No Centro
Cultural de Cascais, até dia 19, está aberta ao público (excepto segunda-feira)
uma exposição pequenina. Cabe toda ela numa sala, mas, como nos contos de crianças,
nela há muito que contar. Cartas de Norman McLaren, desenhos originais de Zlatko
Grgic ou Bruno Bosetto, vários livros preciosos. Bilhetes de identidade, cédulas profissionais, cartões da Escola Machado de Castro, da Sociedade Portuguesa de Naturologia e, suma delícia, do Clube de Campismo de Lisboa. É extraordinário – até comovente
– ver como a riqueza de uma vida inteira cabe toda ali. Nunca o conheci, mas
naquela salinha escura confirmei uma impressão que tinha, de memória doce: Vasco Granja era um homem generoso e bom. Sei
que há vozes que dizem que martirizou várias infâncias com sobredoses soporíferas de
filmes búlgaros. Não é verdade.Vasco Granja não foi isso – foi
muito mais do que isso. Foi um homem que aos 16 anos de idade já trabalhava ao
balcão nos Grandes Armazéns do Chiado. Depois, esteve na Foto Áurea, na Casa
Travassos, na Editorial Arcádia, na Bertrand, tendo trabalhado nesta editora durante muitos e muitos
anos (mais precisamente, de 1961 até se reformar, em 1990). Todos os que lemos
banda desenhada publicada pela Bertrand devíamos estar mais cientes do que lhe devemos.
A meio da exposição, um artigo de jornal, visado pela Censura. Título: «Em
louvor de Mafalda». Todos os que lemos os livros da Mafalda e do Quino devíamos
estar mais cientes do que lhe devemos (e, claro, às Publicações Dom Quixote e à sua fundadora).
Em 1954, Vasco Granja foi
detido pela PIDE por ter exibido o filme neo-realista italiano O Caminho da Esperança, de Pietro Germi.
Esteve seis meses preso no Aljube, o tempo máximo permitido por lei sem
julgamento nem acusação. Em 1963, quando já havia aderido ao PCP, foi novamente detido pela polícia política.
Interrogado na PIDE, é transferido para o Aljube e depois para Caxias, onde
aguarda julgamento. A sentença aplica-lhe 18 meses de prisão, que cumprirá em
Peniche, onde lê, escreve, pensa e ensina rudimentos de francês aos seus companheiros de cadeia. Uma carta para a família, escrita nessa altura, toca-nos fundo, muito. O seu interesse pelo cinema remonta aos tempos de juventude: em 1944,
com 18 anos, integrava já a equipa do filme A
Noiva do Brasil, do realizador Santos Mendes. No folheto-jornal que
acompanha a exposição há independência suficiente para dizer que esta obra
cinematográfica foi, e cito, «arrasada pela crítica». Gostava um dia de ver o filme,
mas a única cópia que existia desapareceu num incêndio. É pena. Cineclubista,
começou a interessar-se pelo cinema de animação, creio que logo no início dos anos
60, ou talvez um pouco antes. A ida às Terceiras Jornadas de Animação, em Annecy, França, em 1960, terá
sido o momento de viragem. Foi a primeira vez que Vasco Granja saiu do seu
país. A essa viagem outras se seguiram, e assim se fez uma vida dedicada a uma
arte, que não é menor nem só para menores.
Após o 25 de
Abril, entraria na RTP, onde permaneceu desde Junho de 1974 até 1990. É muito ano
seguido a dar animação à malta. Gerações inteiras
cresceram a vê-lo no pequeno écran, de voz aflautada e cândida, um sorrir lunático.
Ninguém se esquece de Vasco Granja porque, e perdoem-me o lugar-comum, todos
crescemos com ele, e ele connosco. Na exposição passa um filme, ou reportagem
filmada, que mostra Vasco Granja em todo o esplendor da sua simplicidade,
saindo de casa para passear o cão.
No fim da
linha, outro episódio comovente. A 5 de Maio de 2009, aos 83 anos, Vasco Granja
morreu em Cascais, fruto de complicações respiratórias. Poucas horas antes,
estivera a ler com a filha um poema de Vinicius de Moraes e a folhear um
exemplar da revista infantil Tic-Tac. Quando
era criança, vivendo no Príncipe Real,
os pais, apesar das poucas posses, compravam-lhe o Tic-Tac,
entre outras revistas com histórias aos quadradinhos, como O ABC-zinho ou O Senhor
Doutor. No dia da sua morte, Vasco Granja folheou uma revista que
certamente lera em criança. Depois… koniec.
O
mundo seria melhor se nele houvesse mais pessoas como Vasco Granja, o Sr. Koniec da
nossa infância feliz. Num tempo em que havia tempo. E em que, por bendita graça, o
diabo à solta não inventara ainda os reality-shows.
António Araújo
Concordo, mas é Pietro Germi não?
ResponderEliminarJá corrigi, obrigado!
EliminarCordialmente,
António Araújo
Um grande aplauso pelo texto, um ainda maior agradecimento pela homenagem a uma pessoa a quem devemos tanto, desde logo por ter contribuído para tornar muitas infâncias (na qual incluo a minha) mais felizes - e mais animadas. E isso ninguém nos tira.
ResponderEliminarVasco Granja não fez parte da minha infância, mas era uma figura agradável e acabei de ler que um Homem . Porém, vi alguns dos desenhos animados de que fala, talvez búlgaros; achei engraçado. Eram muito diferentes dos que então se usavam.
ResponderEliminarParecia-me uma pessoa cândida. E era tanto mais.
António - Conheci o Vasco Granja quando trabalhei com o Eduardo Prado Coelho enquanto Director Geral da Acção Cultural. O Eduardo reuniu um grupo muito interessante de colaboradores no Palácio Foz e foram tempos inesquecíveis. O Vasco Granja era um colega muito simpático para com uma jovem que passava por ser de direita em inícios de 1976. Os outros colegas do PCP não eram para comigo nada afáveis... A minha filha mais velha fartava-se de vê-lo na TV (é da sua geração, António)
ResponderEliminarObrigado, Teresa.
EliminarCom amizade,
António
Um grande bem haja ao caríssimo A. Araújo pelo enaltecimento de boa memória ao Vasco Granja. É precisamente assim que o recordo!! Cresci com ele desde que me lembro de mim. Desde que me lembro de mim e da televisão, que nem sei de qual me lembro primeiro, de memória! A preto e branco, primeiro, e a cores, depois! O Vasco Granja era o Sr. dos desenhos animados. De todos os desenhos animados, ainda que o não fosse!! Recordo-me com gosto, saudade e melancolia, do Vasco Granja, de mim e da minha televisão!!
ResponderEliminarEmbora a ideologia política (seja lá o que isso for...) nos separasse, sempre gostei de o ver e o que mostrava.
ResponderEliminarGostei muito dos KONIECS e dos cartoons americanos que mostrava.
Tinha bom gosto, amabilidade, afabilidade - e sabia falar à fantasia dos jovens.
Jovem da fantasia, aliás, que sempre foi.
Para nosso bem.
Agradeço muito todos os simpáticos comentários.
EliminarCordialmente,
António Araújo