segunda-feira, 30 de julho de 2012

Verão Quente (3ª parte).

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O autor e a família, no Castelo da "Caras", aqui




          # – O livro e a sua circunstância


Prossigamos a análise deste livro, enquadrando-o na vasta obra do autor, Domingos Amaral. Em Verão Quente, como temos visto, abundam expressões rascas como “fechar as pernas”, “saltar para a cueca”, “comer”, “não fode nem sai de cima” (p. 223), “cobrir todas galinhas da capoeira” (p. 234). A hipocrisia das mulheres, outro estereótipo machista, é uma constante. Julieta envolve-se com o narrador às escondidas da filha, esta mantém um casamento de fachada por razões financeiras e, quando Julieta se aproxima de Raul, o advogado mulherengo, tem o cuidado de advertir o narrador: “Nada de contar ao Raul as nossas aventuras tórridas, ouviu? Não me estrague o futuro” (p. 290).
As expressões mais boçais são repetidas à exaustão. Raul, que fora seduzido por Madalena, chama a Julieta “ceguinha endiabrada”, enaltece os dotes físicos e sexuais de ambas as irmãs (“Que manas!”), chama “folia” ao relacionamento de dois anos com Julieta (que “sofreu um bocado, coitada”…). Depois, para salvaguarda do matrimónio de Raul, é o filho, Paulo, quem passa a tratar dos problemas jurídicos da família Silva Arca. Com as consequências de todos conhecidas – Redonda acaba a praticar sexo oral com ele, no interior de um veículo automóvel: “faz uns belos bobós!”, informa Paulo na página 120. Em suma, nas palavras sempre elevadas do dr. Raul Salavisa Pinto, “foi pior a emenda que o soneto”. Ao proferi-las, o advogado solta “uma pequena risada”. Mas, à semelhança do narrador, que acaba no final por ficar ao lado de Redonda, apesar de esta lhe ter mentido, Julieta acaba por ficar com Raul, apesar de este lhe ter mentido – e ser um notório alarve. A culpa não é dele, a culpa nunca é dos homens. São elas que os fazem assim: “Eh pá, com estas mulheres, é difícil um homem não perder a cabeça! Elas são um espanto, sempre foram!”, conclui Raul. Um espanto.  
Após dialogar com Raul, o narrador sai então do escritório, sendo interpelado pelo seu amigo Paulo, com duas tiradas de grande alcance: “– Sabes que o meu pai comeu as duas?”; “– A que morreu e a cega. É pior do que eu! Eu só comi a filha!”. Julieta esperava lá fora, mas ouviu tudo. Descem as escadas e a senhora é acometida por um flashback,  fenómeno que adiante analisaremos. A seguir ao flashback, Julieta e o narrador vão para o Hotel do Chiado, onde irá decorrer uma cena épica, ou hípica, que já descrevemos. Repare-se que nessa altura já Julieta sabe que o narrador não a ama, mas antes à sua filha. O que não impede a cinquentenária senhora, muito conservadora e antiquada, de transformar uma suíte do Hotel do Chiado num recinto escaldante, gritando muito alto sempre que atinge o orgasmo. “Este interlúdio carnal e intenso foi bom, mas acabou-se”, conclui o narrador, à saída de cena.
As descrições das cenas de sexo têm momentos interessantes, até para uma reconstrução sociológica das vivências contemporâneas da intimidade. Na mansão da Arrábida, antes de saltar para cima de Julieta, o narrador avisa-a de que “cheira mal dos pés e a sovaco”. Ela ri e chama-lhe “palerma”. Retaliando caninamente, ele dá-lhe “uma pequena mordidela”. Como Julieta estivesse inibida devido às marcas da idade no seu corpo, o narrador proclama: “Não quero ouvir mais falar de defeitos, defeitos temos todos, até Deus”. Só faltou acrescentar que até Deus, também Ele, cheira mal dos pés e a sovaco. Mas Julieta e o narrador já não estão nem aí. Agora, ele ensina-lhe “como deve colocar os lábios em ó”. Encontrava-se Julieta a aprender como colocar os lábios em ó e, de súbito, entram a filha e o genro pelo quarto dentro. Pergunta da filha: “– Mãe, como foste capaz?”. Mesmo com os lábios em ó, a mãe não se fica nem perde a classe: “– O que veio a menina cá fazer?”. Provavelmente, acompanhar in loco a aprendizagem, por parte de sua mãe, da difícil arte de colocar os lábios em ó. A seguir, Julieta vai para a casa de banho, põe a água a correr. Quando regressa ao quarto, é acometida por um novo flashback e o romance prossegue a bom vapor, com paragens em Alfarelos e Coimbra-B. Já vestidos, o narrador e Julieta descem ao andar de baixo, à sala, pois queriam “partilhar com Redonda e Tomás este último flashback”. E pronto, acaba tudo amigo, na converseta, a esmiuçar o último flashback de Dona Julieta Silva Arca. Este livro é de deixar os lábios em ó. Não acreditam? Além do mau cheiro dos pés e das axilas do narrador, temos outros momentos escatológicos. Numa manhã na Arrábida, já perto do final do livro, Redonda e o narrador (o rapaz dos pés e do sovaco) acordam, enamorados. “Em silêncio, Redonda levanta-se, vai à casa de banho, faz o que tem a fazer […]” (p. 299). Que coisa inominável terá feito Redonda na casa de banho? Que coisa fez, que coisa tinha a fazer? Ler um livro de Domingos Amaral? A dado trecho, na página 237, o narrador diz: “Foda-se, apetece-me vomitar”. A nós também.
Alguns dirão, em defesa do autor, que este mais não quis do que retratar, até com ironia e fino humor, a boçalidade do Portugal contemporâneo. Cremos, todavia, que nessa boçalidade dos nossos dias se inserem também os romances de Domingos Amaral – todos eles. De facto, não precisamos de gastar muito tempo e dinheiro para perceber que, noutros livros, a visão do mundo e o estilo literário são exactamente idênticos aos deste inenarrável Verão Quente. Trata-se de uma forma mentis, não de um artefacto ficcional.
Ainda que mais conseguido como intriga romanesca, Enquanto Salazar dormia… é um bom exemplo. Aí se desvenda, desde logo, a omnipresença das mamas, verdadeira obsessão literária de Domingos Amaral. A acção decorre durante a 2ª Guerra. Em Lisboa, nesse tempo, havia Oliveira Salazar, espionagem dos Aliados e do Eixo e “regabofe com mulheres” (p. 15). Stephanie, uma cidadã belga (“melhor que a belga já não se fabrica”), tem “peitos volumosos” (p. 57). Rita é senhora de “uma cara rosada e seios volumosos” (p. 89). Uma outra mulher, que participa num ménage à trois com o narrador e com Mary, possui “seios volumosos” (p. 126). Na página 150, de novo com Rita: “Toquei no seu peito, sentindo o mamilo frio contra a minha mão. Ela gemeu baixinho” (p. 150). Três páginas adiante, lá surge o “peito volumoso” de Rita (p. 153). Os peitos são sempre “volumosos”. Domingos Amaral não terá um Dicionário de Sinónimos? Por acaso, tem. É que na página seguinte já são “arqueados” os peitos de Rita (p. 154). “Umas mamas inesquecíveis” (p. 162). Algo horripilados, deparamos a páginas 199 com um “peito peludo”. Calma, calma, é o velho marinheiro Aníbal, homem encorpado e de “enorme bigode”. Regressando aos peitos das fêmeas, têm estes, entre vários atributos, uma extrema acuidade visual. Em Verão Quente era o mamilo esquerdo de Redonda que estava sempre a “vir à janela”, espreitar. Aqui, em Enquanto Salazar dormia…, é o seio de Alice que perscruta o mundo. Os cabelos de Alice desciam “até ao peito, tapando-lhe um dos seios, enquanto o outro me olhava, redondo e cheio” (p. 251). “Redondas e nuas” eram as nádegas de Alice, na página 253, mas já vamos tratar dessas partes. Agora, o tema é outro, as mamas. Ou, se preferirmos, os seios. Os seios de Alice, por exemplo, que num jantar no distintíssimo Hotel Aviz estavam “quase a transbordar para cima da mesa” (p. 257). É certo que rabos e seios frequentemente se misturam. Alice, mais uma vez, “sempre gostara” que o narrador lhe desse “fortes palmadas nas nádegas” enquanto “lhe afagava as mamas” (p. 325). Outra mulher surge em Enquanto Salazar dormia…. O seu nome: Anika. O seu peito? “Era redondo, cheio e rijo” (p. 420). Em face disso, não admira que o Instituto de Meteorologia e Geofísica haja detectado “movimentos de excitação”. Onde? “Lá em baixo”, obviamente (p. 420). Lá em baixo, sem dúvida, mas também noutras divisões da casa. Na cozinha, por exemplo. Que fazia Anika na cozinha, um dia? Cozinhava, o parece evidente. Mas cozinhava nua da cintura para cima, com “o belo peito ao ar” (p. 423).
Às tantas, a personagem principal de Enquanto Salazar dormia…, Jack Gil Mascarenhas Deane, interroga-se sobre a vida. Pergunta se a sua existência não iria ser “uma longa colecção de casos, de rabos e mamas, de gritos ofegantes e suores partilhados” (p. 458). No romance de Domingos Amaral, a resposta é claramente afirmativa. Logo na página 13, temos Alice, uma “mulher dos diabos”, e temos Jack a tirar as ligas a Mary, “desesperada”, e a atirá-las “para cima do lençol”. “Mulheres que amavam como possessas”, assim eram as senhoras da Lisboa dos anos quarenta.
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Edição portuguesa

Edição portuguesa, de bolso

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A “atracção sexual entre homens e mulheres é cheia de mistérios”, diz-se na página 42 de Enquanto Salazar dormia… Quanto a Mary, Jack “desejava possuí-la” (p. 43). E a rapariga, “mulher experiente e vivaça” (p. 47), com “um currículo tão vasto” (p. 47), tinha o marido ausente. Em suma, “estava necessitada de homem” (p. 43). Passaram juntos essa noite, claro está. Jack, que  se encontrava “demasiado excitado para reparar nos pormenores”, só recorda algo que, note-se, não era um pormenor: “foi a primeira que lhe vi as ligas e eram pretas” (p. 44). “Queres continuar a montá-la?”, pergunta Michael a Jack (p. 50). É que, ali ao lado, à mão de semear, estava Rita, “uma truta!” (p. 57). Entre o hipismo e a gastronomia, os dois cavalheiros ingleses referem-se ainda às artes tauromáquicas. Michael, à má fila, aproveita para “espetar uma bandarilha no cachaço” de Jack. Com a pergunta: “– Vais tentar ser, uma vez na vida, o primeiro e não o último da lista?” (p. 57).



Edição brasileira

Edição polaca




A ideia de que as mulheres têm uma “lista” e que aos homens pode ser concedido o privilégio da sua inauguração solene é bastante ilustrativa de uma mentalidade arcaica, boçal e alarve que Domingos Amaral sabe captar de forma muito insistente e inteligente, trazendo-a para o interior dos seus vários romances. “Adoro vê-las corar”, diz para consigo o protagonista principal de Enquanto Salazar dormia… O primarismo machista aparece amiúde em Verão Quente, como aparece amiúde em Enquanto Salazar dormia…, uma obra que teve dezenas de edições, vendeu 200 mil exemplares (segundo a publicidade), já saiu em versão de bolso e foi dada à estampa no Brasil e na Polónia. As críticas feitas na Internet, aqui ou aqui, por exemplo, são entusiásticas. E merecidas. Trata-se de um livro notável, em que a “famosa carpete” do Hotel Aviz tem “20 centímetros de espessura” (p. 66). Assim, nem mais, nem menos. Por ela “circulavam em silêncio imensos empregados, como que deslizando”. Vinte centímetros de profundidade lãzuda? Muitos criados devem certamente ter ficado atolados nesse pantanal de conforto e luxo, com alcatifa pelos joelhos. Alguns ter-se-ão mesmo afogado. Mas desses, dos fracos e pobres, não reza a História, madrasta de oprimidos.
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20 centímetros (aprox).
Espessura da carpete do Hotel Aviz, segundo Domingos Amaral
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À semelhança do que acontece em Verão Quente, em Enquanto Salazar… deparamos com uma visão Tupperware da sexualidade, com homens a refugiarem-se constantemente no interior das mulheres: “– Vem para dentro de mim” (p. 76); “quando entrei dentro dela” (p. 300); “decidi sair dentro dela” (p. 301); “à medida que ia crescendo dentro dela, vendo-a assim dominada […]” (p. 301).   
Emerge, de igual sorte, uma concepção singular do erotismo à luz da qual os homens e as mulheres, com maiores ou menores dificuldades, se acomodam mutuamente, quais peças de Lego: “caímos sobre a cama, enroscados uns nos outros” (p. 126); “o seu corpo encaixou-se no meu, como se fôssemos duas colheres numa gaveta de um faqueiro” (p. 149); “encaixámo-nos de novo, agora nus” (p. 150); “encaixámo-nos um no outro com suavidade” (p. 421).
Por sua vez, as línguas dos livros de Domingos Amaral andam a precisar da ajuda de um GPS. Sempre que se encontram em boca alheia parecem estar perdidas, buscando avidamente companhia e amparo: “as nossas línguas entregaram-se, sôfregas” (p. 126); “a sua língua à procura da minha” (p. 285); “deu-me um beijo na boca, procurando a minha língua com desejo” (p. 300); “senti a sua língua batalhar com a minha, entusiasmada” (p. 463).  
Octogenário, autodefinindo-se como “um velho caco com 85 anos”, Jack Gil faz o balanço da sua vida – e da relação com Mary, alcoólica. “Sei hoje que o meu egoísmo não a ajudou”, confessa, arrependido, na página 76. Porém, logo a seguir, de rajada: “Mas homens são homens e os problemas da alma dela que fossem para o diabo!” (p. 76). Homens são homens. Enquanto homens, precisam de mulheres. Com Anika, suceder-lhe-ia o mesmo: “[…] contribuí para o seu desequilíbrio daqueles dias? […] não tenho uma resposta. Não sou psiquiatra. Era apenas um homem […] e se ela queria que eu a fodesse até ao tutano, por mim tudo bem” (p. 424). Jack Gil Mascarenhas Deane, um gentleman. O essencial era haver mulheres. Em as havendo, e em elas querendo que as fodessem até ao tutano, “tudo bem”. Como confessa a Jack um antigo embarcadiço, “no porão não há mulheres, cada um esgalha o seu pau e, se não temos cuidado, ainda nos vão ao cú” (p. 331). “Saciei-lhe a fome da passarinha”, informa-nos um dos heróis desta história, referindo-se a uma mulher, na página 338, numa homenagem velada aos praticantes de birdwatching.     
“Grande é o teu rabo. Grande e bom”, diz Jack a Mary (p. 77). Excepção feita ao pojadouro e à alcatra, o rabo era inquestionavelmente a mais suculenta parte de Mary: “Mary não tinha seios grandes, eram pequenos. Rijos mas pequenos. O rabo é que era grande, redondo, bem desenhado. Gostava do rabo dela” (p. 89). Nós também. Luisinha, a portuguesita casta, “apanhou-me a mirar-lhe o rabo”, confidencia Jack, algo embaraçado, na página 163. Nada de grave. No final do romance, Jack já está a dar um beijo na boca a Luisinha, “um beijo profundo, apaixonado” (p. 463). Isto na plateia do cinema Politeama, na estreia de Casablanca, tendo de um lado a severa e gélida mãe de Luisinha, Dona Guilhermina, admiradora de Hitler e Mussolini, e, do outro lado, o pai, um general venerando, amigo de Salazar!   
Os diálogos são muito conseguidos, e de fino recorte. No Hotel Palácio, ao Estoril, Jack e Alice debatem uma questão científica: “os macacos, os gorilas e os orangotangos têm o pénis muito pequeno. Os homens não. Os homens têm o pénis grande!” (p. 232). Ao ouvir isto, Jack dá uma gargalhada. Em todo o caso, mais adiante Jack prossegue com Alice os seus debates em torno do reino animal: “– Adoro mulheres que uivam à noite. Como as lobas” (p. 246). Alice era um fenómeno da Natureza. Em si, ou no seu corpo, convergiam diversas catástrofes atmosféricas: “Era um vulcão, um tornado, uma tromba-d´água, um tremor de terra, um furacão” (p. 248). Em direitas contas, concluímos que Alice só não era um ciclone – nem uma personagem literariamente verosímil. Tendo em conta os devastadores efeitos do Furacão Alice, não admira que os hóspedes do hotel se queixassem. Jack resolve a coisa dando uma gorjeta de 20 escudos a um empregado. A calma regressa, e os diálogos adquirem um timbre pillow talk: “– Adoro que me toques na covinha do umbigo, aqui onde uma gota de água faz uma piscina, vês? – dizia Alice” (p. 249).
“– Estás pior do que uma barata, Jack Gil!”, afirma Michael, na página 281, frase que, convenhamos, deve ser difícil de utilizar na língua de Shakespeare: “– You’re worst than a cockroach, Jack Gyl!”, é a melhor tradução que poderemos oferecer. Parece-nos, por outro lado, que a expressão “dar com a boca no trombone”, na página 339, não deveria ser muito comum na Lisboa da década de quarenta.
“– Que monumento… Abençoadas entranhas que a criaram”, diz Michael para Jack, quando contemplam, extasiados, uma “belíssima mulher” (pp. 120-121). A mulher, a quem chamavam “o monumento” (p. 181), era Alice. Também conhecida por “a Devoradora de Nozes”, uma vez que apreciava apanhar nozes com a boca nos quartos dos homens, “de gatas, uma a uma, enquanto dá palmadas no rabo…” (p. 183). De manhã, os empregados dos hotéis de luxo da capital apanhavam as cascas nos quartos (p. 209). Portanto, toute Lisbonne conhecia esta inclinação da senhora. Agora como é que Alice, “bamboleante”, partia as nozes, disso é que não somos informados. Mas dizem-nos que era uma mulher “maior do que a vida” (p. 213). Traria consigo um quebra-nozes, partia as cascas com os dentes?
         No final vem a descobrir-se que Alice, “mulher de muito homem” (p. 261),  não devorava nozes, mas amêndoas. Estão em casa do pai de Jack, no Estoril (p. 286). A despensa paterna, em tempos de guerra e de racionamento, encontrava-se mal abastecida. Não havia nozes, uvas, nada. “– Pêssegos em calda? – perguntou Alice”. Nada. Jack faz duas contrapropostas, ambas bastante conserveiras: sardinhas e atum. Alice recusa, com veemência. De facto, para uma mulher andar de gatas num quarto, a dar palmadas nas suas próprias nádegas, impõe-se reconhecer que atum em óleo ou sardinhas de escabeche não serão propriamente dos alimentos mais atractivos. De repente, não mais que de repente, Alice dá “um gritinho”. Avistara na prateleira uma embalagem de “amêndoas de Páscoa”. E foi assim, com pascais amêndoas, que consumaram o acto. Na hora do adeus, o momento Bogart/Bergman desta historiazinha, com ela a entrar para dentro de um submarino estacionado no areal do Guincho, Alice despede-se: “– Adeus, Jack. Lembra-te de mim na Páscoa…” (p. 363). We will always have almond nuts.
         É foleiro. É tudo muito foleiro, sem dúvida. Mas se virem a descrição dos olhos de Anika… Eram “de um azul límpido, um azul mar das Caraíbas” (p. 373); “Admirei o azul mar das Caraíbas dos seus olhos” (p. 377); “Fitou-me com os seus olhos azuis, azul mar das Caraíbas” (p. 390); “aqueles olhos azuis, azul mar das Caraíbas, azul onde eu me perdi e me encontrei. Nunca mais vi nenhum azul assim” (p. 437). Caraças com o mar das Caraíbas! Uma figura de estilo foleira é para usar uma vez. Pois aqui existem quatro referências ao “azul mar das Caraíbas”. É demais, poças!
         A razão está na página 86 do livro: “Quando temos demasiados pensamentos eróticos, por vezes dá jeito pensar noutras coisas” (p. 80). A todos nós dava muito jeito que Domingos Amaral pensasse noutras coisas. Noutras coisas que não escrever livros – que, como se vê, são em tudo iguais uns aos outros. Mudam os ambientes históricos, mudam as personagens, mas o estilo é sempre o mesmo, sempre dominado por – como diríamos? – “demasiados pensamentos eróticos”.
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(Continua)


10 comentários:

  1. Não me fodam, esta merda foi mesmo traduzida para Polaco!!??

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  2. Claro em polaco "vem-te na minha boca" é "bhkkskdu uuyt oqwyu" e soa muito mais discreto.

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  3. Obrigado, há muito que não me ria tanto.
    A cena com a mãe e filha é um plágio bem descolorido da que vem na página 128/129 do "Opus Pistorium" Publicações Dom Quixote de 1985.
    Muito mal encadernado, lido três mil vezes está com as páginas todas soltas (como aliás as garotas do mesmo).
    Fazia muito bem a Amaral lê-lo.

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  4. Excelente exercício hermenêutico, a capacidade de se adaptar as modas e o mau gosto são certamente uma característica hereditária que a genética desconhecia. Subscrevo o desejo manifesto de vomitar. Obrigado pelo exercício fantastico de lucidez com que desmonta estas obras escatologicas.

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  5. Gabo a força e paciência do autor que teve de ler estes "coisos" (não lhe posso chamar livros), mas ainda bem que o fez, pois desde a última vez que revi "A Vida de Brian" que não me ria tanto.

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  6. Soberbo! E, de novo, certeiro.
    Espera-se a continuação.

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  7. Ainda estou com a boca em ó de tanto rir. O gajo é muita bom! Dêem-lhe mais gás!

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  8. Já começo a suspirar pelo próximo romance do Domingos Amaral!...

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  9. Nunca li nenhum livro dele, mas obrigada, fartei-me de rir!

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