quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

As cartas de Milada Horáková (1)

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Apesar de se ter convertido num símbolo nacional da República Checa, a figura de Milada Horáková (1901-1950) é ainda pouco conhecida no Ocidente e, segundo creio, praticamente ignorada em Portugal.
A excelente série televisiva da BBC O Mundo Perdido do Comunismo, transmitida entre nós pela SIC-Notícias em 2009, faz-lhe uma extensa referência, entrevistando inclusivamente a sua filha Jana, sendo de registar que aquela série foi acompanhada da publicação de um livro com o mesmo nome, da autoria de Peter Molly, editado também em 2009 pela Bertrand. Ainda assim, as cartas que Milada Horáková escreveu na prisão nunca foram, ao que sei, traduzidas e publicadas entre nós. A presente tradução dessas cartas foi realizada a partir de uma versão norte-americana, constante da obra de Wilma A. Iggers, Women of Prague: Ethnic Diversity and Social Change from the Eighteenth Century to the Present. Providence: Berghahn Books, 1995, pp. 302ss, que é frequentemente citada como fiável no mundo académico, nomeadamente num curso de T. Mills Kelly da Universidade George Mason, aquiou no desenvolvido estudo de Adam Watkins, The Show Trial of JUDr. Milada Horáková; the catalyst foi social revolution in Communist Czechoslovaquia, 1950 (2010), disponível  aqui Trata-se do primeiro passo de um projecto que, num momento posterior, basear-se-á, naturalmente, no original checo. Na revisão do texto traduzido tive o apoio de Luísa Costa Gomes e António J. Ramalho, a quem aqui agradeço, estendendo este agradecimento a Joana Vasconcelos, pela preciosa ajuda que me deu. Todos os defeitos da tradução das cartas de Milada Horáková são obviamente da minha inteira responsabilidade. 
     
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Milada Králova (Horáková, pelo casamento) nasceu em 25 de Dezembro de 1901, em Náměsti Jiřího z Poděbrad (Praga), no seio de uma família de classe média instruída. O seu pai, Čeněk Král, era gerente de uma fábrica de lápis e um activo membro do Partido do Povo Checo, de Tomáš Garrigue Masaryk (1850-1937), que defendia a ruptura com a monarquia austro-húngara. Milada cedo viu a tragédia emergir na sua vida. Os seus dois irmãos – Marta, mais velha, e Jiři, mais novo – morreram ambos em 1914, vítimas de escarlatina; pouco depois, em 1915, o casal teria outra filha, Věra. Contudo, a mãe morreria ainda antes do fim da Grande Guerra, o que obrigou Milada, enquanto filha mais velha, a assumir um papel de maior responsabilidade no apoio à sua família.
Na trajectória biográfica de Milada Horáková, a tragédia e a militância cívica e política sempre caminharam a par. Durante a guerra de 1914-1918, ainda a mãe era viva, Milada já tinha participado em diversas acções pacifistas, como uma manifestação que culminou no gesto provocatório de lançar rosas sobre os muros de um aquartelamento. Em 1 de Maio de 1918, integrou outra manifestação pacifista, o que lhe valeu ser expulsa da escola secundária que frequentava e onde se destacava como aluna. Somente depois do fim da guerra regressaria à escola, noutro estabelecimento de ensino, concluindo os estudos secundários em 1921. Ao mesmo tempo, envolveu-se em acções de apoio aos seus compatriotas afectados pela Grande Guerra e ingressou na Cruz Vermelha.
Inicia então o curso de Direito na prestigiada Universidade Príncipe Carlos. Segundo parece, Milada pretendia estudar Medicina, mas o pai, revoltado contra os médicos após a morte dos outros dois filhos, convenceu-a de que também poderia fazer trabalho social de apoio aos mais desfavorecidos através do Direito. No penúltimo ano da licenciatura, conheceria o estudante de engenharia agrícola Bohuslav Horák, com quem casaria em 1927, um ano depois de se ter formado. A família Horák era evangélica e, antes do casamento, Milada e a família converteram-se à Igreja da Morávia, facto pouco habitual naquele tempo, que pode ser visto como uma tentativa de não criar atritos no relacionamento entre ambas as famílias. Nesse mesmo ano de 1927 começou a trabalhar na Autoridade Central dos Serviços Sociais de Praga, um organismo público que, sob a direcção de Petr Zenkl (1884-1975), uma figura proeminente da vida política checa, estava vocacionado para apoiar as mulheres e as crianças que careciam de habitação e de cuidados de saúde. Pouco depois, envolveu-se activamente na luta pelos direitos das mulheres, tornando-se uma das figuras mais destacadas do Conselho Nacional das Mulheres (Ženský Klub Český) de Praga. Integrava igualmente a Associação de Mulheres Juristas de Praga, cuja acção se destinava a fornecer protecção e aconselhamento jurídico aos membros do sexo feminino.
Nesta fase, o intenso activismo de Milada Horáková desenvolvia-se em dois planos: por um lado, na transição da monarquia para a democracia na Checoslováquia; por outro, na formação de uma consciência cívica colectiva em torno dos direitos fundamentais que o Estado checoslovaco se comprometia a salvaguardar. Esta acção foi desenvolvida em estreita articulação com a senadora feminista Františka Plamínková (1875-1942), que Milada conhece na década de vinte e com quem trabalha de perto no Conselho Nacional das Mulheres. Enquanto membro destacado desse Conselho, Horáková participa em diversos encontros para defesa da causa das mulheres, designadamente na Conferência de Haia de 1930, sobre a codificação do Direito Internacional, e adquire projecção no estrangeiro, em especial nos países ocidentais. No plano interno, teve um papel determinante na génese da legislação destinada a concretizar o princípio da igualdade entre homens e mulheres inscrito na Constituição checoslovaca de 1920, devendo-se-lhe, por exemplo, a autoria material das leis que regulavam o estatuto das mulheres solteiras ou dos filhos nascidos fora do casamento, bem como os direitos laborais das operárias e das funcionárias do Estado.
Na década de trinta ocorre a passagem da militância cívica para o envolvimento na vida política. Em 1930, inscreve-se no Partido Nacional Socialista Checoslovaco (Česka strana národě sociálni), organização fundada em 1897 – e presidida por Edvard Beneš, desde 1926 –, que, apesar do nome, nada tinha em comum com o nacional-socialismo hitleriano, antes pugnando, numa linha socialista ou social-democrata, pelos direitos económicos e sociais dos grupos marginalizados e dos trabalhadores de baixos rendimentos sub-representados no Parlamento. Integra o conselho municipal da cidade de Praga, onde se dedica em particular às questões da habitação social, do emprego e do apoio às donas de casa, às mulheres solteiras ou divorciadas, sendo ainda uma acérrima adversária do trabalho infantil e da legalização da prostituição. Segundo parece, o seu marido, Bohuslav Horák, jornalista de profissão, não questionou a projecção pública que a mulher assumia de forma crescente e as tarefas absorventes que levava a cabo enquanto militante política e advogada. Em 1933, o casal tem a sua primeira e única filha, Jana. Na carta que lhe dirige, escrita na prisão, é patente o arrependimento de Milada por não ter acompanhado mais de perto o crescimento da sua filha; mas, curiosamente, é também notória a forma assertiva que usa para aconselhar Jana sobre o seu comportamento e o seu futuro. Numa entrevista radiofónica concedida em Outubro de 2011, Jana referiu que teve uma «infância muito feliz» e contrariou a ideia de uma mãe ausente: «se os seus afazeres o permitissem, [a mãe] estava sempre presente. Lembro-me em especial dos fins-de-semana, em que a ama estava de folga, em que havia quase uma regra segundo a qual o pai dela e os meus avôs paternos iam almoçar a nossa casa. Mais tarde, a minha tia – a irmã mais nova da minha mãe – aparecia também lá por casa e, depois do almoço, passeávamos por Praga, comprando gelados, guloseimas, ou coisas do género. Ela tentou sempre estar presente. Como é óbvio, houve ocasiões em que não estava fisicamente presente, mas mentalmente esteve ao meu lado 100%. A sua vida era, como diríamos hoje, muito “stressante”!».
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Bohuslav, Jana, Milada
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Com a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha e com a anexação da Checoslováquia em 1938, na sequência dos acordos de Munique, formando-se o Protectorado da Boémia e Morávia (Rechsprotektorat Bömen und Mähren), Milada reorientou as suas preocupações cívicas para causas humanitárias. Em articulação com o Conselho Nacional das Mulheres e com Františka Plamínková, encontrará lugares de refúgio para os perseguidos e suas famílias e conceberá rotas de fuga para aqueles que enfrentavam a deportação para os campos de concentração ou para os que subitamente viram as suas propriedades confiscadas, apoiando, nesse esforço, quer os cidadãos checos quer os alemães dos Sudetas. Funda nessa altura o Comité para Assistência aos Refugiados e passa a integrar a Resistência checa, sendo co-autora da Carta da Resistência Checa (em 1938, já havia participado na preparação do último grande acto de oposição ao nazismo, o 10º Congresso do movimento juvenil Sokol). Tendo resignado às funções que exercia na administração municipal de Praga, liga-se a um grupo que procurava lançar as bases da acção oposicionista do Centro Político (Politické ústředí) e, posteriormente, ao Comando Central da Resistência Interna (Ústředrni vedení odboje domácího). Mais tarde, fará parte do núcleo que esteve na base do Comité da Petição «Permanecemos Leais» (Petični výbor Věrni zůstaneme). Em 2 de Agosto de 1940, Milada e o marido serão presos pela Gestapo. Milada ficará detida 15 meses no Palácio Petschek, no centro de Praga, que servia de sede à Gestapo e onde será sujeita a duríssimos interrogatórios, a que resistiu sem denunciar nenhum dos seus companheiros da Resistência. Será levada para diversas cadeias, entre as quais a prisão de Pankrác, em Praga, enquanto aguardava julgamento. A sua filha, com cerca de dois anos, irá viver com os avós paternos até ao fim da guerra. Após dois anos de prisão em Pankrác, o casal será deportado para Terezín (em alemão, Theresienstadt). Na chamada «Pequena Fortaleza» (Malá Pevnost) do campo de Terezín, Milada passará a maior parte do tempo de encarceramento numa cela solitária (por sinal, a mesma onde esteve detido até à morte Gavrilo Princip, pelo homicídio em 1914 do arquiduque Fernando, em Sarajevo), sendo sujeita a espancamentos e torturada ao longo de 36 interrogatórios. Enquanto esteve presa, nunca falou com o marido, internado no mesmo campo. Ao que parece, foi nesse período que Horáková se aproximou mais da fé religiosa. Será levada a julgamento pela Gestapo, em 1944, e condenada à morte. Graças à sua formação jurídica, preparou a sua defesa e interpôs recurso, na esperança de que o fim próximo da guerra e os seus contactos internacionais a pudessem salvar. O recurso foi deferido e Milada permaneceu nas prisões de Leipzig e Dresden até conhecer a decisão final, que em Outubro de 1944 a condenou a oito anos de trabalhos forçados. Cumpriu pena em Aichbach, nos arredores de Munique, sendo libertada pelas tropas norte-americanas em 1945. Em 25 de Maio desse ano regressou a Praga, onde reencontrou a filha e a sua irmã, Věra, e, mais tarde, o seu marido. Fez a promessa que, a partir daí, se dedicaria por inteiro à família, mas os acontecimentos subsequentes afastá-la-ão desse propósito.
No imediato pós-guerra, a sua participação na Resistência conferiu-lhe grande capital político, o que, incentivada por Beneš, a fez tornar-se uma das principais líderes do Partido Nacional Socialista Checoslovaco, integrando o Parlamento provisório. Mantém, em simultâneo, a sua actividade cívica, presidindo ao Conselho Nacional das Mulheres (Františka Plamínková havia sido executada pelos alemães em 1942) e sendo uma das fundadoras da União dos Presos Políticos, das Vítimas e dos Sobreviventes do Nazismo (Svaz osvobozených politických vězňů), organização destinada a evocar a memória das vítimas da guerra e a defender a democracia e os direitos humanos. Nas eleições de 1946, em que o Partido Nacional conquista a segunda posição (com 24% dos votos, contra 40% obtidos pelos comunistas), alcançará um lugar no Parlamento e, nesse ano, será agraciada com duas medalhas pelo Presidente Beneš – a Ordem de Mérito e a Cruz Militar –, em reconhecimento pela sua acção na resistência ao nazismo. Em 1947, assume a vice-presidência da União dos Presos Políticos.
No entanto, cedo emergiram conflitos com o Partido Comunista, o KsČ (Komunistická strana Československa), tendo Milada Horáková tomado consciência, sobretudo através das suas inúmeras deslocações pelo país e em especial pelo seu círculo eleitoral (České Budějovice), que os «Tribunais do Povo» instituídos pelos comunistas para julgarem os antigos partidários do nazismo tomavam decisões politicamente orientadas e condenavam frequentemente os réus sem quaisquer provas ou garantias de defesa, apoiando-se, inclusivamente, em testemunhos falsos e documentos forjados. A vitória dos comunistas nas eleições de 1946, que levaria o Presidente Edvard Beneš (1884-1948) a nomear como Primeiro-Ministro Klement Gottwald (1896-1953), e o colapso do Governo no «Fevereiro Vitorioso» de 1948 ditariam o futuro do país – e o de Milada Horáková. Renuncia ao lugar de deputada logo em 10 de Março, o dia em que é encontrado morto, em circunstâncias misteriosas, o Ministro dos Negócios Estrangeiros e seu amigo e confidente, Jan Masaryk (1886-1948), filho do antigo Presidente Tomáš Masaryk e o único ministro não comunista do Governo de Klement Gottwald. Com o apoio da União Soviética, o Partido Comunista e o Executivo liderado por Gottwald, tendo como Vice-Primeiro-Ministro o padre católico Josef Plojhar, suspenso a divinis, começaram a dominar por completo a vida política checoslovaca. Nas eleições de 30 de Maio de 1948, apresentou-se a sufrágio uma única lista, a da Frente Nacional, dominada pelos comunistas (com 70% dos candidatos), a qual obteve percentagens esmagadoras na Boémia e Morávia (87,12%) e na Eslováquia (84,91%). Poucos dias depois, em 7 de Junho, Beneš renuncia por se recusar a subscrever a Constituição e, uma semana mais tarde, a 14 de Junho, Gottwald era eleito Presidente, apelidado de «Presidente-operário». O aumento da repressão levou à fuga de diversos intelectuais, artistas ou altos funcionários. Uma nota do Ministério dos Negócios Estrangeiros referia que só em Agosto de 1948 se exilaram 8.000 pessoas, das quais 48 antigos ministros e deputados e 31 diplomatas. Apesar dos inúmeros apelos para que também se exilasse, à semelhança de outros membros do seu partido e de amigos como Hubert Ripka, Petr Zenkl ou Růžena Pelantová, Milada Horáková optou por permanecer no seu país («O meu lugar é na minha pátria»), procurando, em vão, organizar um movimento de resistência semelhante ao que existira no tempo do nazismo. Numa carta dirigida a uma antiga correligionária do Partido Nacional, que se encontrava no exílio, escreveu: «Por vezes é difícil viver aqui. O meu marido esteve sem emprego, mas continuo a aguentar. Sinto que ainda tenho algo a fazer. Reze para que eu consiga saber a tempo [quando devo partir]». Acreditou, porventura com alguma ingenuidade, que seria possível travar de novo o avanço do totalitarismo. Para o efeito, estabeleceu contactos com antigos membros do seu partido que se haviam exilado na Grã-Bretanha e na Noruega, bem como com o grupo dos «seis políticos» (politická šestka), uma organização informal de resistência composta por líderes do ilegalizado Partido Nacional Socialista.
 Entretanto, a polícia política, a StB (Státní Bezpečnost), havia recebido ordens de Gottwald para prender imediatamente todos os suspeitos de actividades contra a nova ordem dominada pelo KsČ. Pelo seu prestígio de oposicionista ao nazismo, pela sua liderança da causa das mulheres e pela militância no Partido Nacional, pelos corajosos e contundentes artigos que publicou na imprensa a denunciar a crescente hegemonia do KsČ, Milada Horáková era um alvo prioritário.  De há muito que se encontrava sujeita a uma apertada vigilância: as transcrições das suas conversas telefónicas, interceptadas pela StB, eram directamente levadas ao Ministro da Segurança Nacional, Ladislav Kopřiva, que as transmitia a Gottwald. Até a sua empregada doméstica era informadora da polícia política. O marido, Bohuslav Horák, foi confinado em casa, em prisão domiciliária, sendo informado por um colega que a Stb se encontrava no encalço da sua mulher. Quando os agentes da StB chegaram à sua residência, em 27 de Setembro de 1949, Bohuslav fugiu, saltando da janela da casa de banho e deixando a sua filha Jana sozinha no apartamento. Tentou avisar a mulher do perigo que corria, mas não conseguiu chegar a tempo. Milada Horáková seria detida nesse mesmo dia, no seu local de trabalho [existem versões contraditórias, por exemplo, entre o já citado estudo de Adam Watkins e o livro Praga Tragica. Milada Horáková 27 giugno 1950, de Sergio Tazzer (2008), o qual refere que foi presa em casa e algemada na presença da filha, mas esta, numa entrevista radiofónica de Outubro de 2011, sublinha que a mãe foi presa no local de trabalho]. Foi imediatamente acusada de actividades conspirativas e espionagem contra o Estado, mais tarde concretizadas na acusação de que pretendia derrubar o comunismo e, com o auxílio das potências ocidentais, restabelecer o sistema capitalista e iniciar uma terceira guerra mundial. Seria levada para a prisão de Ruzině, o local onde os presos políticos aguardavam julgamento, e, mais tarde, conduzida a Pankráck, o mesmo estabelecimento prisional em que estivera presa durante a guerra. No registo prisional, é descrita como casada, de nacionalidade checa e seguidora da confissão evangélica praticada na Boémia (stav vdaná, národnost česká, náboženství českobratsvo-evangelické). Trazia pouco dinheiro nos bolsos, 896 coroas, e poucos objectos pessoais: os óculos, uma escova de cabelo, um pente, a carteira. Altura: 1,64m; peso: 76kg. Foi fotografada de frente e de perfil. 
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A detenção de Horáková seria amplamente noticiada pelas autoridades como forma de dissuasão de movimentações oposicionistas em curso, bastando recordar os protestos estudantis nas universidades de Praga e de Brno, em 1949, de que resultaram várias detenções e mortes. A notícia da prisão seria dada em mais de 18 jornais controlados pelo Ministério da Informação. Mas, em simultâneo, essa notícia despertou a opinião pública internacional, tendo personalidades como Albert Einstein, Eleanor Roosevelt, Winston Churchill, George Bernard Shaw ou o arcebispo de Cantuária apelado a que fosse libertada de imediato. Sujeita a torturas, com interrogatórios que chegaram a prolongar-se ininterruptamente por 56 horas, foi-lhe proposta clemência se confessasse os «crimes» que lhe eram imputados. Recusou-se a fazê-lo, ao contrário do que sucedeu à esmagadora maioria dos detidos na prisão de Ruzině. Um deles, František Přeučil, que seria acusado em conjunto com Milada, confidenciou mais tarde: «Ao fim de sete meses na prisão de Ruzině, estava disposto a colocar a minha assinatura em qualquer documento que me pusessem à frente, até num papel a confessar que tinha assassinado a minha avó». As prisões do nazismo e do comunismo pouco diferiam entre si, dizem aqueles que foram encarcerados em ambas, segundo refere um texto sobre os primeiros «julgamentos-espectáculo» na Checoslováquia. Milada Horáková, no depoimento que presta em Ruzině em Novembro de 1949, rejeita qualquer ideia de inimizade contra o Estado; admite, isso sim, que assumiu uma «perspectiva crítica» do rumo que a vida política checoslovaca tomava, mas, acrescentou, fê-lo abertamente, «nunca de uma forma negativa mas com a energia positiva necessária a formular sugestões e propostas», refutando assim o seu envolvimento em actividades clandestinas ou marginais.  
Na preparação do «julgamento-espectáculo», num processo sugestivamente intitulado Julgamento de Milada Horáková et al. – o que prova bem até que ponto era ela a principal visada –, a StB forneceu-lhe previamente um «guião» que deveria memorizar e pronunciar ipsis verbis na sala de audiências. Desta forma, segundo se diz, Gottwald e os líderes comunistas checoslovacos pretendiam exibir a Estaline a sua eficácia no combate aos adversários políticos e demonstrar a fidelidade das autoridades checas à linha política definida pela União Soviética. Não por acaso, a elaboração do «guião» fornecido a Horáková fora acompanhada de perto pelo próprio Gottwald e as penas já estavam determinadas antes sequer de o julgamento começar, o mesmo acontecendo com o destino a dar a eventuais recursos ou pedidos de clemência, como o atestam os documentos existentes nos Arquivos Nacionais de Praga, um dos quais contendo uma proposta de condenações e de penas, sendo datado de 28 de Maio, quando o julgamento só começaria a 31 desse mês. Há quem fale, e sem exagero, num «assassínio judiciário». As provas eram descaradamente forjadas – pistolas, bandeiras com cruzes suásticas – mas uma parcela significativa da população acreditou na sua veracidade, devendo lembrar-se que a Checoslováquia foi o país da Europa de Leste que mais «julgamentos-espectáculo» realizou, dos quais resultaram 250.000 condenações, das quais 178 à pena capital; cerca de 600 detidos não sobreviveram às torturas que lhes foram infligidas no decurso dos interrogatórios, 70.000 pessoas foram condenadas a trabalhos forçados. Quatrocentos mil cidadãos da Checoslováquia fugiram para o Ocidente.  
Dias antes de se iniciar a audiência de Horáková e dos restantes acusados, o julgamento foi encenado e gravado, com os acusadores a desempenharem o papel de juízes, para o caso de, no decurso da audiência, saberem como reagir se alguns dos réus se retractassem nas confissões que haviam feito. A gravação foi mostrada a Gottwald e a uma audiência restrita, composta por altos dirigentes do Partido. Decidiu-se que realizar uma emissão em directo do julgamento seria altamente arriscado, tanto mais que a condenação à morte de uma mulher poderia suscitar sentimentos de compaixão e repúdio por parte da população. Este foi, aliás, o único caso oficial de condenação à morte de uma mulher na História da Checoslováquia e, sintomaticamente, para minorar as eventuais reacções da opinião pública a esse facto, a equipa da acusação contaria com uma mulher, Ludmila Brožová-Polednová, que aliás se destacaria pela severidade das suas intervenções. Também os acusados haviam sido criteriosamente escolhidos: Milada Horáková, Josef Nestával, Fráňa Zemínová, Antoine Klinerová, František Přeučil e Jiři Hejda pertenciam à direcção do Partido Nacional Socialista, Zdeněk Peška e Vojtěch Dundr eram sociais-democratas, Bedřich Hostička e Jiři Křížek militavam no Partido do Povo, Záviš Kalandra, escolhido como réu apenas por possuir simpatias trotskistas, não tendo até essa data conhecido sequer alguma vez Horáková. Em França, André Breton escreveu a Paul Éluard, pedindo-lhe que interviesse a favor de Kalandra, amigo de ambos, que com eles partilhara na década de 30 a aventura do surrealismo. Éluard declina. Breton interpela-o: «Como podes tu, no teu íntimo, suportar tamanha degradação do homem numa pessoa que demonstrou ser teu amigo?». A resposta de Éluard foi cortante: «Tenho demasiado que fazer com os inocentes para poder ocupar-me ainda dos culpados que proclamam a sua culpabilidade». Milan Kundera recordará o episódio em O Livro do Riso e do Esquecimento  
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«Era ainda sabe Deus que aniversário e mais uma vez havia nas ruas de Praga rodas de jovens que dançavam. Eu errava entre eles, estava muito perto deles, mas não me era permitido entrar em nenhuma das rodas. Era em Junho de 1950 e Milada Horakova fora enforcada na véspera. Tinha sido deputada do Partido Socialista e o tribunal comunista tinha-a acusado de acções hostis ao Estado. Zavis Kalandra, surrealista checo, amigo de André Breton e Paul Éluard, tinha sido enforcado ao mesmo tempo que ela. E jovens checos dançavam e sabiam que na véspera, na mesma cidade, uma mulher e um surrealista baloiçavam pendurados por uma corda, e dançavam ainda com mais frenesim, porque a dança era a sua manifestação de inocência que se destacava, brilhante, na escuridão culpada dos dois enforcados, traidores do povo e da sua esperança.
André Breton não acreditava que Kalandra tivesse traído o povo e a sua esperança, e, em Paris, tinha chamado Éluard (através de uma carta aberta datada de 13 de Junho de 1950) para protestarem em conjunto, contra a acusação insensata e a tentar travar o velho amigo de ambos. Mas Éluard estava a dançar numa roda gigantesca entre Paris, Moscovo, Praga, Varsóvia, Sófia e a Grécia, entre todos os países socialistas e todos os partidos comunistas do mundo, e recitava em toda a parte os seus belos versos sobre a alegria e a fraternidade. Depois de ler a carta de Breton, fez dois passos no mesmo sítio, depois um passo em frente, abanou a cabeça e recusou-se a defender um traidor do povo».
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Milada Horáková não foi autorizada a ver os seus familiares ou colegas e permaneceu em regime de isolamento de Setembro de 1949 até ao dia marcado para o início do julgamento, 31 de Maio de 1950. O pai de Milada, Čeněk Král, de 81 anos de idade, com quem a sua neta Jana agora vivia, solicitou formalmente às autoridades que permitissem que mãe e filha se correspondessem por escrito. O pedido foi recusado. 
Se descontarmos o caso do general Heliodor Pika, executado em 1948, e que não foi propriamente um «julgamento-espectáculo», o processo de Milada Horáková e dos outros réus foi o primeiro «julgamento-espectáculo» da História da Checoslováquia, com um claro propósito de legitimação do regime face à União Soviética, por um lado, e de intimidação do povo checo, por outro. A investigação e o julgamento tiveram o apoio de dois especialistas soviéticos, Lichachov e Makarov (provavelmente, nomes de código), que, a pedido de Gottwald, vieram directamente da Hungria, onde haviam auxiliado a preparação do «julgamento-espectáculo» de Laszlo Rak, tendo já estado na Bulgária e na Albânia com a mesma finalidade. A sala de audiências foi minuciosamente preparada para o efeito, com símbolos da autoridade do Estado, esmagadores, e sinais evocativos da prática de traição contra a República.

Milada Horáková, na sala do tribunal

O tribunal, presidido por Karel Trudák, era integrado por dois magistrados de carreira (Otakar Maroušek e Karol Bedrna) e por dois juízes populares (Miloš Kučera e Jan Polanecký), que alinhavam em frente ao réu, o qual deveria colocar-se num local próprio e falar para um microfone. Chefiando uma equipa composta por Juraj Vieska (que se apresentava em uniforme militar), Jiří Kepák, Antonin Havelka e Ludmila Brožová-Polednová, o acusador principal, Josef Urválek (1910-1979), procurador do Estado, era conhecido pela sua dureza, que ficaria patente pouco depois, no julgamento de Rudolf Slánský (1901-1952), o «renegado traidor» para quem pediu a pena capital, sob a acusação de «desviacionismo» e de «titismo». Nas fábricas, nos escritórios e nas escolas foram entregues cartões de acesso ao tribunal e assegurado um serviço de transportes em autocarros para que a sala de audiências estivesse sempre repleta. Em diversas localidades da Checoslováquia, as sessões de julgamento eram transmitidas em grandes auditórios, com capacidade para centenas de pessoas. Das actas das sessões foram feitas e distribuídas 140.000 cópias, bem como traduções para línguas estrangeiras, como o alemão, o inglês, o francês e, não por acaso, o russo. Nas aulas, os alunos não só tiveram de escrever sobre o processo, exigindo as mais duras penas, como foram interrogados acerca do modo como em suas casas os pais reagiam ao julgamento. A família de Milada ouvia as transmissões do julgamento. A filha, na altura com 16 anos, ao depor na série O Mundo Perdido do Comunismo, recorda esses momentos de angústia: «Lembro-me da situação de desespero que vivíamos em casa, estávamos impotentes».   
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Milada Horáková foi a primeira a ser chamada a depor, logo em 31 de Maio de 1950. Sendo tratada por «Senhora Acusada», seguiu o «guião» que lhe havia sido fornecido, mas afastou-se dele em momentos cruciais e tentou chamar a si a culpa pela «subversão» que era atribuída aos outros arguidos. Ao fim do terceiro dia de trabalhos, soldados entraram na sala de audiência trazendo consigo diversos sacos contendo cerca de 6.300 exposições escritas que exigiam a aplicação da pena máxima aos réus, incluindo cartas de alunos que reclamavam uma punição exemplar: «Ainda que sejamos jovens, temos seguido as transmissões pela rádio do julgamento dos treze acusados de traição à nossa República. Soubemos que estavam a preparar uma nova guerra. Sabemos quão cruel foi a guerra e quantas vidas humanas custou. Ainda nos lembramos dos bombardeamentos em Pardubice. Não queremos outra guerra e, como tal, queremos que todos estes traidores sejam severamente punidos».
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Albert Einstein e Eleanor Roosevelt continuaram a pedir clemência às autoridades checas e a BBC conseguiu captar o sinal da transmissão radiofónica do julgamento. Ainda assim, o Ocidente teve apenas uma pálida imagem do que ocorria no interior da sala de sessões. Antes de serem emitidas, as gravações áudio do julgamento eram escrutinadas com o apoio de peritos soviéticos, atrás referidos, e a consulta dos arquivos tem permitido mostrar que os documentos constantes do processo foram «adaptados» antes de serem entregues à imprensa, como revela Marie Homeróva num texto sobre o julgamento de Milada. A gravação original da «confissão» de Horáková foi substancialmente alterada, com diversas supressões das passagens mais incómodas para o regime. As transmissões radiofónicas eram feitas diariamente, mas manipuladas e editadas de acordo com os interesses da acusação. Somente dois jornalistas ocidentais foram credenciados como correspondentes, sendo as suas peças objecto de censura prévia. Em 2005, o cineasta checo Martin Vadaš encontrou por acaso, num prateleira perdida dos Arquivo Nacional, as filmagens originais, e não censuradas, do julgamento de Milada Horáková e dos seus co-réus. As suas palavras, na versão integral, só seriam ouvidas pelo povo checo 55 anos mais tarde, numa transmissão radiofónica efectuada em Novembro de 2005. 
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Enquanto o julgamento prosseguia, a linguagem usada pela acusação foi-se tornado cada vez mais rude e severa. Os réus foram classificados como «traidores da República», «terroristas», «agentes dos imperialistas americanos, ingleses e franceses», «pequenos Hitlers», «ratazanas que conspiraram nos esgotos contra a classe operária». Horáková não se deixou intimidar e, a dado passo, dirigindo-se aos juízes, disse: «Discutimos aqui longamente o que é “convicção”, pois foi com base nas minhas convicções que orientei todas as minhas actividades. Tenho a convicção de que os meus actos eram legítimos (…). E mentiria se dissesse que mudei de ideias, que estou diferente, que a minha convicção se alterou. Se o dissesse, não estaria a ser verdadeira, nem honesta». «Oponho-me a esta democracia popular na Checoslováquia, porque não a considero democrática, e por isso lutei contra ela. Se porventura ocorresse um milagre e o tribunal me considerasse inocente e me libertasse, voltaria a lutar como lutei». Um dos outros réus do processo, František Přeučil, recordou, impressionado, a atitude de Milada: «Os seus olhos! A sua postura! Que coragem perante os juízes!» [noutra versão, bastante diferente: «Os seus olhos! O seu olhar já não era o dela. Já não era ela que estava defronte de mim»].  
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Na manhã de 8 de Junho de 1950, após uma inflamada intervenção do procurador Urválek («Milada Horáková é incorrigível. O seu ódio ao sistema democrático popular não tem limites»), o presidente do tribunal, Trudák, leu as sentenças Iménem republiky, em nome da República: quatro prisões perpétuas, cinco penas de prisão entre 15 e 28 anos e quatro condenações à morte (para Horáková, para o ex-oficial dos serviços de segurança Jan Buchal, para o proprietário de minas Oldřich Pecl, para o jornalista e comediógrafo Záviš Kalandra). Horáková ouviu o veredicto – morte por enforcamento –, após o que foi obrigada pelo tribunal a afirmar que se tratava de «uma decisão justa, em nome do povo». Depois de lida a sentença, a jovem procuradora que colaborava na equipa de acusação liderada por Urválek, Ludmila Brožová-Polednová, afirmou: «Enquanto a operária Heráinová, da fábrica de têxteis Kontony, em Beroun, trabalhava dedicada e afincadamente nas máquinas para alcançar os seus objectivos, ajudando assim a construir e fortalecer a nossa República, a ré Horáková manobrava subterraneamente para agrupar bandos inimigos que iriam destruir esta grande República». Algumas fontes credíveis referem que Ludmila Polednová, que já antes exigira um tratamento prisional rigoroso para Milada Horáková, fez questão de estar presente no dia da sua execução, onde alegadamente terá dito: «Sufoquem esta cadela, e assegurem-se que o seu pescoço não dará um estalido sequer quando a largarem no ar».
Todos os réus recorreram, mas a todos os recursos foi negado provimento. Nos dias subsequentes à leitura da sentença, Jana Horáková, dirigindo-se a Gottwald, pediu clemência para a sua mãe. Não teve qualquer sucesso: Gottwald, que conhecia pessoalmente Horáková há muitos anos, assinou a ordem de execução em 24 de Junho de 1950.
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Ordem de execução de M. Horáková, assinada por Gottwald
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Pouco antes de ser executada, Milada Horáková escreveu cartas à sua família, ao marido, à filha. Na noite anterior à execução, foi autorizado que, durante quinze minutos, a filha, a irmã e o cunhado a visitassem na prisão de Pankrác. Nessa visita, Milada soube que o marido conseguira escapar para a Alemanha ocidental e estava vivo. Tentou abraçar e beijar a filha Jana pela última vez, mas o guarda de serviço não o permitiu. Segundo confidenciou Jana na série O Mundo Perdido do Comunismo, «O pior momento foi a visita na véspera da execução dela. Foi um momento muito, muito mau. Ela estava absolutamente calma e composta. Nem sequer tivemos autorização para nos beijarmos. Havia guardas armados à nossa volta e ela não parou de falar. Subitamente, ela própria pôs fim à visita. Foi horrendo». 
Às 4h e 30m da madrugada de 27 de Junho de 1950, os quatro condenados foram levados para a praça central da prisão de Pankrác. Decidiu-se que Milada Horáková seria a última a ser enforcada. Antes disso, havia sido pesada, para que pudessem ser preparados os aspectos técnicos do enforcamento, como o comprimento e o tipo de corda a usar. Milada pesava agora 63 quilos, contrastando com os 74 quilos registados quando entrara na prisão. Enquanto os outros réus iam sendo executados, fixou o olhar em frente. Por fim, o guarda ordenou-lhe que subisse ao cadafalso. As suas últimas palavras foram: «Estou a cair, a cair. Perdi esta batalha. Parto com honra. Amo este país, amo este povo, dêem-lhe uma vida boa. Parto sem vos odiar. Quero que o saibam…,  quero…».
Às 5h e 35m da manhã, Milada Horáková foi enforcada. A certidão de óbito, assinada às 6h e 15m pelo médico legista Josef Hampl, atestou a sua morte dez minutos após o enforcamento. Tinha 49 anos de idade.                            
As cartas que escreveu nunca foram entregues à família. Seriam divulgadas em 1990, após a queda do regime comunista, e a sua filha Jana, a única familiar sobrevivente, pôde então saber da sua existência e conhecer o respectivo conteúdo. Ao reler a carta que lhe era dirigida, na gravação da série O Mundo Perdido do Comunismo, Jana comoveu-se: «Não consigo ler esta carta muitas vezes. Ainda me custa, ao fim de meio século, desculpem…». 
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Jana Horáková-Kansky
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O marido de Milada, Bohuslav Horák, conseguira escapar para o campo de refugiados de Valka, na Alemanha ocidental, em Dezembro de 1949, nunca tendo visitado Milada na prisão. Mais tarde, emigraria para os Estados Unidos e nunca falou publicamente do julgamento de Horáková. Tendo-se fixado em Washington, D.C., só voltaria a ver a filha em 1966 e, depois, em 1968, quando esta foi autorizada a partir para os Estados Unidos. Bohuslav Horák morreu em 1976. Recentemente, foram conhecidos alguns pormenores da sua fuga, graças a um trabalho de investigação da jornalista Ludek Navara. Tendo-se refugiado na casa do pastor protestante Jan Kučera, Bohuslav foi depois hospedado pela família Popísil, tendo o escritor e jornalista Jan Haisman, um dos fundadores da agência noticiosa ČTK, organizado a sua fuga. Refugiou-se depois no moinho da família Simák, juntamente com Josef Haimánek, o conde Lobkovicz e um oficial do Exército. Foi um dos filhos da família Simák, na altura uma criança, que contou à jornalista Ludek Navara os detalhes da fuga de Bohuslav Horák, rumo à Alemanha (aqui).
Durante o julgamento e após a morte da mãe, Jana foi colocada sob vigilância, tendo os colegas de escola sido instados a fornecer informações sobre as suas actividades quotidianas. Durante muito tempo, foi vigiada diariamente, ainda que não o notasse pois, segundo afirmou numa entrevista de 2011, não o queria notar. Em 1968, pôde emigrar para os Estados Unidos. Em 2006, recebeu a Medalha da Liberdade da cidade de Praga, em homenagem ao exemplo da sua mãe. Na ocasião, o Presidente Václav Haus afirmou: «Milada Horáková é o símbolo perene da resistência ao comunismo (…). Pagou caro a defesa da liberdade e da democracia, apesar dos protestos que na altura foram feitos no mundo inteiro». Em Novembro de 2006, Jana Kansky, numa cerimónia realizada na Embaixada da República Checa em Washington, recebeu a Truman-Reagan Medal of Freedom Award, instituída pela Victims of Communism Memorial Foundation. «Obrigado por reconhecerem a sua luta pela liberdade», disse Jana na ocasião.
O corpo de Milada Horáková nunca foi encontrado. Diz-se que, anos depois de ser morta, as autoridades depositaram as suas cinzas no campo, ao longo da estrada que liga Praga a Mělkník. Após a queda do comunismo, foi erigido um monumento evocativo da sua figura no cemitério de Vyšerand, em Praga. Junto desse monumento, no dia em que Milada foi executada, 27 de Junho, é realizada anualmente uma cerimónia religiosa em sua memória. Em 27 de Junho de 2004 as autoridades checas anunciaram que, doravante, essa data seria assinalada como «Dia das Vítimas do Regime Comunista». Milada Horáková transformou-se num ícone para o povo checo, sendo objecto de inúmeras homenagens, das quais se pode destacar a ópera de cariz biográfico Zitra se bude… (Amanhã, será…), da autoria de Aleš Brežina, estreada com grande êxito na Casa da Ópera de Praga em 2008. Em 1990, Milada Horáková seria completamente ilibada post mortem das acusações de que foi alvo em 1950 (em 1968, durante a «Primavera de Praga», a sentença condenatória já havia sido revogada). O Presidente Václav Havel galardoou-a a título póstumo, em 1991, com a Ordem T. G. Masaryk, Primeira Classe. A bibliografia em língua checa sobre Milada Horáková tornou-se inabarcável e diversas associações velam pela sua memória, podendo citar-se o Klub Dr. Milady Horákové. Em 2007, David Mrnka, um jovem produtor de televisão de ascendência checa, residente em Los Angeles, manifestou a intenção de fazer um filme sobre a sua vida, mas desconhece-se se este projecto, que mereceu o apoio de Jana, está a ser concretizado. O nome de Horáková foi dado à artéria que liga o Castelo de Praga ao bairro de Holesovice e, na cadeia de Pankrác, o escultor Milan Knobloch erigiu um monumento em sua memória. Na cerimónia de lançamento da primeira pedra deste momento, participou Miroslav Ransdorf, eurodeputado do Partido Comunista checo, o qual afirmou que Horáková fora uma grande cidadã checa e uma grande patriota. O líder do Partido Comunista (KSČM), Vojtĕch Filip, contribuiu financeiramente para a edificação do monumento a Milada na cadeia de Pankrác, o que valeu um violento protesto das associações de ex-presos políticos. Os comunistas opor-se-iam, no entanto, à emissão de um documentário televisivo sobre o julgamento de 1950. Vojtĕch Filip alegou que a transmissão do documentário nas vésperas de um acto eleitoral tenderia a «encorajar o anticomunismo primário», o que provavelmente era verdade. Menos consistente foi a declaração do deputado Václav Exner, também do KSČM, que sustentou que o governo que mandara executar Horáková não era comunista mas da Frente Nacional. Segundo se diz, a razão da oposição daquele partido funda-se no facto de muitos implicados no processo, directa ou indirectamente, se encontrarem ainda vivos. Não por acaso, os historiadores continuam a detectar inúmeras lacunas dos arquivos oficiais e, ao mesmo tempo, a descobrir documentos escondidos durante décadas.      
Assim, em Abril de 2006, nos Arquivos de Praga, o historiador Karel Kaplan, autor de duas obras de referência sobre o processo de Milada Horáková, fez uma descoberta sensacional: um documento dactilografado de 43 páginas, da autoria de uma agente da StB que havia sido colocada na cela de Milada. O relatório desta falsa prisoneira é um retrato extraordinário do carácter de Horáková: «dizia-me que estava reconciliada com o seu destino e que apenas Deus poderia decidir a sua sorte, sendo esta a única decisão verdadeiramente justa. Acrescentou que a pena de morte era preferível à prisão perpétua». A informadora entrou na cela de Horáková no dia 23, aí permanecendo até 8 de Junho, fazendo-se passar por uma jornalista condenada a 12 anos de prisão, história de que Milada sempre terá desconfiado. A agente da StB narra o sofrimento que Milada teve ao saber da fuga do marido: «Recusa-se a acreditar que o marido tenha podido partir rumo ao exílio, uma possibilidade que este sempre rejeitara. Concluiu, pois, que estava morto. Depois de receber estar carta, passou a noite em claro. Pálida e extenuada, de manhã disse-me que reflectira muito sobre ela própria e sobre a tragédia que se abatera sobre toda a sua família. Havia pensado sobretudo na sua filha». Tudo indicia que as autoridades mantinham os presos na ignorância sobre a situação dos seus familiares justamente para adensar o seu sofrimento e a sua incerteza quanto ao futuro. Milada fraqueja: «pediu-me que a deixasse em paz (…). Tinha a mão direita ligeiramente paralisada e não parava de chorar. Naquele dia recebera uma carta que confirmava aquilo que temera durante os sete meses do seu cativeiro: o seu pai havia morrido, a sua casa fora despejada, a filha deixada ao cuidado de familiares. Nesse dia foi novamente submetida a um interrogatório e à noite disse-me que estava a ser acometida de uma crise cardíaca. Isto deixou-a muito debilitada e pessimista. O seu estado de saúde era frágil», dizia o relatório nº 9 da agente da polícia política.    
Entretanto, em 2007, a procuradora Ludmila Brožová-Polednová, com 86 anos de idade, foi presa e formalmente acusada de homicídio pela morte de Milada Horáková e dos restantes três réus executados em 1950. Num primeiro julgamento, que viria a ser anulado após recurso, foi condenada a oito anos de prisão. Realizado novo julgamento, foi condenada a seis anos de prisão. No final da audiência declarou não sentir arrependimento pelos seus actos: «não me sinto culpada. Combati pela república e por uma ordem social sem desemprego», foram as palavras dirigidas ao diário de Praga Lidové Noviny. Ao escritor Miroslav Ivanov, autor da obra Assassínio Judiciário. A Morte de Milada Horáková (2008) confessou que, na juventude, pensara ser professora, actriz ou até jornalista. Optou pela magistratura e tornou-se uma ardente defensora do regime nos tribunais: uma guarda prisional recorda-se dos seus risos enquanto assistia ao enforcamento de Horáková.
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Ludmila Polednová com o seu advogado
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 Ironicamente, Ludmila Polednová seria encarcerada na prisão de Pankrác, o velho cárcere onde Milada Horáková esteve presa pelos nazis e onde, mais tarde, seria enforcada. Após interpor recurso, sem êxito, para o Tribunal Supremo de Praga, Polednová começou a cumprir pena em Março de 2009, numa ala geriátrica da prisão de Světlá nad Sázavou, na Boémia central. Em Dezembro desse ano, recorreu ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o qual, por unanimidade, decidiu rejeitar a sua pretensão (aqui).  Em Março de 2010, ser-lhe-ia comutada a pena em três anos, por aplicação das leis de amnistia de 1953 e 1990. E, em 21 de Dezembro de 2010, o Presidente Václav Klaus, que em 2008 recusara um pedido de clemência de Polednová alegando que a sua condenação era um sinal de justiça num país marcado por uma história tão trágica, indultou a pena remanescente, atendendo à idade avançada da reclusa, ao seu estado de saúde e, bem assim, à circunstância de restar pouco tempo para concluir o cumprimento da pena. Ludmila Polednová seria libertada nesse mesmo dia. Na véspera, fizera 89 anos de idade, sendo o recluso mais velho da República checa. O seu encarceramento dividia a opinião pública, que ora considerava que deveria existir compaixão por uma presa tão idosa, ora entendia que a gravidade dos seus actos não merecia qualquer perdão. A decisão presidencial, comunicada por fax para o estabelecimento prisional de Světlá nad Sázavou, não era esperada, a ponto de Polednová ter de aguardar várias horas para que os seus familiares, desprevenidos, a viessem buscar.


Ludmila Polednová, à saída da prisão

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À saída da prisão, rodeada de jornalistas, não mostrou arrependimento pelos seus actos, considerando que o perdão presidencial era um gesto de justiça, uma vez que nunca deveria ter estado presa, que actuara como procuradora da acusação e, nessa medida, não era responsável pela decisão dos juízes. Por fim, numa afirmação que causou controvérsia, sustentou que o destino de Horáková poderia ter sido diferente, se acaso esta não tivesse defendido até ao fim os seus «actos de traição». Ao tomar conhecimento da libertação de Polednová, Stanislav Stránský, presidente da Confederação dos Antigos Prisioneiros Políticos, associação que agrupa 4.000 antigos detidos pelo regime comunista e seus familiares, afirmou à imprensa que a decisão de Václav Klaus constituía uma «cuspidela na cara de todos aqueles que foram presos e torturados nos anos cinquenta».
Contudo, não podemos deixar de pensar que a diferença entre os destinos de Horáková e de Polednová constitui uma eloquente prova da distinção que separa a ditadura da democracia. O perdão concedido à acusadora representou a maior homenagem póstuma que se pôde fazer à acusada. Mais do que estátuas ou nomes de ruas, esta foi a melhor celebração da memória de Milada Horáková. Do seu exemplo de vida, dos ideais que defendeu até na morte.


António Araújo

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(Continua=).

18 comentários:

  1. Grande história e grande narrativa, meu caro António.

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  2. Nas minhas incursões pelo universo da blogosfera deparei com o v/blog.Gostei e vou voltar
    Parabéns pelo trabalho.
    Como achei interessante fiz uma referência no blog http://o-andarilho.blogspot.com

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  3. Desconhecendo Milada Horáková, fico grata a António Araújo pela tradução das cartas desta «resistente», que pelo seu acto de coragem e pela vontade de resistir a quem nos quer impedir de pensar criticamente, tornar-se-á forçosamente um exemplo. De felicitar ainda António Araújo pelo pormenorizado e sério desenvolvimento histórico do percurso de Horáková. Com efeito, não nos podemos deixar seduzir por quem faz espectáculo falando do povo e para o povo. São os mesmos que se «extasiam» perante a sua ignorância porque desse modo mais facilmente o dominarão.

    Maria do Carmo Vieira (colocado a pedido da própria)

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  4. Muitos parabéns por (mais) este trabalho. É uma história extraordinária de uma mulher inspiradora, que eu não conhecia de todo.

    Permite ainda uma reflexão para o presente sobre os julgamentos espectáculo, que continuam a ser correntes no nosso tempo. Mostra que a natureza humana dos poderosos é intemporal, e resiste a (ou usa) todas as tecnologias.

    As nossas sociedades actuais, com todas as suas imperfeições, têm certamente um padrão de valores bem melhor do que as imediatamente anteriores. Mas foram obtidas com o exemplo, e a vida claro está, de pessoas extraordinárias que nos antecederam. Convém que nos vamos lembrando disso.

    Com um abraço amigo, deste seu admirador sem perfil,

    João Borges Assunção (colocado a pedido do próprio)

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    1. Dear Mr. Adam E. Watkins

      Thank you very much for your commentary. But, first of all, let me explain you that my intent was not to make an academic research about M. Horakova, based on primary sources or interviews like you did in your excellent work (that I've quoted in the beginning of my text, with a specific link to your study on the trial of Dr. Horakova). My intent was to present Dr. Horakova to Portuguese readers, since this historical figure is completely unknown in my country. My purpose was not to produce an academic research, but an information note in order to introduce the letters of M. Horakova to Portuguese readers. However, I consider my work original and honest. I've collected a lot of information on Internet and books about M. Horakova but I didn't want to make a research like yours. The reason is simple: I don't understand Czech language and my field of research is not Czech History. Therefore, my aim is completely different of yours. Please inform me what lines or paragraphs you consider I've «borrowed» from your work, because I simply cannot accept the idea of «borrowing» other people's work. The layout and the photographs were not taken for your work: the layout is mine and the photographs are available on Internet in lots of sites. And as you can see, I don't follow you even in the factual description of the trial, namely in a point when I confront your version of the facts with other, presented in the book «Praga tragica», of S. Tazzer - that you don't quote in your text. All the information about Polednóva is based in Czech contemporary press, not in your work. You don't even mention Milan Kundera's book and the translation of Horakoka's letter uses the version published in «Women of Prague». And can offer you much more examples of substantial differences between your text and mine.

      In the next months, I want to investigate the impact of Dr. Horakova's trial in the Communist Portuguese press, namely the clandestine journal «Avante!». I will inform you about the results of this search, if there are any (at the moment, I'm not sure that the Portuguese Communist Party took an official and formal position about this case). So, please send me your e-mail, in order to continue this mutual and very enriching exchange of information and points of view. I want to known more precisely what lines or passages you consider that are «borrowed» from your work. So, please send me your e-mail. Or you can use this blog to present all your questions and doubts, off course. I will publish all your comments, because I'm very pleased about your interest in my text.

      Best regards and thank you very much for your comment

      Antonio Araujo

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  8. não conhecia esta pessoa e nem tampouco a sua história.....Isso só prova que o comunismo é um mal a ser evitado....

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  9. Vou tentar encontrar a carta redigida a sua filha ... parece um teco muito importante

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  10. Estava assistindo MILADA - pelo canal da Netflix. Resolvi fazer uma pesquisa sobre a vida dessa mulher. A medida que lia o seu relato, pude ampliar com mais rigor o contexto histórico-politico em que a heroína estava inserida. Gratidão, António Araújo, por sua preciosa colaboração.

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  11. Obrigada pelo conteúdo tão completo, vi o filme no Netflix e me encantei com a história dela. As cenas que relatam a tortura, mesmo que poucas, me lembram a fase da Ditadura aqui no Brasil. Por diversas vezes me emocionei, ao menos a história a absolveu... Bjs do Brasil.

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  13. Bom dia!

    Gostaria, por favor, de ter certeza absoluta sobre a tradução das últimas frases em suas últimas palavras antes de ser enforcada. Pode me ajudar?

    Aqui foi traduzido para: "Parto sem vos odiar. Quero que o saibam…, quero…", mas na Wikipedia está traduzido para: "Parto sem rancor para você. Desejo-lhe, desejo-lhe ...".

    Esta tradução da Wikipedia me parece fazer mais sentido para uma pessoa bastante religiosa (como Milada) dizer antes de morrer (e que muitos tradutores talvez não entendam por não serem tão religiosos), onde "você" seria "Deus" ou "Jesus", por Quem ela não teve nenhum rancor a respeito do destino que Deus permitiu acontecer a ela, e para Quem, com a morte eminente, ela parte desejando-O: "Parto sem rancor para você. Desejo-lhe, desejo-lhe ..."

    Por favor, você teria o texto original?

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  14. No momento ainda com lágrimas nos olhos....

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  15. Somente agora meados de 2019 conheci a história, não só de Milada, como desse país que me encanta antes mesmo de conhecer. Agradeço-lhe a oportunidade de compreender essa parte da história, por vezes longe, por vezes tão perto. Parabéns pelo texto.

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  16. Somente agora(março 2022) vi o filme e conheci algo sobre a militância desta grandiosa mulher. Emocionante!

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