quinta-feira, 23 de abril de 2015




impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 


     # 22 - CHARLIE PARKER

 

 


 
Sobre Charlie Parker se puseram de acordo deuses e demónios, infundindo-lhe dons e danações em igual proporção.
Charlie Parker, alcunhado de Bird ou Yardbird numa digressão: o carro em que seguia atropelou uma galinha e ele recolheu a ave moribunda afim de jantá-la – em tradução factual, melhor do que literal, diga-se portanto Bird como quem diz “pilha-galinhas”. Stanley Crouch, um dos seus mais lúcidos biógrafos, sintetiza: “Parker era ao mesmo tempo a aristocracia e a ralé. O soberano criador de uma vital e empolgante estrutura vernacular do jazz e um homem anárquico, de apetites nefastos.” Diz-se dele que era capaz de entreter uma conversa erudita sobre Hindemith, que solfejava de cor, como de terminá-la mendigando dinheiro para comprar droga. Miles Davis, também é sumário e, como de costume, pouco macio: “Era um músico genial, mas foi também o dos mais degradantes e egoístas motherfuckers que viveu neste mundo.” Ao que passa a expor como esteve dias impedido de actuar, quando Parker confiscou o seu único fato, que lhe ficava ridiculamente curto, depois de ter metido a roupa no prego para satisfazer a exigência do vezo. Cliente fiel e de crédito, a ponto de os acordes de abertura de “Parker’s Mood” serem o santo e a senha entre os dealers de Los Angeles. A meteórica e truculenta vida de Bird, vulnerável a todos os ingredientes da tragédia, convida os corações caritativos ao melodrama e à vitimização.
Todavia é difícil inscrever Charlie Parker no habitual martirológio do artista maldito que, desde o “caso Van Gogh”, corrobora a moralidade anti-institucional. Tendo sido um rifte a quebrar o jazz em dois continentes, o anterior e o posterior ao conciso intervalo de 34 anos da sua existência, reconhecimento e consagração abonaram-no ainda em vida. Amizades, apoios, afeições não lhe faltaram, mesmo nos piores transes e, no seu apogeu, sobrou-lhe o aplauso do público e da crítica, rendidos após os anos iniciais de estupefacção.
Referir o génio em relação a Charlie Parker é relativo. Aos 16 anos, os primeiros toques que deu comprovaram-no como um saxofonista inepto. Mas em Dezembro de 1939, acabava Hitler de exarar o preâmbulo do fim da Europa com a aniquilação da Polónia, e no outro lado do atlântico Bird era acometido por uma epifania durante a interpretação do tema “Cherokee”: se usasse como linha melódica os intervalos mais altos de um acorde, conseguia extrair do saxofone a sonoridade que tinha na cabeça. Esta técnica propiciava-lhe também imprimir ao instrumento de sopro a velocidade que Art Tatum soltava no piano.
Os três anos seguintes Parker despendeu-os a pesquisar e a refinar o vislumbre, importunando toda a gente que com ele tocava com os seus acordes bizarros – o bebop. Esta insólita espécie de jazz que hoje é uma evidência, tecida por uma turma de audazes onde pontificava Bird, se a conseguirmos apreciar com os ouvidos dos GI que em 1945 regressavam a casa, sequiosos de normalidade e de sexo, ou seja, dos românticos coitos no banco de trás do automóvel depois de um excitante pé de swing, o que ouviremos é uma música abissal e desestabilizadora. Porque fidelíssimo ao espirito do seu tempo, o bebop espelhava, precisamente, uma sinceridade emocional que boa parte da América pós-guerra – e pré-guerra da Coreia, mais da subsequente Fria – desejava sublimar.
Resultou do obstinado tirocínio que aos 25 anos Bird extasiava o mundo com o seu virtuosismo. Talento? Obviamente inato; trabalho? Intensivo e obsessivo. Ou seja, nunca foi tão certa a sentença de que o génio é 1% inspiração e 99% transpiração.
Charlie Parker arrecadaria os benefícios da veneração ou da compaixão, se a eles se tivesse prestado. Em 1949, por exemplo, inaugurou-se o Birdland – nem antes, nem depois, na história do jazz voltaria um clube a vincular-se nominalmente a um músico. Quiseram explorar a sua fama? Também… Mas Parker mostrou-se sempre tão adverso à pontualidade e à assiduidade, de tal modo intratável e abusivo que inviabilizou a sua contratação regular. Se foi vítima daquilo que se costuma designar por “sistema”, não o terá sido menos da sua tibiez ou do seu livre arbítrio. O fatalista, porém, encontrará nele o perfeito exemplo para afirmar que sem a pulsão autodestrutiva não há como inflamar a urgência criativa.
A discografia coeva de Charlie Parker é um pouco desligada. Naquela época o LP ainda não tinha a força de um conceito, no melhor dos casos seria um agregado de composições alinhadas como nos concertos. Juntem-se ao descuido editorial as idiossincrasias do saxofonista a quem tanto se lhe dava a gravação em estúdio; dinheiro ganhava-o com os gigs na rua 52 ou “na estrada”; os discos valiam pela remuneração adicional, equivalente às horas extraordinárias de um empregado, vexada pelos misteriosos meandros dos direitos autorais, cujo pagamento era fatal que desiludia. Mesmo assim entre 1945 e 48 prodigalizou 13 audições para a Savoy e a Dial, mais outras 20 na Verve, entre 1948 e 54.
Fosse Bird menos buliçoso e teria encarado tais sessões como perfunctórias, mas como não sabia tocar sem fabricar novos recortes melódicos, ocupou as salas insonorizadas como se fossem uma oficina de risco criativo, inventando, experimentando e calibrando as composições. Nunca duas vezes Bird se repetiu – isto ouve-se nas gravações.
 


 
Charlie Parker, Jazz at Massey Hall
1953 (2009)
Jazz Track - #957
 
Charlie Parker (saxofone alto), Dizzy Gillespie (trompete), Bud Powell (piano), Charles Mingus (contrabaixo), Max Roach (bateria)
 
 
As colectâneas “The complete Savoy and Dial studio recordings 1944-1948” (8 CDs e 531 minutos de comprimento) e “Bird – The Complete Charlie Parker on Verve” (10 CDs, 619 minutos) valem todas as abstinências que se fizerem para adquiri-las, havendo amor para tamanho compromisso – seis mesitos sem os 10 cigarros diários… Nestes volumes está tudo o que aconteceu em estúdio. Na primeira jornada, no dia 26 de Novembro de 1946, é quase palpável a estranheza e o noviciado dos músicos em torno de “Ko-ko”, repetindo takes daquele que, provavelmente, terá sido o tema sine qua non do bebop. A sessão de 29 de Julho de 1946, ocorrida em Los Angeles é pungente; mortificado pela ressaca, Parker acaba por render uma dolorosa versão de “Lover Man” (acusaria mais tarde o produtor de inconfidência, por tê-la editado). Disco a disco, mais do que escutar, nestas colecções revive-se a música de Bird como um organismo que eclode no próprio acto da sua criação.
Mas há maneira de usufruir a arte de Charlie Parker sem perigo de insolvência. Várias vozes designam a actuação no Massey Hall de Toronto, na noite de 15 de Maio de 1953 como o concerto do século. A abundância de pormenores e anedotas acerca do evento prestou-se a que lhe fosse dedicado um livro: “Quintet of the year” de Geoffrey Haydon. Chovia a cântaros e a televisão transmitia em directo um combate de boxe com o implacável Rocky Marciano (agarrados à pantalha, Bird e Gillespie retardaram bastante a subida ao palco), de modo que dos 2.500 lugares da sala só 700 estavam ocupados. Foi Charles Mingus, com um gravador portátil, quem registou a função e, foi a sua editora, a minúscula Debut, que prensou a primeira edição. Detalhe faceto: para não melindrar direitos contratuais, na capa do LP chapa-se um tal de Charlie “Chan” no saxofone alto (das várias edições subsequentes, esta será a mais escrupulosa).
Assim sucedeu que num ambiente espectral e tépido, cinco deuses do jazz, na vez única em que todos se juntaram, cada qual no expoente do seu elã, se entenderam entre si como num simpósio no Olimpo, tornando inequívoca a revolução do bebop. Se existir esse fenómeno da perfeição, ele terá descido à terra naquela noite.
 
 
José Navarro de Andrade
 

4 comentários:

  1. Mais um excelente texto que torna uma leiga numa aprendiz curiosa. Parabéns!!

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  2. Este Bird, bem na realidade este toda a gente conhece.
    Por isso vou publicar lá para a noitinha a BSO que todos conhecemos.
    Até logo.

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  3. Mis um texto de antologia.Muito bom.Lembro o filme que sobre ele fez o Clint-Bird.Sobre este Charlie pode ser dito que quase todos o conhecem e "quase ninguém" o ouviu.Todos o adoram e poucos o deixariam aproximar-se da familia.Todos o lembram e quase todos não o quereriam de volta.O inicio do seu texto é esclarecedor.

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