terça-feira, 6 de maio de 2014

Da incapacidade para agir.




 
 
No Congresso de Paris de 1889, que criou a Segunda Internacional, foi aprovada por unanimidade uma resolução condenando a guerra e os exércitos permanentes. A resolução assentava em duas ideias que iriam fundamentar o debate interno da organização até 1914. Em primeiro lugar, pressupunha-se que os interesses da classe operária eram coincidentes onde quer que os seus membros se encontrassem e que estes nunca seriam divididos por conflitos entre governos capitalistas. Em segundo lugar, afirmava-se que os exércitos permanentes poderiam provocar guerras, enquanto a existência de milícias nacionais, constituídas maioritariamente por trabalhadores, seria um elemento a favor da paz. Um povo em armas saberia quais as guerras justas e recusar-se-ia a combater quando assim não sucedesse. A oposição do movimento operário à constituição de exércitos permanentes tinha ainda uma outra razão de ser: enquanto esses exércitos poderiam ser usados pelos governos para combater o movimento operário, uma milícia, esperava-se, nunca poderia ser um meio fiável de repressão.
Este preconceito contra o exército influenciou os socialistas alemães que apoiaram a política imperialista e nacionalista de Guilherme II. Esta supunha um investimento maciço na marinha imperial, na ânsia de alcançar a Royal Navy, o que implicaria um menor crescimento do exército. Não esqueciam o que Guilherme II afirmou em 23 de Novembro de 1891, em Potsdam, perante os novos recrutas do exército: “Com as actuais maquinações socialistas, pode bem acontecer que eu vos dê ordens para disparar sobre os vossos parentes, irmãos, mesmo pais − possa Deus evitá-lo −, mas mesmo então devem obedecer à minha ordem sem um murmúrio”.    
    A resolução aprovada no Congresso afirmava que “a guerra, produto fatal das condições económicas actuais, não desaparecerá definitivamente senão com o próprio desaparecimento da ordem capitalista”. Ou seja, lute-se primeiro pela revolução, suprima-se o capitalismo, e obter-se-á a paz. Nesse caminho, a própria guerra entre os Estados capitalistas seria um contributo importante na luta pelo socialismo. Contudo, a mesma resolução continha um trecho onde se proclamava que “a paz é a condição primeira e indispensável de toda a emancipação operária”. Então, lute-se para evitar a guerra, pois a paz é essencial para o advento revolucionário do socialismo. O que significa que o movimento socialista internacional tudo deveria fazer para impedir o conflito. Estas duas tendências contraditórias marcaram a atitude da Segunda Internacional perante a guerra, desde a sua constituição.
A corrente maioritária da Segunda Internacional, no entanto, pretendia tudo fazer para impedir a tragédia do conflito militar e cumprir a palavra de ordem “guerra à guerra”, que viria a ser adoptada em 1907. Contudo, em termos práticos enfrentava duas questões que careciam de uma tomada de decisão: o que fazer para evitar a guerra? E o que fazer quando, eventualmente, se desencadeasse um conflito? O movimento socialista tinha a pretensão de que, se conseguisse definir uma posição forte e credível, poderia, apenas pela ameaça do recurso às medidas que viessem a ser decididas, impedir a guerra.
 
 

Édouard Vaillant

 

Keir Hardie

 
 
 
A Segunda Internacional, contudo, nunca alcançou um consenso sobre os meios a utilizar para evitar a guerra. Em vários congressos surgiram propostas para, em caso de ameaça séria de eclosão do conflito, todos os partidos socialistas e todos os sindicatos socialistas decretarem uma greve geral multilateral. Essas propostas foram apresentadas quer por um socialista revolucionário, como o francês Édouard Vaillant, quer por um pragmático inglês, como Keir Hardie. Em França, Jean Jaurès transformou a questão da guerra no seu grande combate político, o que fez com que fosse considerado “o campeão da paz”, epíteto que lhe custaria a vida em Agosto de 1914. Num Congresso da S.F.I.O., defendeu uma política activa contra a guerra “por todos os meios desde a intervenção parlamentar, à agitação pública, às manifestações populares, até à greve geral dos trabalhadores e a insurreição.”
A primeira reunião da Segunda Internacional em solo alemão realizou-se em 1907, em Estugarda. O francês Gustave Hervé foi uma das figuras marcantes do Congresso. Socialista revolucionário, defendia que o único conflito que poderia trazer benefícios para os trabalhadores seria a guerra social, pelo que rejeitava a legitimidade da própria guerra defensiva e sustentava que a única reacção permitida aos socialistas seria a insurreição pela greve geral. Atraiu para a sua causa anarquistas, sindicalistas e socialistas revolucionários que, até 1912, formaram um grupo minoritário, mas extremamente aguerrido, dentro da S.F.I.O. Quando Gustave Hervé propôs, em Estugarda, que qualquer declaração de guerra deveria confrontar-se com a revolta dos trabalhadores e a greve geral, os socialistas alemães, que dispunham de duzentos e oitenta e nove delegados, rejeitaram que a discussão sobre o tema da guerra fosse retomada, devido ao facto de a mesma questão já ter constado da agenda de anteriores congressos. O socialista revolucionário francês Jules Guesde subscreveu esta posição, no que foi seguido pelo grupo minoritário dos delegados franceses. O argumento formal invocado voltava a assumir a iminência da revolução: nada seria necessário fazer antes da vitória do socialismo e esta tornaria caduca a discussão por eliminar a possibilidade da guerra. Jean Jaurès, Lenine e Rosa Luxemburgo, estes últimos sob a influência da revolução russa de 1905, opuseram-se, mas o peso do S.P.D. dominava o Congresso. Um delegado alemão chegou a afirmar que “não nos podemos permitir adoptar métodos de luta que podem comportar graves consequências para a vida do partido e até, em certas circunstâncias, para a própria existência do partido.”
 
 
Jean-Jaurès

 
 
É curiosa a conjunção das posições de Jaurès e dos mais radicais, mas a verdade é que, na questão da guerra. Jaurès apresentava-se então como um radical. Mas também se deve ter em conta que, se as posições eram idênticas, as motivações seriam bem distintas. Para Jaurès, o efeito de uma resolução radical devia ser preventivo, ou seja, destinar-se-ia a assustar os governos e a impedi-los de embarcar numa aventura bélica. Lenine não pensaria da mesma forma. Segundo Hannah Arendt, Lenine extraiu dois ensinamentos da sua análise do processo revolucionário russo de 1905: em primeiro lugar, ao contrário do que defendia o marxismo oficial, a revolução surgira num país não industrializado, sem um movimento socialista forte apoiado nas massas operárias; em segundo lugar, a revolução fora uma consequência directa da derrota russa na guerra com o Japão. Daí retirou duas conclusões que seriam decisivas para a história do século XX: não seria necessária uma grande organização para fazer a revolução, antes bastaria para tomar o poder um pequeno grupo bem organizado, com um líder que soubesse o que queria; uma vez que as revoluções resultavam de circunstâncias e acontecimentos que ninguém podia, à partida, controlar, as guerras seriam bem-vindas porque podiam ser elas a substituir ou a apressar a derrocada económica do capitalismo que Marx previra. Com a guerra, as perspectivas da revolução tornar-se-iam bastante animadoras. Lenine tê-lo-á compreendido em profundidade porque leu a obra “A Alemanha e a Próxima Guerra” do general alemão Friedrich von Bernhardi. Aí se reflectia sobre as características de um conflito que envolvesse exércitos de massas modernos. Estas forças militares tornariam o problema da condução da guerra bem mais complexo, porque, entendia von Bernhardi, o controlo dos combatentes seria muito mais delicado:
   “... se grandes massas escapam ao controlo do alto comando, se o espírito de insubordinação se espalha entre as tropas, nesses casos não só as massas se tornam incapazes de resistir ao inimigo, como se transformam num perigo para elas próprias e para o comando do exército: (...) Em tais condições, é natural que sejam tomadas disposições para pôr rapidamente termo à guerra logo que ela rebente e para suprimir imediatamente a enorme tensão que provoca o levantamento em massa de nações inteiras.”
 

Lenine
 
  VVVVLenine compreendeu de imediato que uma guerra moderna e, em particular, uma guerra prolongada, ofereceria aos propagandistas da revolução um sem-fim de oportunidades subversivas. Já não se tratava apenas de concentrar espacialmente os alvos da sua acção, como acontecia nas fábricas, mas de os poder doutrinar num momento em que, com o moral em baixo, as massas armadas estariam muito disponíveis para se revoltar. Assim agirão os bolcheviques russos durante a guerra, procurando minar o moral das tropas e predispô-las para a amotinação. Portanto, uma resolução apelando à greve geral não era para Lenine, como para Jaurès, um meio de prevenção da guerra ou um meio de, no caso de o conflito se desencadear, forçar os governos a recuar. Pelo contrário, a greve e todas as medidas subversivas seriam o primeiro passo para a revolução.
Entretanto, durante o Congresso de Estugarda procurou-se, como já era hábito, uma solução de compromisso. Foi criado um subcomité que deveria determinar qual a acção a adoptar na iminência da guerra, acção que seria a expressão unânime da opinião socialista. Assim, foi apresentada ao Congresso uma resolução que contentava um pouco todos sem satisfazer integralmente ninguém. Nela, a guerra era considerada inerente ao sistema capitalista e ausente, por natureza, numa sociedade socialista. Entretanto, enquanto não fosse instaurada a sociedade socialista, os partidos socialistas deveriam usar os meios parlamentares para pressionar a redução de armamento e a abolição dos exércitos permanentes. Competiria à Segunda Internacional, como grande órgão do socialismo mundial, coordenar as actividades de todos os partidos socialistas. Por último, a questão da atitude a tomar na iminência da guerra era abordada da seguinte forma: “é dever da classe operária e dos seus representantes parlamentares (...) fazer tudo para prevenir a eclosão da guerra pelos meios que se afigurem mais eficazes, que naturalmente são diferentes em função da intensificação da luta de classes e da situação política geral”. Evitava-se, assim, qualquer referência à greve geral, sem excluir a sua possibilidade. A resolução terminava com uma passagem que se ficou a dever a Lenine e a Rosa Luxemburgo, onde se previa que, na eventualidade da guerra, os socialistas teriam o dever de usar todos os meios para mobilizar o povo para derrubar o capitalismo. A resolução foi aprovada unânime e entusiasticamente. Celebrou-se, com ênfase espectacular, o facto de o movimento socialista internacional declarar “guerra à guerra”.
 
 
Congresso da Internacional Socialista. Copenhaga, 1910
 
 
Em 1910, o Congresso da Segunda Internacional realizou-se em Copenhaga, depois de anos agitados em que a competição naval entre o Reino Unido e a Alemanha atingira o auge e em que o Império Austro-húngaro revelara as suas tendências expansionistas nos Balcãs, ao anexar em 6 de Outubro de 1908 a Bósnia e a Herzegovina. Foi neste Congresso que as diferenças nacionais mais se manifestaram entre os socialistas. Os delegados sérvios e austríacos envolveram-se em ferozes acusações mútuas e os alemães demonstraram claramente a sua desconfiança em relação aos delegados do Partido Trabalhista inglês, recém-admitido na organização, que tinha apoiado a política de construção naval do governo liberal.
Entre os dois congressos, a S.F.I.O. e os sindicalistas franceses, sob a influência de Jean Jaurès e dos anarquistas, tinham adoptado a ideia do recurso à greve geral. Jaurès defendeu, então, a greve geral bilateral, a decidir pelos dirigentes socialistas e sindicais alemães e franceses. No entanto, essa posição perdeu viabilidade quando de seguida, no Congresso de Copenhaga, a quase totalidade dos delegados alemães a recusou, com o argumento de que a greve geral teria mais sucesso onde a classe operária fosse mais numerosa e estivesse melhor organizada, ou seja, na Alemanha, o que, no seu entender, no decurso da guerra favoreceria decisivamente a França e, no caso de um conflito mais alargado, a autocrática Rússia. Naturalmente, perante a rejeição alemã, a maioria dos delegados franceses votou contra a posição que as suas organizações tinham aprovado a nível interno.
Mas os Congressos de Estugarda e de Copenhaga revelaram, acima de tudo, a incapacidade dos socialistas para se unirem e alcançarem uma posição de força que condicionasse as decisões governamentais sobre a guerra. Deve dizer-se que muitos socialistas tinham perfeita consciência de que a adopção da greve geral internacional não tinha qualquer hipótese de ser utilizada eficazmente, devido às características da própria organização. A Segunda Internacional como organização permanente era, na prática, inexistente. Ao contrário do que sucedia na Primeira Internacional, não fora criada uma estrutura centralizada. Os poderes de coordenação do movimento socialista internacional eram assegurados pelos congressos internacionais, que se reuniam, em regra, de três em três anos. As resoluções aí aprovadas, fruto de sínteses de soluções heterogéneas e de métodos de acção política, definiam orientações para os partidos filiados. Mas os congressos evitavam cuidadosamente interferir nas actividades de cada secção nacional, tornando a organização, para além das grandes proclamações, impotente.
Para qualquer decisão ser eficaz era necessário, acima de tudo, que as acções dos partidos socialistas e dos sindicatos fossem coordenadas e que a sua execução fosse simultânea em todas as principais potências envolvidas num potencial conflito. Ou seja, era necessário que houvesse uma actuação de um agente com capacidade de decisão e com poder de execução. Mas os socialistas nunca conseguiram, nem na verdade tentaram, atingir esse nível de coesão internacional.
Os congressos da Segunda Internacional terminavam sempre em clima de euforia, suscitada pela aparente solidariedade entre os socialistas e os operários de todo o mundo, que fazia esquecer que os partidos socialistas, apesar de adquirirem um peso eleitoral crescente, continuavam a ser minoritários e a não participar abertamente no jogo político, nomeadamente porque rejeitavam integrar alianças partidárias que permitiriam governar. Entretanto, algumas vitórias eleitorais contribuíam para convencer os socialistas que tinham de ser ouvidos pelos governantes. Assim aconteceu em 1912, quando o S.P.D. obteve um triunfo espectacular, alcançando cento e dez lugares no Reichstag devido ao facto de um em cada três alemães nele terem votado.  É certo que o seu programa estava virado exclusivamente para questões internas, mas a força da classe operária alemã parecia irresistível.
 
 
Gustave Hervé
 
Foi precisamente em 1912 que Gustave Hervé, o socialista revolucionário que em Estugarda defendera a insurreição operária em caso de guerra, mudou por completo de posição. Hervé  dissolveu o seu grupo radical quando compreendeu que os socialistas alemães e austríacos nunca convocariam uma greve geral insurreccional. O que significava que, se a greve fosse decretada unilateralmente em França, a derrota seria inevitável. Sendo inviável uma greve geral multilateral, pensou Hervé, havia que pôr a pátria em primeiro lugar, de tal modo que em Julho de 1914 proclamará que “o nosso patriotismo revolucionário será o grande recurso e a suprema salvação da pátria em perigo”. Gustave Hervé é o primeiro símbolo da transição socialista do pacifismo internacionalista para um nacionalismo belicista. Mais tarde, um certo Mussolini seguir-lhe-á os passos.
Quando August Bebel morreu, em 1913, foi substituído no S.P.D. por novos dirigentes formados dentro da máquina partidária e habituados às práticas políticas do regime, com uma maior tendência para o compromisso. Nesse mesmo ano, enquanto no Congresso do S.P.D. Rosa Luxemburgo e o seu grupo minoritário reclamavam de novo uma tomada de posição sobre a acção direta e a greve geral, o que foi rejeitado pela maioria, os parlamentares socialistas alemães votaram no Reichstag a favor de uma reforma fiscal que tinha como principal objectivo financiar as crescentes despesas militares. 
Em Novembro desse ano de 1913, reuniu-se em Basileia mais um Congresso da Segunda Internacional, onde se encontraram quinhentos e cinquenta e cinco delegados de vinte e três partidos socialistas. Foi uma reunião, uma vez mais, banhada por optimismo e confiança na paz universal. Mas tudo o que dissesse respeito a meios para alcançar os fins propugnados permaneceu envolto em indecisões e incertezas. Nada se acrescentou quanto a acções concertadas a nível internacional. O optimismo, no entanto, ainda parecia imperar. Na Primavera de 1914, Jean Jaurès terá dito a um amigo que não havia motivo para preocupações, porque “os socialistas cumprirão o seu dever (...) quatro milhões de socialistas alemães levantar-se-ão como um só homem e executarão o Kaiser se este quiser começar uma guerra”. Em 16 de Julho de 1914, o Congresso da S.F.I.O. aprovou uma moção na qual se afirmava que,
 
    “... entre todos os meios de antecipar e de prevenir a guerra e forçar os governos à arbitragem, a greve geral dos trabalhadores organizada simultânea e internacionalmente nos países em causa é um meio particularmente eficaz e é mesmo a mais activa das formas de agitação e de acção popular.”
 
Mas a Segunda Internacional não conseguiu estabelecer um mecanismo institucional de coordenação das acções do movimento operário. Ora, sem esse mecanismo não se dispunha da capacidade para organizar uma acção concertada internacional, a desencadear simultaneamente. Os líderes socialistas confiaram, porventura, na eficácia da ameaça como meio de dissuasão, mas não criaram as condições mínimas para que essa ameaça fosse credível. Não havia, por isso, motivos para optimismo.
Então como hoje, sem União Europeia ou com União Europeia, na antecâmara da guerra ou no boudoir da crise financeira, o socialismo caseiro só é internacionalista quando espera dos outros a solução para os problemas que não consegue resolver.
 
 José Luís Moura Jacinto
 
 
 

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