segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O Nascimento de uma Nação.



 
 
Histórias não faltam, quase todas comprovadamente falsas, embora nenhuma seja mentirosa, mas vá-se lá saber como começou o jazz.
Quem quiser, tome como decisiva a data de 14 de Novembro de 1917. À meia-noite desse dia, o mayor de Nova Orleães decretou o encerramento dos prostíbulos do District, popularmente alcunhado de Storyville, em homenagem ao vereador Sidney Story, que em 1897 definiu a rega e esquadro (e éditos municipais) quais os quarteirões da cidade, emoldurados por um quadrilátero de ruas, onde não era proibida (o que é diferente de ser legalizada) a prostituição. Reza a lenda que na noite desse dia, se fatídico ou seminal é o que adiante se verá, a polícia marítima andou de porta em porta a brandir os pungentes cinturões de cabedal do seu uniforme, enxotando à correada prostituas, proxenetas, clientes, barmans e demais agentes da indústria do entretenimento dali para fora. Assim vingavam as forças da ordem os quatro marujos assassinados à facada naquele bairro, que nada devia a Gomorra e muitíssimo menos a Sodoma. Recorde-se que os Estados Unidos tinham acabado de entrar na I Grande Guerra Mundial e pouco vagar teria a marinha para combater o huno se estivesse carcomida pela sífilis, pois eram largamente composta de matalotes e magalas a massa de consumidores do produto que em Storyville se expunha da forma mais literal.



Os comerciantes de Storyville editavam o Blue Book, um guia turístico, deveras útil e prático,
com os endereços dos bares e dos prostíbulos…
 
…no qual algumas meninas tinham página, publicitando os seus méritos.
 

 

Também se vendiam postaizinhos com as atracções e os monumentos locais
 
 
Bem pode a humanidade atravessar os milénios que certas práticas pouco se modificam. Quando não é praticado com a selecta finalidade procriadora, como tudo indica que sucedia em Nova Orleães, o sexo é muito amigo do álcool e ambos têm na música óptima companhia – ainda está por descobrir trio mais prazenteiro do que este.

Daí que à frente das chibatadas policiais também correram Kid Ory, King Oliver e um púbere Louis Armstrong, entre outros animadores musicais dos bordéis localmente popularíssimos mas futuramente menos famosos.

Storyville portanto, não só amoleceu e secou, como emudeceu. E foi ao dar-se pela falta das sincopadas composições musicais que enchiam os ares de palpitação e alegria, atraindo clientela e espantando as ratazanas, que se percebeu o que ali havia de original.

“O jazz fui eu que o inventei”, assevera Jelly Roll Morton, cujo ego nunca teve mãos a medir. Não é improvável que musicologicamente tenha alguma razão, embora a sua reivindicação seja inócua. Aquela que dentre as diversas declinações musicais da Nova Orleães de então se pode hoje designar primitivamente como jazz (nome que a lexicologia só mais tarde estabeleceria), pouco mais seria do que uma sonoridade autóctone, informal e pitoresca, que haveria de ter expressão meramente nativa se não fosse a tentativa de erradicação da noite de 14 de novembro de 1917 e o êxodo que ela proporcionou.

Aliás, Jelly Roll Morton só teve a jactância de expelir tamanha fanfarronada numa polémica travada W. C. Handy nas páginas da revista Downbeat, no seu número de Agosto/Setembro de 1938, ou seja, aos 48 anos de idade e mais de 30 de carreira – portanto com uma consciência bastante retroativa. Contribuía ainda para o seu enfatuamento o facto de estar a ser oralmente inventariado, desde Maio desse ano, pelo supino Alan Lomax, folclorista, etnomusicólogo e historiador, no âmbito da sua recolha de materiais para o épico, monumental, cardeal e preciosíssimo “Archive of American Folk Song” da Library of the Congress (a totalidade desta recensão de Jelly Roll Morton – entrevistas e canções – teria edição completa apenas em 1948, 1955 e finalmente em 2005, em 8 CDs.)
 
Jelly Roll Morton merece alguma detença, por ser um figurão que tipifica iconicamente o ambiente social e as maneiras de ser dessa mítica e deletéria Nova Orleães. Pianista, chulo, carteador, rufião e faquista, recebeu o alcunha de “jelly roll”, não por ser doce como uma torta de geleia, mas por ser essa a designação de vagina no calão negro de Storyville. Depressa este crioulo passou das “sporting houses” (eufemismo dele para lupanar) aos barcos que subiam e desciam o Mississippi, casinos flutuantes (forâneos a qualquer jurisdição autárquica) que traziam júbilo às cidades onde aportavam. Rio acima, Jelly Roll Morton chegou tão longe quanto Memphis – 650 kms a montante de Nova Orleães – e a breve trecho era uma celebridade no Sul negro, com as suas pianadas e espectáculos de vaudeville, obviamente protagonizados pelas meninas que ele namorava e agenciava. Algum desafogo financeiro (ou riqueza, do ponto de vista dos negros americanos) que esta arriscada boa-vai-ela trouxe a Jelly Roll Morton pôs-lhe na boca um sorriso que ele presumia requintado e sedutor mas era deveras alarmante: substituíra os incisivos por dentes de ouro cravejados com diamantes. Assim foi que na ocorrência de novembro de 1917 estava ele entre Chicago e Los Angeles.
 
“River boats” do Mississippi em Memphis - 1906
 
 
O sorriso especial de Jelly Roll Morton

Jelly Roll Morton e Alan Lomax à conversa,
com “I’m Alalabama Bound” ao piano
 
O que sucedeu então aos músicos compelidos à diáspora após a extinção de Storyville?

Muitos singraram o Mississippi para norte, sempre mais para norte, à procura de pecado que os acolhesse, onde quer que se encontrasse, sabendo que ele pede sempre ritmo, sabe sempre melhor com melodia e não prescinde de harmonia. Houve quem arribasse a Kansas City, germinando um capítulo da história do jazz que viria a desabrochar na década de 30, durante a regência, tão ilícita quão fáctica, do boss político e “dono daquilo tudo” Tom Pendergast, “TJ” para os amigos e padrinho do futuro presidente Harry Truman. Mas, por enquanto, deixe-se crescer em paz os talentos de Count Basie, Lester “Prez” Young, Coleman “Bean” Hawkins, Charlie Parker, que há de chegar a hora deles, não sendo agora para aqui chamados.

Eis então que em 1918 King Oliver atinge as margens do Lago Michigan nessa buliçosa metrópole que era Chicago. Havia de estar demasiado frio ou demasiado quente, porque assim é o clima instável e ríspido da “wind city”, o que não impedia que ela crescesse a um ritmo vertiginoso, como a grande capital das comodities agrícolas da América, entreposto ferroviário e de serviços, magnetizando comunidades inteiras (entre 1900 e a década de 30 a sua população quase triplicaria de 1,6 milhões para 3,3 milhões), sobretudo de polacos, mas também de eslavos, germânicos, italianos, alguns irlandeses que não couberam em Boston, e não poucos negros – fugindo às leis Jim Crow do sul segregacionista – a quem a dureza dos ofícios de colarinho azul não assustavam. Chicago era assim uma cidade rude, mas com os bolsos de todas as suas classes sociais repletos de dinheiro novo, desavergonhado e lapuz. De modo que em vez de ceder à soturnidade, originada pelas agruras do clima, ou à fadiga, atiçada pelas exigências do capitalismo, tinha uma índole voraz.
 
 
 
 
Chicago em 1917



King Oliver foi fazendo a mão e ganhando nome até 1922, ano em que formou a sua Creole Jazz Band e passou a entreter e animar os chicagoans no Lincoln Gardens, um salão de baile ou cabaret, como lhe hão de chamar os probos, com capacidade para 500 pares dançantes, quem sabe se o maior da América por esses dias. A popularidade foi retumbante e o êxito de tal modo avassalador que King Oliver telegrafou ao seu afilhado Louis Armstrong: ele que se fizesse à estrada e desalvorasse da pasmaceira lodosa do bayou, que cá em cima havia trabalho a rodos, aplausos frenéticos e as ruas de Chicago era como se estivessem pavimentadas a ouro; Armstrong nem quis acreditar que lhe estava prometido um apartamento com águas correntes e casa de banho privada, requintes que ele nunca disfrutara.
 
 

Louis Armstrong não é o gordo do trompete lá atrás, mas o jovem em primeiro plano

O sucesso do Lincoln Gardens e a fama do estilo musical de Oliver muito deviam, por antinomia, à Lei Seca em vigor desde janeiro de 1920. As leis podem dobrar a realidade e embiocar os costumes mas não os iludem – fenómeno que os juristas ainda hoje têm dificuldade em aceitar – pelo contrário: nada como uma boa proibição para estimular o apetite pela coisa proibida. A sedenta classe operária de Chicago não se converteu, portanto, às delicadezas do chá ou à pulcritude da água mineral para aquecer o corpo no inverno e refrescar a boca no verão. Como mais tarde se concluiu como consequência óbvia, a Lei Seca fomentou toda uma fileira industrial ligada ao álcool, desde a produção, ao tráfico até ao consumo, cuja operacionalidade e protecção esteve a cargo dos cartéis do crime organizado. Em que melhor líquido amniótico poderia o jazz florescer?

Não haveriam de terminar esses roaring twenties sem que inaugurasse o majestoso Grand Terrace Cafe (em 28 de dezembro de 1928, ou seja, 3 semanas antes do massacre de S. Valentim) onde pontificava a orquestra do pianista “Earl Fatha” Hines, amigo do peito de Armstrong e grande compincha do proprietário, o filantropo Al Capone, que, infelizmente, não ficaria famoso pela sua pródiga sopa dos pobres – evidente precursora do atual Banco Alimentar Contra a Fome. Por essa altura, 1928, toda a América dançava o jazz – o estilo ragtime – desde a classe alta boémia dos prósperos centros urbanos, até ao operariado negro das fábricas do rustbelt. Tal se deveu ao sucesso, dir-se-ia que instantâneo, de Louis Armstrong que, em menos de 4 anos após se instalar em Chicago, conquistaria a cidade, os Estados Unidos e o mundo – literalmente: em 1924 as bandas de jazz eram indispensáveis nos cabarets berlinenses.

Quatro anos em que algo de fundamental sucedeu e que só há pouco tempo se começou a dar a devida importância.
Se a Lei Seca permitiu que proliferassem os músicos profissionais – a partir daqui e durante as décadas futuras, os negros americanos só alcançavam algum estatuto financeiro mediano, ou até um pouco mais elevado, como músicos – dois outros fenómenos, tão relacionados entre si como o ovo e a galinha, deram ao jazz expansão universal: a nascente indústria discográfica e o início da radiofonia de cobertura nacional.
 
 
As primeiras gravações de Louis Armstrong são para a chancela Okeh e datam de 1923, ainda integrado na banda de King Oliver. Em 1926 a Okeh seria comprada pela Columbia Phonograph Company, no contexto da batalha brutal entre grandes companhias pelo estabelecimento de um standard de gravação e reprodução áudio doméstico que atravessou os anos 20. Com a invenção dos microfones pela Western Electric a gravação eléctrica sobrepôs-se à acústica (cilindros vs. discos) o que teve impacto nos sistemas de reprodução: o Fonógrafo, a Grafonola e a Vitrola, competiam ferozmente entre si pelos favores dos lares.

De forma igualmente epidémica se propagaram as emissões radiofónicas regulares e comerciais. Debutaram cerca de 1920, com uma potência radial que lhes concedia abrangência apenas local e regional, mas com a acelerada evolução técnica em 1928 já os Estados Unidos estavam cobertos costa-a-costa por duas redes nacionais da NBC (a “blue” e a “red”) e uma da CBS, companhia do grupo Columbia. Baseado nas rendas da publicidade, quanto mais ouvintes comprassem o aparelho e tivessem acesso às ondas, mais lucrativo seria o novo media.

Só engenheiros presumem que o consumidor compra rádios, discos e gira-discos por fetichismo tecnológico – era a música o que as pessoas deveras adquiriam! Isto entusiasmou as estações de rádio a investirem com abandono na contratação de formações musicais que tocassem ao vivo e, claro, nas gravações dos artistas mais apreciados pelas audiências. Assim tocou no chão um tornado que ainda hoje sopra em toda a parte menos na academia, onde não existe categoria autónoma que a observe e examine: a indústria do entretenimento, estioladamente subsumida ao campo da cultura (quando não ao da sociologia), esse ectoplasma que “dignifica” e desvitaliza tudo o que toca.
 
 
Os “Hot Five”, da esq. para a dir.:
Johnny St. Cyr, “Kid” Ory, Armstrong, Johnny Dodds, Lil Harden-Armstrong
 
 
Era esta a deixa que Louis Armstrong e os seus entretanto formados Hot Five (1925) precisavam para serem alcandorados ao estatuto inédito de estrelas da música popular, acessível a todas as orelhas do planeta ocidental, graças ao ritmo frenético da sua música, à (aparente, muito aparente) ligeireza e facilidade das suas melodias e à simplicidade harmónica das canções. O jazz converteu-se assim em algo de novo e nunca “ouvisto”, granjeando a acessibilidade e a universalidade que epitomava em substância o programa da modernidade, da qual se tornou indissociável, como modelo para todo o século XX. Tudo isto por obra de um negro, rústico, deseducado, descendente directo de escravos, com uma voz que feria qualquer critério de primor, e uma inventividade improvisada, sem pauta ou partitura, desconcertante para os eruditos.
  

Theodor Adorno ouvindo jazz com atitude crítica
 
O gigantismo do triunfo de Louis Armstrong teve como justa medida a profunda incompreensão de Theodor Adorno que levando as mãos à cabeça com tal cacofonia harmónica, semelhante platitude melódica e desconfortável estridência tímbrica, decretou o jazz como “a falsa liquidação da arte – em vez da utopia se tornar realidade, desaparece do quadro.” E mais invectivou: “o objectivo do jazz é a reprodução mecânica de um momento regressivo, um simbolismo castrador.” Ainda hoje uns desculpam a surdez de Adorno com a sua ortodoxia e outros vice-versa, havendo quem declare que o génio amoleceu um pouco depois de exposto ao sol de Pacific Palissades, em Los Angeles, entre 1941 e 1949, onde consta que refilou muito e saboreou pouco.
 
 
* * *

Chegados aqui talvez já não seja tão ousado propor que o jazz terá então nascido – no sentido de nascer para o mundo, ou de nascer com a morfologia que se veio a desenvolver – com os primeiros acordes que Louis Armstrong proferiu em Chicago, circa 1922. Foi desta fonte que brotou o caudal do jazz, que já foi um rio copioso, uma cascata torrencial e talvez hoje se reduza a um córrego onde poucos ainda bebem. A natureza reles e rasca, depravada e debochada do jazz, em constante conivência com o crime, não carecia ser-se puritano para com ela se inquietar. Hoje, porém, o que deveras poderá ser inquietante ao amador do jazz é a sua institucionalização e a decência cultural que o reveste – há bens que vêm por mal.
 
 
 

O primeiro cartoon acerca do jazz data de 1890 e não é lá muito elogioso

 
 
 
José Navarro de Andrade
 
 
 
 

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