quarta-feira, 28 de maio de 2014

Colonialismo e Constituição: a revisão de 1959.







 
 
 

A segunda grande crise política do regime salazarista iniciou-se em 1958 e apresentou duas particularidades: foi imprevisível e teve uma influência irremediável nos destinos do Estado Novo[1].

As eleições legislativas de Novembro de 1957 (VII Legislatura) ainda tinham sido marcadas pela “questão de Goa” embora surgissem os primeiros sinais de uma mudança da Oposição quanto à questão colonial, sobretudo por parte do Partido Comunista Português (PCP). A totalidade de mandatos coubera, mais uma vez, à `União Nacional” e, encerrando o ciclo iniciado em 1949, não só Governo não conseguira cooptar parte da Oposição como o PCP consolidara a estratégia frentista que liderava[2].

 No final da sessão de 12 de Fevereiro de 1959 desta VII Legislatura, o deputado Soares da Fonseca, em nome da Comissão de Legislação e Redacção, enviou para a mesa uma proposta de antecipação da revisão constitucional. Tal antecipação foi justificada na sessão seguinte: considerou-se pacífica a interpretação segundo a qual a Assembleia Nacional podia de momento assumir poderes constituintes e, no uso deles, proceder à revisão da Constituição que, por sua vez - e sem pormenorizar -, se entendia oportuna e conveniente.
 
 

 


A proposta de lei de revisão da Constituição foi anunciada por Albino dos Reis, Presidente da Assembleia Nacional, no início da sessão de 19 de Março, sendo logo enviada à Câmara Corporativa e às comissões competentes para estudo. Sem relatório prévio, era apenas assinada pelo Presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar. Constava de 22 artigos e quase todas as alterações respeitavam ao modo de eleição do Presidente da República, que passaria a realizar-se através de um colégio eleitoral restrito. Não se previa qualquer mudança nas disposições constitucionais sobre o ultramar português[3].

Mas, posteriormente, durante a discussão no plenário, foram apresentados três projectos de lei que tinham por objecto normas relativas ao ultramar.

O primeiro foi subscrito pelo deputado Manuel José Homem de Melo, em 7 de Abril, e propunha, entre outras, duas alterações em matéria ultramarina, uma alargando a iniciativa e a competência da Assembleia Nacional (assim reforçando os seus poderes) e, outra, referente às condições de vigência dos diplomas nas províncias ultramarinas. O correspondente Parecer da Câmara Corporativa, relatado por Afonso Queiró, apreciou o projecto na generalidade e na especialidade, com variadas considerações sobre o “legislador colonial” e, em conclusão, não apoiou os pontos em causa[4].

O segundo inseria-se num projecto (subscrito à cabeça pelo deputado Carlos Moreira) de onze alterações à Constituição e incluía duas alterações em matéria ultramarina. Assim, o artigo 134.º deveria ser substituído pelo seguinte: «Os territórios ultramarinos indicados nos n.ºs 2.º a 5.º do artigo 1.º denominam-se genericamente “províncias” e estão em perfeita igualdade e paridade com os demais territórios nacionais». A segunda alteração respeitava ao subsequente artigo 135.º que passaria a dispor: «As províncias ultramarinas mantêm íntima solidariedade entre si e com o continente e terão a mesma estrutura deste, salvas as diferenças impostas pela sua situação geográfica, natureza das suas populações e características próprias de cada uma delas»[5]. O Parecer da Câmara Corporativa voltou a ter como relator Afonso Queiró para quem não se justificavam as novas redacções pois que a revisão de 1951 visara o propósito de não deixar «qualquer dúvida sobre a equiparação constitucional entre a parte europeia e a parte não europeia do território português», pelo que não eram de aceitar agora mudanças de terminologia[6].

O terceiro foi subscrito pelo deputado cabo-verdiano Adriano Duarte Silva e contemplava o estatuto político-administrativo de Cabo Verde. Durante o processo de revisão de 1951 tinha sugerido a integração de Cabo Verde no “sistema metropolitano”, mediante a definição da sua “adjacência”. Agora insistia em que, mediante alteração de três artigos, o arquipélago de Cabo Verde expressamente passasse a fazer parte do território português no Atlântico Norte, ao mesmo título que Açores e Madeira[7]. Segundo o Parecer da Câmara Corporativa, do mesmo relator, este projecto de lei visava, antes de mais, pôr a Constituição em sintonia «com o que Assembleia Nacional já aceitou quando aprovou a vigente Lei Orgânica do Ultramar Português», pelo que era oportuno. Aliás, o Parecer avançava que, para tornar constitucionalmente possível a aplicação, em Cabo Verde ou em qualquer outra província, de um regime administrativo idêntico ao das ilhas adjacentes, bastava dar uma redacção mais adequada ao artigo 134.º da Constituição, quer dizer, fazendo passar da Constituição para a Lei Orgânica do Ultramar a indicação dos territórios com o estatuto de províncias ultramarinas[8].




 
 

A discussão na especialidade decorreu na sessão de 8 de Julho. Porém, os projectos de lei subscritos pelos deputados Duarte Silva e Carlos Moreira (quanto a este último, relativos às alterações dos artigos 134.º e 135.º, como se viu) seriam apreciados conjuntamente, pois, na sessão, foi apresentada uma “proposta de emenda” em sua substituição, subscrita pelos seguintes deputados pelo Ultramar:  Sarmento Rodrigues,  Águedo de Oliveira, Castilho de Noronha, Martinho da Costa Lopes, Francisco Tenreiro, Jorge Jardim e Avelino Teixeira da Mota.

A defesa da “emenda” coube a Sarmento Rodrigues, que fora Ministro das Colónias e depois do Ultramar entre 1950 e 1955, era deputado por Moçambique desde 1949 e  presidia à Comissão do Ultramar. Antes de mais - disse -, a nova proposta não ia contra qualquer outra, nomeadamente contra a do deputado Duarte Silva, nem mesmo contra o parecer da Câmara Corporativa, «porque a todos atende e até mesmo amplia». Como a proposta inicial do Governo sobre a revisão constitucional não continha referência ao ultramar, tinha concluído não estar encarada qualquer reforma substancial, pois, se fosse o caso, haveria que empreender «uma obra de fundo, de estrutura geral» na actualização da Constituição, muito embora não pusesse em causa nem os seus fundamentos nem os princípios relativos ao ultramar. No entanto, aproveitava a ocasião para sugerir que se arrumassem melhor as disposições constitucionais, pois parecia-lhe não haver necessidade de um título separado para o ultramar «nem talvez mesmo classificar de ultramarinas umas províncias que estão um pouco mais longe do que outras», de tal forma que o texto constitucional deveria preparar-se «para o dia em que a unidade seja o que humanamente se pode chamar absoluta e perfeita». Segundo Sarmento Rodrigues, a nova proposta tinha tal abrangência que a lei poderia «a todo o tempo alterar todos ou qualquer dos estatutos político-administrativos das províncias ultramarinas e a designação de “províncias” e integrá-las no regime de administração dos outros territórios nacionais»[9].
 
 

 


Consequentemente, depois de intervenções concordantes dos deputados Sócrates da Costa, Carlos Moreira e Soares da Fonseca, foi aprovada a “proposta de emenda” em causa – a qual, além disso, implicou que fossem rejeitadas ou prejudicadas as demais alternativas, incluindo as que constavam do projecto inicial do deputado Adriano Duarte Silva, ausente desta sessão e que, por essa razão, o não retirou. De tal “emenda” resultou o novo texto do artigo 134.º da Constituição: «A lei definirá o regime geral de governo dos territórios a que deve caber a denominação genérica de províncias, os quais terão organização político-administrativa adequada à situação geográfica e às condições do meio social. A organização político-administrativa deverá tender para a integração no regime geral de administração dos outros territórios nacionais».

Este foi, portanto, o único artigo sobre o ultramar alterado na revisão constitucional de 1959. O Governo não propusera qualquer mudança; durante a discussão os deputados tomaram poucas iniciativas; restritivamente, a Câmara Corporativa só se pronunciou sobre estas; foram abafadas as divergências quanto ao regime da autonomia; reforçou-se a linha “unitarista”. O novo artigo 134.º era indeciso e correspondeu a uma vitória da política assimilacionista defendida por Sarmento Rodrigues e resultou numa derrota insuperável dos defensores da “adjacência” de Cabo Verde (como se comprovará em 1962, no Conselho Ultramarino convocado por Adriano Moreira).

Por outras palavras, as questões da autonomia política foram adiadas: legalmente, para a revisão da Lei Orgânica do Ultramar; eventualmente, para uma nova revisão constitucional que convertesse Portugal num Estado federal. Porém, Salazar decidira em Maio de 1959, ainda durante o processo de revisão constitucional - e ignorando-a -, que só havia um caminho e nada mais era preciso: «Aguentar! Aguentar!»[10]. Como manterá esta determinação, aquelas duas alternativas falharão em 1962-1963. 
 
 
 
António Duarte Silva              
 





[1] Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), Vol. VII de José Mattoso (dir.), História de Portugal, Círculo de Leitores, 1994, p. 523.


[2] Ver Mário Matos e Lemos, Oposição e Eleições no Estado Novo, Assembleia da República – Divisão de Edições, 2012, p. 178, e Manuel Braga da Cruz, Monárquicos e Republicanos no Estado Novo, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1986, p. 141.


[3] Diário das Sessões, n.º 86, de 20 de Março de 1959, pp. 375/377.


[4] Cfr. Parecer n.º 15/VII, apud Diário das Sessões, n.º 109, de 15 de Maio de 1959, pp. 776/781.


[5] Cfr. Projecto de lei n.º 23, Diário das Sessões, n.º 91, de 9 de Abril de 1959, pp. 433/434. É importante conhecer as redacções vigentes, ambas provindas da revisão de 1951, cujas alterações agora se propunham. Quanto ao artigo 134.º, dizia: «Os territórios ultramarinos de Portugal indicados nos n.ºs 2.º a 5.º do artigo 1.º denominam-se genericamente “províncias” e têm organização político-administrativa adequada à situação geográfica e às condições do meio social»; por sua vez, o artigo 135.º dispunha: «As províncias ultramarinas, como parte integrante do Estado português, são solidárias entre si e com a metrópole».


[6] Parecer n.º 17/VII, apud Diário das Sessões, n.º 109, de 15 de Maio de 1959, p. 788.


[7] Cfr. Projecto de lei n.º 24, Diário das Sessões, n.º 91, de 9 de Abril de 1959, p. 434.


[8] Cfr. Parecer n.º 18/VII, apud Diário das Sessões, n.º 109, de 15 de Maio 1959, pp. 789/790.


[9] Diário das Sessões, n.º 132, de 9 de Julho de 1959,  pp. 1193/1196.


[10] Oliveira Salazar, “A posição de Portugal em face da Europa, da América e da África”, in Discursos e Notas Políticas – VI – 1959/1966, Coimbra Editora, 1967, p. 60.


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