Norma Bengell
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Caiu das
estrelas, nem eu estava à espera. Maravilhoso achado nos fundos de uma livraria, O Rio no Cinema, de António Rodrigues,
tratado coffee table que nos pega na
mão e leva por cada centímetro de areia filmada ao longo de um século. Dos
alvores do preto e branco até Tropa de
Elite, cinema brasileiro e estrangeiro, do novo e do velho. Na página 97,
numa nota curta demais, paramos num apeadeiro chamado Os Cafajestes. Filme de 1962, da autoria de Ruy Guerra, inspirado
na nouvele vague, ficou na História
como a primeira aparição de um nu frontal no cinema do Brasil. Mas o que a cena
mais tem de memorável vai muito para lá da nudez da protagonista, a actriz
Norma Bengell. Um homem, moço rico do Rio, de nome Jandir, leva uma mulher para
uma praia deserta, o Recreio dos Bandeirantes. De repente, surge outro homem em
cena, saindo do porta-bagagem do automóvel onde estava escondido. A aracnídea
urdidura consistia em fotografar e, depois, chantagear a jovem. Num
plano-sequência sufocante de quatro minutos, os dois homens cercam a mulher,
desamparada. Rodopiam o automóvel em torno do seu corpo. É cena nouvelle vague, por uma pena. Alguns achá-la-ão datada e gasta, previsível,
enfadonha, até medonha. É medonha, de facto. Cena de uma violência incrível, de
martírio de uma mulher. Desesperada e nua, como na música de Chico Buarque.
Anteontem, o
prof. Marcelo leu na TV a carta de uma aluna que dizia que, em visita à
Assembleia, ficara surpreendida por ter visto os deputados no hemiciclo a
consultarem sites que mostravam
«mulheres avantajadas». Muito fino e distinto, o senhor deputado José Magalhães reagiu
assim: «Marcelo parece ter um problema com mulheres avantajadas». Pois parece
que nós temos aqui um problema é com o deputado José Magalhães, um homem
asselvajado.
Mulher avantajada, isso sim, era Norma Aparecida Almeida Pinto Guimarães d’Áurea Bengell, a actriz que protagoniza a mulher
desamparada de Os Cafajestes. Filha
de um alemão afinador de pianos e de uma senhora rica da zona Sul do Rio de
Janeiro, Norma cresceu em condições humildes. A mãe fora deserdada pela família
em virtude – ou desvirtude – de se ter junto ao alemão sem boda ou celebração.
Às tantas, Norma teve de ir viver para a Alemanha, com o pai, entretanto
separado da menina-rica da zona Sul. De regresso aos trópicos, Norma começou a
trabalhar como modelo, nos anos 50, e mais tarde como actriz de revista,
cantora e actriz de cinema. À semelhança dos seus pais, Norma escandalizaria a
sociedade carioca da época por ter ido viver com o actor italiano Gabriele
Tinti, em 1964. Separou-se de Tinti em 1969, pois o transalpino queria
proibi-la de trabalhar fora de casa. À época, dizia Jece Valadão (o protagonista de Cafajestes), Norma Bengell era «a mulher mais desejada
do Brasil». A cena da praia do Recreio dos Bandeirantes valera-lhe a censura da
Igreja e de organizações ultraconservadoras, como uma, poderosa, com o risível
nome «Tradição, Família e Propriedade».
Fez carreira no exterior, correu o
Atlântico para cá e para lá. Em 1968, foi sequestrada no Teatro de Arena, em
São Paulo, e levada para o Rio por três homens do 1º Batalhão Policial do
Exército. Interrogada durante várias horas sob acusação de «subversão na classe
teatral», esta seria a primeira das muitas detenções que sofreu durante a
ditadura militar. Participou na célebre Passeata dos Cem Mil, juntamente com
outras actrizes de renome. Aqui se vê a sua grandeza, que torna pequena,
minúscula, ínfima de infame, a tirada machista do deputado Magalhães
(recorda-se: «Marcelo parece ter um problema com mulheres avantajadas»). A
história é a seguinte: muitos anos depois, em 2010, a então candidata a
presidente Dilma Rousseff colocou, entre imagens da sua trajectória biográfica
de resistência à ditadura, a fotografia em que Norma aparecia, ao lado de
outras actrizes, na Passeata dos Cem Mil. Voluntária ou inadvertidamente, Dilma
fez-se passar por Norma. Esta, que poderia ter reagido mal a este gesto
abusivo, condescendeu, relativizou, perdoou o gesto de Dilma, que muitos
interpretaram como uma tentativa de enganar o eleitorado. Norma mostrou
grandeza, desprendimento.
Na Passeata dos Cem Mil, contra a censura
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Assumida feminista, assumiu também ter
tido uma vida amorosa preenchida. Há muito de polémico no que disse e fez. Em
1984, quando Mick Jagger teve uma pavorosa incursão pelos trópicos, filmou com
ele o videoclipe da música She’s the Boss,
desempenhando o papel de «fazendeira decadente e autoritária». Levou à letra a
função: «Cruzei as pernas sobre o dorso do Mick para roubar a cena e copulei feito
uma louca, enquanto ele cantava. Cavalguei um garanhão, ele enlouqueceu. Claro,
depois eu avisei: “Olha, estou acostumada, só fiz isso na vida”», disse Norma numa entrevista da época.
Nunca quis ter filhos, confessando ter
feito 16 abortos (novo escândalo, claro). Morreu no Rio de Janeiro, numa
madrugada de Outubro do ano passado. Com 78 anos, de cancro no pulmão. Será
recordada não como realizadora ou actriz, como cantora ou resistente à
ditadura. Lembramo-la, sobretudo, como aquela mulher nua e indefesa que, na
praia dos Bandeirantes, teve de enfrentar a maldade machista dos cafajestes.
António Araújo
Não percebi a relação entre o triste episodio local e a Norma que procurava sair da norma.
ResponderEliminarEu cresci vendo e desejando(como bem disse o Jece) como milhões mais ,filmes com a Norma.Não este que era "serio "mas produções da Atlandida,chamadas chanchadas em que ela era a Bela de serviço.As pessoas precisavam de viver e filme serio nunca dava dinheiro.Ainda hoje não dá...Obrigado pela saudade.
ResponderEliminarMuito bom, muito belo e avantajado, este post, António :-) e bem que podia tb entrado a Fischer, por aí :-)
ResponderEliminarAntonio, a editora nVersos acaba de lançar a autobiografia da Norma. Está ótima, vale a pena conferir: http://www.nversos.com.br/norma-bengell
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