muitos séculos. As mudanças que vemos no documentário não se passaram apenas na Alemanha. O que observamos, do preto e branco à cor, nas roupas e nos cabelos, não é exclusivo de Golzow. Também nós passámos por aquilo. Nós ou outros que são (ou foram) nossos. Golzow é uma metáfora do mundo – leitores, ó mortais como eu, desculpai o foleirismo desta escrita!   




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Já aqui falei de follow-up’s e algumas vezes mostrei as marcas do tempo. Não vi o filme. Cinco horas de um documentário alemão é muito tempo para quem já sente dentro de si a escassez dos dias objectivos. Dias que passam sem aprendizagem alguma nem conquista de sabedoria. Se a tivesse, deveria saber por que motivo me emociono tanto ao ver as fotografias destas crianças. Raramente consigo ver uma imagem antiga de uma criança sem pensar naquilo em que se terá tornado. O que, convenhamos, é muito estúpido da minha parte.



António Araújo









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