Passaram-se,
recentemente, 40 anos sobre um dos mais controversos casos da história
jurídico-constitucional americana: FCC
v. Pacifica Foundation. Esta
decisão, proferida pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América no dia 3
de Julho de 1978, atribuiu poderes de fiscalização inéditos – quiçá censórios –
à Federal Communications Commission (FCC), o órgão federal responsável pela regulação das comunicações nos
Estados Unidos.
No dia 30 de
Outubro de 1973, quase cinco anos antes daquela decisão histórica, a estação de
rádio WBAI,
uma conhecida rádio alternativa nova-iorquina,
decidiu discutir o poder da linguagem num programa vespertino apropriadamente intitulado
“Lunch Pail”. A título de exemplo, Paul Gorman, o anfitrião, reproduziu um
monólogo do humorista George Carlin, chamado “Filthy words”. Este excerto fazia parte do
conhecido álbum Occupation: Foole, editado em Março desse mesmo ano, e consistia numa
extensão de outro segmento célebre, ainda que polémico, chamado “Seven words
you can never say on television”, inserido no álbum Class
Clown, de 1972. Qualquer
um destes textos discorria, da maneira mais hilariante possível, sobre palavras
proibidas, e logo apetecíveis, em diferentes contextos.
Capa do álbum Occupation: Foole, 1973, Atlantic
Records.
Um indivíduo que
não ficará para a história, de seu nome John H. Douglas, ouviu a transmissão de
“Filthy words” no seu carro, enquanto regressava de uma visita guiada à
magnífica Universidade de Yale, onde planeava vir a matricular o seu filho de
quinze anos. Apesar de o locutor ter prevenido a audiência acerca do conteúdo
que se seguiria, sugerindo que os ouvintes mais susceptíveis mudassem de
estação momentaneamente, Douglas decidiu ouvir a routine de Carlin até ao fim, mesmo tendo o filho adolescente – e
logo presumivelmente irritante – ao seu lado. Douglas pode até ter ficado
arredado dos compêndios da história americana, mas ninguém se atreverá a negar-lhe
o papel de vilão nesta historieta com implicações constitucionais.
John H. Douglas era
literalmente um moralista profissional que ganhava a vida a escrutinar a
programação da CBS, um dos quatro portentosos canais da televisão norte-americana,
aferindo o que deveria (ou não) ser transmitido. Como se isso não bastasse,
acumulava essa função com a de membro da direcção nacional de um grupo de
pressão conceptualmente puritano, à época
intitulado Morality
in Media, que zelava pelo supremo interesse das crianças (seja lá o que
isso for). Entre muitas outras coisas, Douglas e os seus correligionários não
aprovavam certas palavras. E a julgar pelo que delas diziam, não seria de
espantar que ambicionassem a sua obliteração – completa e total – da língua
inglesa.
Décadas mais tarde
John H. Douglas viria a admitir que, durante os refractários anos 1970, sintonizava constantemente a WBAI com o
propósito de ouvir algo ofensivo, procurando activamente um pretexto para
denunciar a estação e, subsequentemente, proibir a transmissão de conteúdos que
o incomodavam. Há gostos para tudo! No que respeita a passatempos
entusiasmantes há quem prefira a filatelia, ou o jogo da malha, ou até mesmo a
pesca à linha. Nas horas vagas John H. entretinha-se a ver e ouvir coisas que o
enfureciam. Isto de ser um paladino da decência, um garante da moralidade e,
presumivelmente, um arauto do gosto, parece um tanto ou quanto extenuante. Mais
uma vez se prova que a vilanagem dá trabalho. Ele há vilões profissionais –
cruéis, metódicos e implacáveis – e depois há vilões amadores.
Douglas, como
censor exímio que era, soube escolher a sua vítima e esperar pela oportunidade
certa para atacar. Nos anos 1970 a WBAI tinha uma grande adesão junto do
público jovem e progressista da cidade de Nova Iorque, sendo bastante conotada
com a agenda do movimento contracultura. Ainda hoje é uma das maiores estações da rede Pacifica, que agrega mais de 180 rádios não-comerciais, apoiadas pelos ouvintes, em
todo o território dos EUA. Há muito que a WBAI suscitava a oposição dos
estratos mais tradicionalistas da sociedade americana, nomeadamente por
defender publicamente a retirada das tropas americanas do Vietname e a concessão
de direitos civis aos afroamericanos, entre outras modernices sem-vergonha.
Chocado com as
palavras enunciadas por um humorista num álbum de stand-up John H. Douglas resolveu denunciar aquela estação à Federal
Communications Commission, a entidade reguladora responsável pelo
licenciamento e fiscalização das estações de rádio e dos canais de televisão norte-americanos.
A FCC optou por repreender a Pacifica Foundation, detentora da WBAI, deixando-lhe
um cadastro que poderia vir a dificultar a renovação da sua licença. Talvez por
isso, esta organização sem fins lucrativos decidiu contestar a reprimenda e
recorrer aos tribunais.
O argumento da Pacifica
era simples. O texto de Carlin estava protegido constitucionalmente por possuir
valor argumentativo e teor satírico. Naquele segmento Carlin não dizia
palavrões só por dizer, ao jeito de uma criança arisca, ou da maioria dos
comediantes portugueses. Fazia-o com o intuito de denunciar a hipocrisia
reinante na sociedade americana. Em sua defesa a Pacifica Foundation provou que
a estação subsidiária solicitara aos ouvintes mais sensíveis que mudassem de
canal durante 15 minutos e comparou Carlin a Mark Twain e Mort Sahl, enquanto aclamado
crítico social. Por seu turno, a FCC argumentou que havia uma probabilidade
razoável daquele programa ter sido ouvido por menores solitários, tendo em
conta o horário, alegando ainda que a linguagem indecente embrutecia as
crianças.
Actualmente sabe-se que a
controvérsia foi um tanto manufacturada: 1- a estação encarnou o papel de
mártir, angariando novos ouvintes enquanto consolidava a sua posição de
porta-voz da esquerda nova-iorquina; 2- o grupo de pressão denunciante tentou
fazer daquela estação um exemplo para potenciais prevaricadores, censurando-a; 3-
e a FCC fez o que as agências governamentais normalmente fazem, como que por
defeito de fabrico: aproveitou aquela oportunidade para ganhar poder, neste
caso, poderes censórios. Prova disso é o facto de a FCC só ter emitido a sua
decisão (quanto à emissão da WBAI) em Fevereiro de 1975, precisamente no mês em
que o último membro apontado pelo Presidente Johnson (do Partido Democrata)
saiu do cargo, apesar de ter recebido a queixa de Douglas em Dezembro de 1973. Aparentemente,
para a FCC, o combate à imoralidade pode aguardar até que se reúna o quórum
necessário, qual vulgar reunião de condomínio.
Voltando ao FCC vs. Pacifica Foundation, o Supremo
Tribunal dos Estados Unidos da América decidiu, por uma escassa margem de cinco
contra quatro, que o monólogo de George Carlin era indecente (e não obsceno).
Dito assim, a decisão parece ter-se resumido a uma disputa lexical menor, capaz
de interessar apenas aos mais prendados linguistas da República. Acontece que
nos EUA a liberdade de expressão é levada a sério, pelo que o caso em
julgamento acabou por redundar numa landmark
court decision. Este termo, pomposo decerto, aplica-se em sistemas
jurídicos de common law, como o norte-americano,
sempre que um tribunal institui um novo princípio legal ou altera
significativamente a interpretação de uma lei, estabelecendo um precedente
vinculativo para os casos subsequentes. O tribunal pode fazê-lo refinando um
princípio jurídico já existente ou criando um teste, isto é, um critério que
passará a ser seguido em processos de índole semelhante.
Segundo o juiz Stevens, que redigiu a opinião da maioria
do Supremo Tribunal, a FCC tinha o direito de avaliar se o conteúdo do excerto transmitido era ou não
indecente e, consequentemente, o dever de proteger o bem-estar das crianças,
assim como a paz de espírito de eventuais ouvintes involuntários, em certos
horários. Stevens havia sido nomeado recentemente pelo Presidente Ford –
sucessor do encantador e nada persecutório Nixon – e era considerado uma
espécie de voto de desempate entre os
juízes conservadores e progressistas. Já o Juiz Brennan estava de acordo com a
geração mais jovem de ouvintes da WBAI, tendo defendido que a decisão
maioritária do tribunal violava a primeira emenda, ao impedir a liberdade de
expressão do comediante e da rádio, com o objectivo de forçar um grupo
minoritário a “pensar, agir, e falar” como os membros da cultura dominante,
tradicionalista. A argumentação de ambos os quadrantes era
interessante, mas nunca teria assumido contornos históricos se o Supremo
Tribunal dos Estados Unidos da América não tivesse decidido que o monólogo de
George Carlin era indecente e não obsceno. A primeira
emenda da Constituição Americana protege a liberdade de expressão, entre
muitas outras libertinagens, de qualquer indivíduo ou instituição. Ainda assim,
como quase tudo na vida, alberga algumas excepções. Certos tipos de discurso –
como o incitamento à violência e a obscenidade – não são constitucionalmente
protegidos.
Naquela decisão o Supremo
Tribunal considerou que “Filthy words” passava o famoso teste de obscenidade.
Admitamos, a bem da decência, que a expressão soa muito melhor na língua nativa.
Este teste fora estabelecido a propósito do caso Miller v. California, decidido a 21 de Junho de 1973, para determinar
se um determinado conteúdo era ou não obsceno. A partir dessa data, qualquer
conteúdo, seja um filme ou programa televisivo, é considerado obsceno, e logo
passível de ser regulado pelo Estado, se cumprir três critérios: 1- for
considerado lascivo por uma pessoa mediana, tomando em consideração os padrões
da comunidade em que se insere; 2- mostrar ou descrever, de forma ofensiva,
actos sexuais ou funções excretórias; 3- carecer de “valor literário,
artístico, político, ou científico”.
Apesar de “Filthy words”
ter passado no teste de obscenidade, também conhecido por teste de
Miller, o Supremo Tribunal acabou por decretar que aquele monólogo era indecente
e inapropriado para os ouvidos e para as mentes de menores, alegando que o
Estado tem a obrigação de proteger as crianças – “cujo vocabulário pode ser
aumentado num instante” – de conteúdos indecentes, assim como a incumbência de
impedir que adultos incautos sejam expostos a “discurso não consentido”. A
descrição da primeira obrigação sempre me pareceu demasiado vívida. Algo me diz
que o juiz Stevens deve ter passado uma bela de uma humilhação às mãos da sua
prole pouco tempo antes de redigir a opinião maioritária do Tribunal. Se
tivesse de apostar diria que um dos seus filhos terá soltado um valente palavrão
precisamente no único jantar de família em que aquela-tia-chique-que-toda-a-gente-tem
se dignou a aparecer, para humilhação dos pais, entretanto condenados a fazer
terapia para o resto das suas vidas.
No seu Ensaio sobre o
entendimento humano John Locke já havia alertado para os perigos de expor
uma criança a impropérios. De acordo com a teoria epistemológica do empirismo
do palavrão, partilhada pela maioria dos juízes do caso em discussão, todo
o ser humano é uma verdadeira tabula rasa. Por mais inocente que uma
criança seja, não há como impedi-la de replicar, no momento mais inconveniente
possível, qualquer grosseria que tenha ouvido recentemente. O que pode ser
especialmente aborrecido se os progenitores estiverem a contar com a herança da
tia queque que a criança, malcriadamente, ofendeu.
A rádio e a televisão
foram especialmente visadas no FCC vs. Pacifica Foundation por
“infiltrarem a privacidade da casa” inopinadamente e por serem
acessíveis a crianças sem a supervisão de um adulto. De acordo com o Supremo
Tribunal dos Estados Unidos da América estas preocupações eram suficientes para
legitimar a autoridade da FCC sobre os grandes meios de comunicação dos anos
1970. Consequentemente, o Tribunal concedeu três novos poderes àquela agência
governamental: 1- o de multar as estações de rádio e os canais de televisão que
passassem segmentos indecentes; 2- o de proibir certos conteúdos quando
houvesse uma grande probabilidade de crianças estarem entre a audiência; 3- e
ainda o de determinar o que constituía conteúdo indecente.
A atribuição deste último
poder parece particularmente problemática. Ao fazê-lo o Supremo Tribunal não só
conferiu poderes censórios a uma agência governamental, criando mais uma
excepção à aplicação da primeira emenda da Constituição Americana, como garantiu
ao regulador o poder de interpretar a lei sem lhe fornecer um critério claro e
objectivo a aplicar, ou seja, fomentando a discricionariedade. Esta decisão acarretou
duas ironias perversas para o campo dos indefectíveis da liberdade de
expressão. Por um lado, concedeu mais poderes a uma agência governamental não
eleita, ainda que directamente dependente do Presidente dos EUA, para censurar
e admoestar o discurso – e logo o pensamento – alheio. Por outro, acabaria por
provar que o raciocínio de Carlin estava certo, ainda que a argumentação da
estação que o divulgara não tenha sido sancionada.
Ora vejamos, Filthy words começava
com a seguinte constatação: toda a gente sabe que há palavras que não se podem dizer
na rádio e na televisão, mas ninguém tem o decoro de nos fornecer a lista das
palavras proibidas – chamemos-lhe o índex do palavrão – antes de cairmos
na asneira de as dizermos. A descoberta é feita por tentativa e erro,
acarretando, necessariamente, uma punição. E é precisamente neste ponto que o
comediante começa a destrinçar as palavras que não têm um significado redentor
que autorize a sua verbalização em determinados contextos (e nunca noutros).
Através de um divertido raciocínio de exclusão Carlin chega, finalmente, a sete
palavras terminantemente banidas e articula-as da forma mais eufónica possível,
como que tentando expurgá-las de toda a imoralidade que, alegadamente,
carregam.
O exercício cómico de
Carlin é brilhante. Contudo, deixa implícita uma dúvida de carácter
constitucional que mantém a sua pertinência até aos nossos dias: se a rádio e a
televisão são produzidas e transmitidas no território dos EUA, sendo em grande
medida produzidas por e para americanos, a Constituição não deveria proteger a
liberdade dos intervenientes em vez de sujeitá-las ao gosto – e ao capricho –
do regulador? Como Carlin bem demonstrou, a rádio e a televisão parecem ser os
únicos sítios nos Estados Unidos da América em que um cidadão emancipado corre
o risco de ser censurado, impedido de trabalhar, e até preso, por proferir um
palavrão.
Fotografia tirada
durante uma actuação de “Seven words you can never say on television”, 1972. https://georgecarlin.com/
Ainda hoje se
discute se a FCC tem a capacidade e os meios suficientes para proteger menores
de material obsceno ou ofensivo. Nos
dias vorazes da internet as crianças têm acesso, fácil e gratuito, a uma
miríade de conteúdos que antigamente nunca teriam sido disponibilizados, quer
pela rádio, quer pela televisão. Porém, o cerne da decisão do Supremo Tribunal
mantém-se. Deve uma agência governamental ter o poder de censurar os cidadãos? Segundo
a primeira emenda da Constituição Americana, o Congresso não pode fazê-lo,
salvo raríssimas excepções. Fará então sentido que um órgão nomeado pelo
Executivo tenha esse direito? Será que impedir os cidadãos de utilizarem certas
palavras em detrimento de outras não é uma forma de controlar o discurso e logo
de restringir a liberdade alheia?
Apesar de Carlin não
ter estado directamente envolvido no FCC vs. Pacifica Foundation,
uma vez que a disputa opunha a rede à entidade reguladora, foi a sua
genialidade que espoletou a queixa e toda a controvérsia que se seguiria. Carlin
limitou-se a fazer o que fazem os grandes comediantes. Olhou para um
problema de uma perspectiva diferente da maioria e, com aparente naturalidade,
fez rir milhares de pessoas. Expôs a nudez do rei, pôs sal na ferida, e depois
foi posto no devido lugar pelos poderes públicos. Como bem explicou Ricardo Araújo Pereira, a comédia tem o poder que tem. E é poucochinho.
Independentemente dos
esforços da Pacifica Foundation, da ousadia do locutor da WBAI, e do talento de
George Carlin, o discurso continua a ser censurado em solo americano – 40 anos
depois. Dir-me-ão que a democracia americana tem compactuado com coisas piores,
como a legalização da tortura, a manutenção da pena de morte, e a venda
indiscriminada de armadas de fogo. Dir-vos-ei que a enumeração de males mais
graves não atenua o problema. Ainda assim, aqueles trechos viriam a transformar
George Carlin numa lenda da comédia americana. Como se não bastasse ser o
primeiro humorista a suscitar um caso julgado pelo Supremo
Tribunal, passou a ser universalmente reconhecido como um dos dois maiores stand-up comedians de sempre. Não há
ranking que se preze, dos muitos que circulam na internet, que não coloque
Carlin no primeiro ou no segundo lugar, alternando com o seu amigo – e excepcional
contador de histórias – Richard Pryor.
George Carlin já era bastante conhecido antes
de “Seven words you can never say on
television” e “Filthy words”. Durante os anos
1960 participara em vários talk shows,
tendo inclusivamente apresentado o famosíssimo The Tonight Show antes do longo reinado de Johnny Carson e, mais tarde, como seu substituto ocasional. Em 1972,
para além do já mencionado Class Clown,
lançou FM & AM, que venceu o Grammy para melhor álbum de comédia do ano.
O lado AM consistia numa compilação do melhor que Carlin produzira como
comediante mainstream, enquanto o
lado FM continha o novo material. O título funcionava
como uma metáfora, já que naquela altura as rádios FM passavam essencialmente
música underground, evitando
importunar os seus ouvintes com publicidade, ao contrário das rádios AM, essas
caretas vendidas.
Fotografia
tirada em 1967 durante a gravação do programa Away we go, da CBS. National Public Radio.
No início da sua carreira Carlin evitava usar linguagem
imprópria e produzir material
ofensivo, ou passível de ser considerado ofensivo, para poder trabalhar em
clubes nocturnos. O facto de redigir textos limpos,
isto é, expurgados de palavrões e das reflexões contestatárias que viriam a
celebrizá-lo, permitiu-lhe marcar presença em programas televisivos de
variedades como The Ed Sullivan Show,
granjeando-lhe alguma fama. À medida que foi deixando de precisar das avenças
que recebia dos clubes para os quais trabalhava, Carlin foi incorporando
conteúdo mais subversivo, e logo mais incómodo para os poderosos, a quem nós, os descamisados,
costumamos referir-nos como “eles”.
A mudança de
persona cómica, implícita naquele álbum de transição, chegou a suscitar o rumor
segundo o qual Carlin teria enlouquecido por abusar de ácidos e outras
substâncias psicotrópicas. E o boato tinha algum fundo de verdade. Carlin
deixara crescer o cabelo, passara a usar roupas coloridas vagamente andrajosas e
começara a alardear o consumo de drogas variadas. Mas a transformação obedecera
a uma escolha plenamente consciente e não à loucura. Carlin decidira livrar-se
da personagem que criara – simpática, polida, e educada – para se apresentar em
palco fiel a si próprio: enérgico, acutilante, e mordaz.
O desplante de
criar comédia arrojada, ainda que especialmente divertida, não caiu bem em
certos meios. Carlin passou a ser impedido de actuar em algumas salas e chegou
a ser preso por repetir o trecho analisado pelo Supremo Tribunal. A cadeia não
lhe era particularmente estranha. Fora detido pela primeira vez quando ainda
pertencia aos quadros da Força Aérea Americana, por troçar de um oficial, e
novamente no longínquo ano de 1962, com Lenny Bruce, por ter-se recusado a identificar-se perante a polícia
depois daquele lendário comediante, seu percursor, ter dito uma ou outra
alarvidade durante um espectáculo.
Capa do Bugle-American,
um pequeno jornal de Milwaukee, Wisconsin, que fez um artigo sobre a prisão de
Carlin, naquela cidade, em 1972.
Cansado de entreter homens brancos abastados com piadas
sensaboronas, cuidadosamente redigidas para não levantar problemas, Carlin foi
à procura do seu público. Já na casa
dos trinta, aproximou-se do movimento
contracultura e passou a actuar para os estudantes das universidades mais
progressistas, tal como nos cafés circundantes. Carlin sabia bem onde estava a
meter-se. A primeira grande demonstração de desobediência civil da juventude
americana já tinha ocorrido, durante o ano lectivo de 1964-65, na Universidade
da Califórnia, em Berkeley. O chamado Free Speech
Movement, informalmente liderado por Mario Savio, exigia,
entre outras coisas, liberdade de expressão para os alunos e liberdade
académica para os docentes, que à época ainda eram vítimas de saneamentos
políticos.
Os universitários compunham, definitivamente, a maioria
do público que Carlin escolhera: gente jovem, divertida, e provida de uma mente
aberta. Esta última característica era essencial para um comediante
revolucionário como ele. O sonho de qualquer humorista é deixar milhares de
pessoas banhadas em lágrimas de alegria, enquanto sofrem espasmos abdominais
involuntários, de tanto rir. Porém, poucos são os comediantes capazes de
fazê-lo produzindo piadas inócuas sobre a cortina do chuveiro ou sobre as malas
extraviadas no aeroporto. Para que o público atinja semelhante êxtase é essencial
transportá-lo para lugares – muitas vezes incómodos – onde nunca ousou chegar.
Daí que Carlin necessitasse daquele público liberal,
no sentido que os americanos atribuem à palavra. Se o público não estivesse
disposto a ser confrontado com os seus próprios preconceitos e exposto às suas
próprias fragilidades, nunca conseguiria rir das coisas sobre as quais ele se
propunha falar. No fundo, nunca poderia rir-se livremente.
Longe vão os tempos em que os estudantes universitários
norte-americanos promoviam manifestações para exigirem o respeito pela primeira
emenda. Hoje as associações estudantis preferem fazer uso das redes sociais
para censurar opiniões alheias e apelar ao despedimento – para não dizer
defenestração – de todos aqueles que ousem desafiar a opinião da vanguarda progressista. Se Carlin fosse
vivo teria, certamente, coisas a dizer sobre essas mentes brilhantes, tão proselitistas
quanto persecutórias. Felizmente o homem era um visionário, que se dedicava a
denunciar toda e qualquer inconsistência lógica ou hipocrisia que se
interpusesse no seu caminho, tendo-nos deixado um riquíssimo acervo de
pilhérias sobre eufemismos
e o discurso politicamente correcto.
Nos dias que correm, a América progressista e a América
tradicionalista estão de costas voltadas. E apesar da tendência natural que
todos partilhamos para achar que vivemos tempos irrepetíveis, a verdade é que as
duas Américas já passaram por períodos – no mínimo – igualmente tensos. Curiosamente,
se atentarmos no ensaio
n.º 10 d’ O Federalista, escrito
por James Madison, apercebemo-nos que os pais
fundadores da democracia americana já estavam cientes desta possibilidade,
tendo por isso acautelado os direitos das minorias, com o intuito de evitar a
opressão democrática da maioria. Preocupação
esta que viria a ser especialmente desenvolvida, umas décadas mais tarde, por
John Stuart Mill no seu On Liberty.
Quando uma das Américas tenta controlar a outra,
nomeadamente aquilo que os membros da outra facção podem ou não dizer, a tensão
habitual agudiza-se e torna-se amarga. Tal como hoje a América liberal revela maneirismos profundamente
iliberais, na década de 1970 a América conservadora fez uso dos meios –
políticos e jurídicos – à sua disposição para silenciar opiniões discordantes,
tendo em vista a manutenção da moral pública. Já Carlin, como iconoclasta que
era, utilizou o humor para troçar da intolerância e da tacanhez da América
reaccionária, maioritária. Espicaçada pelo FCC
vs. Pacifica Foundation a sua arte evoluiu e, no processo, eternizou-se. A
comédia ganhou. A cultura ganhou. Mas a democracia perdeu.
A ousadia de Carlin podia ter-lhe saído cara. Antes da
massificação da internet a carreira
de um stand-up comic dependia, em
larga medida, da sua exposição televisiva. Estando vedado de alguns programas e
recusando-se a participar noutros, Carlin podia ter sido progressivamente
esquecido. Em boa hora surgiu um canal de televisão por cabo chamado HBO, que viria a presentear-nos
com algumas das maiores séries dramáticas da história da televisão: The Sopranos, The Wire, e Deadwood. O tal canal parecia feito à medida de
George Carlin. Para além de apostar na transmissão de espectáculos de comédia, não
controlava minimamente o que neles era dito. A liberdade criativa era total. E
era disso que Carlin precisava.
It’s Bad for Ya foi o seu último
espectáculo, transmitido pela HBO, em 2008.
Para fazer face ao sucesso que a HBO lhe trouxera, George
Carlin criou um novo método de fazer
comédia. A premissa era bastante simples: ninguém quer ver o mesmo espectáculo
duas vezes. Carlin encarava a televisão como o veículo de massas por
excelência. A partir do momento em que um dos seus espectáculos era transmitido
na HBO nunca mais seria visto ao vivo. Nunca mais, mesmo. Era como se a
televisão o conspurcasse. Se quiséssemos ver Carlin teríamos de esperar pelo
próximo espectáculo. E a verdade é que enquanto Carlin foi vivo houve sempre
mais um. O seu primeiro programa especial
foi transmitido em 1977 e o último em 2008, poucos meses antes da sua morte. Ao
longo de três décadas produziu 15 programas. A todos eles devemos somar cinco
livros e respectivos audiolivros, 20 álbuns, uma série de televisão, e vários
programas de rádio. São horas e horas de comédia. Mais do que isso: são horas e
horas de stand-up.
É praticamente impossível encontrar um humorista
consagrado mais profícuo do que George Carlin. Normalmente os comediantes preferem
jogar pelo seguro, mantendo o mesmo espectáculo, com alterações pontuais,
durante anos a fio. À semelhança das estrelas de rock, vão criando novos singles, que lhes permitam ir vendendo
bilhetes, enquanto vivem dos grandes
êxitos. Carlin não estava interessado nisso. A repetição aborrecia-o. Mas o
risco era tremendo. O método Carlin –
chamemos-lhe assim – implicava começar do zero a cada nova digressão. Implicava
deitar fora todas as piadas que resultaram. No fundo, implicava trocar o
sucesso garantido pela incerteza. Todavia, quando o talento, a ética de
trabalho, e a confiança, abundam, o risco compensa. Não por acaso, este método tem sido posto em prática pelos
comediantes mais ousados das últimas duas décadas: Chris Rock, Dave Chappelle e Louis C.K.
Enquanto artista George Carlin sempre privilegiou o processo
em detrimento do resultado. Todos os dias se dirigia ao seu escritório, qual escriturário,
para se sentar à secretária a escrever piadas. Divertia-se mais a produzir
material novo do que a encher salas para reproduzir piadas antigas. Havia algo
que o impelia a criar, a fazer coisas diferentes. Se seguíssemos o argumento
lockeano diríamos que Carlin era particularmente perpassado pela inquietude, um sentimento de
insatisfação permanente que nos propele a melhorar a nossa condição. George,
modesto como era, tinha uma explicação bem mais sóbria. Para ele tudo se
resumia a um desejo, quase infantil, de ser aceite pelos outros: “Ain’t I cute?
Ain’t I clever?”.
Foi nas esquinas e nos becos de Morningside Heights – bairro a que gostava de
chamar White Harlem pelo facto de ser
contíguo ao (Black) Harlem e maioritariamente habitado por irlandeses – que o pequeno George descobriu que conseguia fazer rir
os outros com relativa facilidade. As imitações e as graçolas que encetava
conferiam-lhe o respeito e a admiração de quem o ouvia, fossem os colegas de
trabalho da mãe, ou as freiras da Corpus Christi School, a escola experimental que frequentou até ao 9.º
ano. O desejo de ser amado tê-lo-á conduzido ao humor. E, curiosamente,
o seu amor pelo ofício ter-lhe-á assegurado a imortalidade.
Mais de quatro
décadas depois da gravação de “Seven words you can never say on television”, a
eloquência e o arrojo de George Carlin continuam a espantar-nos. Tal como
continua a espantar-nos que palavras inócuas, ainda que pouco educadas, possam ser
censuradas numa democracia liberal. A esse propósito, dificilmente
encontraremos um momento mais ilustrativo do que a atribuição póstuma do Mark Twain
Prize for American Humor a Carlin, tão-somente o galardão mais prestigiante
que um humorista pode receber nos Estados Unidos. Para choque dos admiradores
de Carlin, a estação encarregue da transmissão televisiva da cerimónia viu-se
obrigada a cortar o
segmento mais célebre do homenageado, para evitar multas pesadas e outras
penalizações da FCC, dada a linguagem utilizada.
Foi assim em 2008,
30 anos volvidos sobre a decisão do Supremo Tribunal, e assim seria em 2018, se
a homenagem se repetisse. Felizmente hoje já não se prendem comediantes por
soltarem impropérios em palco, como aconteceu a Carlin e Bruce nos anos 1970.
Porém, qualquer discurso que contenha certas palavras, por mais satírico que
seja, será forçosamente censurado se passar em canal aberto num horário
alargado. E tudo isto para evitar que alguns cidadãos sejam importunados por
opiniões diferentes das suas? Ao contrário do que muitos parecem pensar,
ninguém tem o direito de coarctar a liberdade de expressão para evitar maçar-se
com as posições alheias. Aliás, a primeira emenda da Constituição Americana foi
aprovada, nos idos de Dezembro de 1791, precisamente para garantir que os
cidadãos norte-americanos podem expressar-se livremente, doa a quem doer, salvo
raríssimas excepções.
Esta necessidade de
condicionar a linguagem começa a assumir proporções incontroláveis. A era em
que vivemos, a era da literalidade e do politicamente correcto, não se coaduna
com a ironia ou com deslizes. Uma frase infeliz, ou até mal-interpretada, pode
desencadear um sem-número de sevícias sem direito a absolvição. O grande irmão tudo vê, tudo regista, e
tudo expõe. É inescapável. Apesar dos métodos high-tech esta não é uma forma inovadora de censura: começa por
condicionar a escolha de palavras, substituindo as mais ultrapassas por outras
mais inclusivas, até desembocar na
autocensura, toldando-nos o próprio raciocínio. A este ritmo não tardaremos a
alcançar o estádio último do desenvolvimento humano, um lugar idílico onde
todos utilizaremos um linguajar polido e certinho, que impossibilite desavenças
e dissensões.
Quanto mais os
apóstolos do politicamente correcto depurarem a linguagem, mais esta se
tornará insipida e estéril. É certo que não ofenderá ninguém, mas também não
aproveitará a vivalma. Já George Carlin, tendo sido um dos primeiros críticos
dessa novilíngua contemporânea, destacou-se
pela sua oratória acutilante e elaborada. O seu desígnio era fazer rir os
outros da forma mais inovadora possível. E alcançou-o. Carlin não era apenas um
dos mais espantosos e prolíficos comediantes de sempre. Era uma ode!
João Tiago Gaspar
12 de Setembro de 2018
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