quinta-feira, 10 de setembro de 2015


impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

# 85 - KEITH JARRETT

 



 
Poderia dizer-se que o impacto de Keith Jarrett foi epocal. Bem no meio da espessura do jazz dos anos 70 o cometimento de “The Köln Concerts” teve um efeito igual ao de uma enseada serena que surge de repente ao cabo da tempestade. Mas, pelo que estava antes e sobretudo pelo que veio depois, percebemos hoje que esta obra não foi um mero epifenómeno, um golpe de sorte como há tantos e alguns aqui trazidos, mas um resultado e uma bússola.
       Jarrett e o piano foi um amor de criança que nunca esmoreceu. Teve formação clássica, como tão demonstrado iria ficar, e quando o seu gosto se aproximou do jazz tendeu a prestar mais atenção ao que faziam os grupos sem piano de Ornette Coleman ou Gerry Mulligan ou a pianistas que revolviam as regras do bom tocar, como Thelonious Monk, claro, mas também Paul Bley.
A carreira profissional de Keith Jarrett debutou – mais uma – nos Jazz Messengers de Art Blakey, mas não passou de uma digressão iniciada no dia em que fez 21 anos. O verdadeiro tirocínio deu-se durante dois anos, 1966-1968, no quarteto de Charles Lloyd, onde conheceu o amigo para toda a vida, o baterista Jack DeJohnette. Este quarteto dissolveu-se de maus modos por malas artes na repartição do vil metal, após o que Jarrett teve uma primeira experiência de liderança, formando um grupo com Charlie Haden e Paul Motian, ambos um pouco mais velhos, bastante mais batidos e então de mãos livres, entre duas fases da respetivas carreiras.
Entra Miles Davis na vida de Keith Jarrett e como de costume virou-a do avesso. O ano era 1970, precisamente aquele em que Davis perpetrara a sua terceira revolução com “Bitches Brew”, um mar de música elétrica. A Jarrett coube primeiro o órgão eletrónico e depois da saída de Chic Corea, também o Fender Rhodes o suprassumo do piano eletrónico. Como se cura a mordidela de um cão com o pelo do próprio cão, esta passagem por Miles, apesar do enorme respeito que Jarrett nunca deixou de nutrir pelo trompetista, fez com que ele abominasse em definitivo qualquer relação entre o som e os watts.
À saída da formação de Miles, Keith Jarrett conheceu Manfred Eicher, um alemão que tinha acabado de fundar uma etiqueta chamada Editions of Contemporary Music, ou apenas ECM. Saberiam que estavam a fazer uma aliança para a vida?
 
 
 
 
The Köln Concert
1975
ECM 8001064
Keith Jarrett (piano)
Se não foi o apogeu terá sido a consagração absoluta que Jarrett atingiu em 1975, com a gravação de um concerto a solo na cidade de Colónia. A música não vale só pelo agrado geral que suscita nem pelo êxito que alcança, muito menos no jazz, muitíssimo menos nos anos 70. Mas seria pedante ignorar estes sucessos. Sobretudo quando, como no caso de “The Köln Concerts” não houve da parte de Jarrett qualquer inflexão no sentido de ir à procura de palmas da plateia nem de palminhas nas costas. Seja então registado sem desprimor e para quem se interessa por tais contas, que este é ainda hoje o disco de piano mais vendido de sempre.
Linha rítmica depurada ou mesmo ausente, melodias de cariz fortemente lírico, quase romântico, e harmonias pungentes, à beira do maneirismo, tudo isto deixa “The Köln Concerts” suspenso entre a serenidade e a melancolia. Além de que na prática de muitos amantes foi convertido no melhor disco para namorar dos anos 70. Lá ao fundo podemos sentir a respiração de Eric Satie e um pouco mais próximo, só com Bill Evans se tinha vivido semelhante calmaria no jazz.
“O seu fraseado, o toque de mão, a qualidade da suspensão, o rubato” são as caraterísticas que Eicher admira em Keith Jarrett. Sobre isso há a acrescentar como timbre do pianista Jarrett o crescente purismo do som acústico, e um perfecionismo por vezes demasiado exigente. Preferindo os auditórios ao estúdio, a sua intolerância em palco, porém, fez legenda. Numa noite de Junho de 1981, Jarrett subiu à cena de sapatilhas e toalha ao pescoço num Coliseu dos Recreios de Lisboa cheio como um ovo. Mas ao fim de alguns acordes, ou porque alguém gritou “yeah” da galeria, ou porque uma porta rangeu, o pianista estacou, fulminou a plateia com o olhar e retirou-se. Na seguinte meia hora foi o descalabro; uma senhora da organização veio a instâncias do artista pedir silêncio aos “verdadeiros apreciadores da música de Jarrett”, ao que a casa veio abaixo, esconjurando o pedantismo da frase com uma vibrante pateada. Jarrett regressou, mas foi sol de pouca dura, pois bastou-lhe ouvir tossir para que insultasse o prevaricador com umas escalas chocarreiras. Nova assuada e o músico nunca mais voltou a Portugal.
A partir de 1983 Keith Jarrett formou o Standards Trio com Jack DeJohnette e o contrabaixista Gary Peacock, com quem já gravou até agora 20 álbuns, todos de composições standards, e com o qual tem alternado as suas gravações a solo. Quase sempre ao vivo.
  
 
José Navarro de Andrade
 
 
 

6 comentários:

  1. Não conhecia a história do concerto dele em Portugal, que é bem bizarra, diga-se. Mas a organização deveria ter-se lembrado que 1981 ainda era muito cedo para ouvir Jarret Por estas bandas. Da vasta obra em piano solo, julgo que a trilogia Koln, La Scala e Paris são as estrelas da companhia. O Himns Spheres (órgão) é lindissimo.

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    1. Seja muito bemvind@ a esta caixa de comentários. Já neste século ele foi fazer o mesmo "número" a Perugia, talvez com maior insulto. Cá do alto da minha idade dir-lhe-ei que o Coliseu estava cheio como um ovo de um público conhecedor e preparado. Para muita gente, eu incluído, o "Koln Concerts" era o disco favorito para namorar; além de que a ECM estava na moda.

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  2. Keith voltou a Portugal e a organização quase que distribuiu aquelas máscaras que os japs usam quando andam constipados.
    http://www.cmjornal.xl.pt/cultura/detalhe/keith-jarrett-hoje-no-ccb.html
    Tenho (desculpem o pedantismo) 37 discos dele.
    Vou colocar aquele que considero a pedra filosofal.
    Até breve

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  3. Terá sido em 1972 ou 1973 que ouvi Keith Jarret, ainda teclista de Miles Davis, no festival de jazz de Cascais? Seja como for, é a minha memória musical mais emocionante e perene. Entre o poderio do conjunto de Davis, surge de repente um solo de Jarret, um fio musical, uma preciosidade despojada até ao osso, um encanto que envolveu e silenciou todo o pavilhão durante 5 minutos. Como se viu pelos aplausos toda a gente compreendeu que acabara de receber um presente muito especial. E foi evidente que teríamos uma carreira a solo.

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    1. Caro José, foi a 20 de Novembro de 1971 (na mesma noite em que Charlie Haden, que no festival tocava com Ornette Coleman, dedicou 'Song for Che' "aos movimentos de libertação do povo de Moçambique, Guiné e Angola”). Já agora, além de Miles e Jarrett, a formação incluía ainda Gary Bartz, Michael Henderson, Don Alias, Mtume e Ndugu Chancler. Antes disso, o pianista tinha cá tocado a 21 e 22 de julho de 1966 com o quarteto de Charles Lloyd (foi no clube Luisiana, também em Cascais - esta primeira passagem por Portugal terá sido a inspiração para o tema 'Lisbon Stomp'). Já agora, para quem não seguiu o link deixado por F.A., o concerto no CCB foi a 12 de novembro de 2006, precisamente com um 'Standards Trio' (com Gary Peacock e Jack DeJohnette) que, ao que tudo indica, e ao fim de 30 anos (1983-2013), chegou ao fim.

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