segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Relance da alma japonesa.


 
 
 






                «apesar da vossa arte e o vosso artesanato me fascinarem, a forma através da qual os apreendo mantém-se inevitavelmente exterior: não nasci nem fui criado entre estas obras-primas; e, em relação a estes objectos de uso técnico ou doméstico, foi apenas já tarde que me foi dado conhecer o seu lugar na cultura e observar o seu manuseamento.» –– assim começou, com desarmante humildade, Claude Lévi-Strauss uma conferência em Quioto, publicada no livro A Outra Face da Lua. Escritos sobre o Japão.

         Este livro, mais uns quantos que vamos lendo – de Ruth Benedict ou Ian Buruma – permitem-nos uma aproximação cautelosa à alma japonesa;  na certeza de que, na sua essência, ela sempre será para nós misteriosa e imperscrutável. É nesse jogo entre proximidade e distância que reside o seu fascínio. Há muito de ocidental na manga, mas no Ocidente nada de existe comparável aos burakumin, uma casta impura. Os japoneses suicidam-se, como qualquer povo do mundo, menos do que na Gronelândia, onde uma em cada cinco pessoas já tentou matar-se pelo menos uma vez ao longo da sua vida. Mas no Japão há um lugar predilecto para os suicídios, a floresta de Aokigahara, no sopé do Monte Fuji. Todos os anos, cerca de 100 corpos são lá encontrados, como se mostra neste filme terrível, terrível.











         Os japoneses são capazes de tudo, da crueldade extrema à beleza mais paciente e pura. No MUDE – Museu do Design e da Moda, em Lisboa, está patente uma exposição extraordinária. Ou, melhor, duas exposições. Uma, dedicada ao boro, que literalmente significa «farrapo». Tecidos remendados e cerzidos, sendo o conjunto posteriormente tingido com índigo – uma técnica usada até meados do século XX. A par dela, outra exposição, Puras Formas/Naked Shapes. Objectos vários, feitos em alumínio. Um desenho simples e delicado, o toque suavíssimo. Superfícies polidas, à espera de enegrecerem pela usura do tempo, como Junichiro Tanizaki disse ser uma das características da alma japonesa, nesse livro deslumbrante que é Elogio da Sombra. Nos objectos de uso doméstico – secadores de cabelo, brinquedos, aspiradores do pó, material de escritório – que encontramos no MUDE não se notam ainda vestígios do negrume dos dias. O que achamos é, quando muito, uma «luz cansada», uma «claridade ténue», para usar palavras de Tanizaki. O fabrico destes produtos remonta aos alvores do século XX, mas o uso do alumínio intensificou-se após a 2ª Guerra. Alumínio recuperado das carcaças de aviões, ao início, e convertido em utensílios de extrema subtileza, em total contenção formal. Os designers são anónimos e os objectos de alumínio, ao que parece, não foram concebidos como peças de «arte». Foram pacientemente reunidos pelo designer industrial Seiji Onishi e pelo artista e galerista Keiichi Sumi. Agora, estão em exibição na Rua Augusta, em Lisboa. Apresse-se, termina a 8 de Fevereiro. Não é uma exposição, é um privilégio. 
 
António Araújo
 
 
 

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