A construção jurídica da democracia
portuguesa: o II Pacto MFA/Partidos
(Entrevista com Miguel Galvão Teles)
Enquadramento
António Araújo (AA) – Antes de
mais, pedia-lhe que nos desse um breve enquadramento histórico da génese do II
Pacto MFA/Partidos.
Miguel Galvão Teles (MGT) – O Pacto
tem a sua génese remota em dois conflitos surgidos no decurso do processo
revolucionário português. O primeiro conflito que caracteriza o processo
revolucionário é um conflito entre a Junta de Salvação Nacional, por um lado, e
o Movimento das Forças Armadas (MFA) e a sua Comissão Coordenadora, por outro.
Era essencialmente um conflito político, que se traduziu juridicamente na
disputa sobre o alcance do mandato conferido à Junta pelo MFA, o qual constava
da Lei nº 3/74: se era um mandato irreversível, como queria o general Spínola,
ou se era um mandato que atribuía uma autoridade última ao MFA, o qual a exerceu no 28 de Setembro, quando retirou a confiança
ao general Spínola e a mais três membros da Junta.
A partir daí, a partir do 28 de
Setembro de 1974 e até ao 25 de Novembro de 1975, o conflito passa a ser outro.
Para além da luta entre várias facções, o conflito, se quisermos interpretá-lo
de alguma sorte do ponto de vista político-jurídico, passa a ser essencialmente
um conflito entre duas concepções da legitimidade revolucionária, uma vez que a
legitimidade que se exercia era uma legitimidade revolucionária, uma
legitimidade que decorria da revolução.
Existia uma concepção que via a
legitimidade revolucionária como instrumental e transitória: era uma
legitimidade para instaurar o sistema democrático e para restituir a voz aos
portugueses; para remeter a decisão para o eleitorado, basicamente através da
eleição da Assembleia Constituinte. E existia uma concepção de legitimidade
revolucionária, que correspondia à legitimidade para fazer a revolução e
relativamente à qual os processos democráticos poderiam aparecer como
obstáculos. Esta questão colocou-se muito vivamente sobretudo a partir do 11 de
Março de 1975. Nessa altura, o compromisso que se encontrou foi o de fazer uma
primeira plataforma de acordo constitucional entre o Conselho da Revolução ou,
melhor, entre o MFA representado pelo Conselho da Revolução (órgão que havia
sido criado justamente a seguir ao 11 de Março) e os principais partidos
políticos. Essa plataforma visava o conteúdo da futura Constituição, uma
Constituição duplamente dualista, meio militar, meio civil, com estruturas democráticas
e estruturas baseadas na legitimidade revolucionária.
A luta vai-se agravar fortemente
depois das eleições para a Assembleia Constituinte. Os resultados das eleições
para a Constituinte, em 25 de Abril de 1975, vieram oferecer àqueles que tinham
uma concepção transitória e instrumental da legitimidade revolucionária o
reforço advindo da legitimidade democrática. Mas tinha ficado entendido que a
Constituinte só elaboraria a Constituição, não se podendo pronunciar sobre mais
nada, e que a composição dos órgãos políticos não dependeria dos resultados
eleitorais. Isto criou uma situação gravíssima de desajustamento entre a
distribuição das forças políticas representadas na Constituinte e a composição
efectiva dos órgãos de poder – o que, no período que decorre entre 25 de Abril
de 1975 e 25 de Novembro desse ano, levou Portugal, este pequeno país,
verdadeiramente à beira da guerra civil. Por variadas vezes se contaram as
espingardas, sobretudo no chamado “Verão Quente” de 1975. O 11 de Março tinha trazido
um predomínio da esquerda militar, ligada ao Partido Comunista Português. Ora,
após os resultados da eleição para a Constituinte, a correlação de forças
pendeu para os chamados “moderados” do MFA, mais conhecidos pelos “Nove” –
porque em Agosto de 1975 produziram um documento que ficou conhecido como
“Documento dos Nove” e que foi, como sempre, redigido por Melo Antunes – um
homem de uma importância decisiva em todo este processo, como hoje começa a
reconhecer-se. O documento era basicamente um manifesto antitotalitarista. Se
hoje o lermos, verificamos que, em geral, era um documento muito à esquerda,
mas naquela altura era a travagem, era a defesa da democracia pluralista
possível contra as teorias vanguardistas. Há depois uma série de acontecimentos,
dos quais os mais importantes se situam no princípio de Setembro, após o
“Documento dos Nove”. Os membros do Conselho da Revolução que faziam parte dos
“Nove” foram suspensos, por decisão do Directório do Conselho, ilegal.
Seguiu-se o chamado “pronunciamento de Tancos”, quando os “Nove” forçaram a
reunião das assembleias dos ramos do MFA e na Força Aérea e no Exército
substituíram os membros que não lhes eram afectos. Isso foi feito, excepto na
Marinha, onde os “Nove” perderam a votação. Mas acabaram por conseguir mudar a
composição do Conselho da Revolução através deste chamado “pronunciamento” –
que não era pronunciamento nenhum, era simplesmente a reunião das assembleias
dos ramos para designar ou para substituir os membros do Conselho da Revolução.
Isto levou, designadamente, a que o Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves deixasse
de ser membro do Conselho da Revolução. A partir daí, as coisas aceleraram. O
Partido Comunista faz um jogo muito perigoso na altura – isto hoje já se pode
dizer –, fez uma tentativa de aproximação à extrema-esquerda. Há uma tentativa
de o Partido Comunista de fazer uma aliança com a extrema-esquerda através dos
SUV [“Soldados Unidos Vencerão”]. Gerou-se uma situação de tensão enorme. Houve
depois o cerco da Constituinte em princípios de Novembro, há a greve do Governo
(o Primeiro-Ministro alegar não ter condições para trabalhar deve ser um facto
único na História!).
Entretanto, tinham ocorrido duas coisas: no
início da crise, o Partido Socialista tinha saído do IV Governo Provisório em
Julho, o Partido Popular Democrático acompanhara depois. Forma-se o V Governo,
em desespero, ligado à esquerda militar, com o Partido Comunista e alguns
independentes mais à esquerda. Mas a seguir a Tancos o V Governo é substituído
pelo VI Governo, presidido pelo almirante Pinheiro de Azevedo, onde os “Nove” e
o Partido Socialista tinham o predomínio. A partir daí, certas forças populares
– um pouco, digamos, de forma caótica – não deixam o Governo governar e, facto
único na História, o Governo declara greve. Há uma questão crítica final: os
“Nove” vão substituindo os comandantes das regiões militares por gente da sua
confiança e há um momento decisivo em que Otelo Saraiva de Carvalho é
substituído por Vasco Lourenço no Comando Militar de Lisboa – e é isso, no
fundo, que gera a tensão de finais de Novembro, gera o movimentos dos sargentos
pára-quedistas para o qual os “Nove” estavam preparados e ao qual reagiram no
25 de Novembro.
O 25 de Novembro politicamente
representa, digamos assim, a vitória dos “Nove” e do Partido Socialista,
representa, se quiserem, a vitória jurídico-política da concepção da
legitimidade transitória. O Partido Comunista recuou durante o próprio dia 25
de Novembro e as forças de extrema-esquerda ficaram liquidadas no aparelho militar,
sobretudo o seu grande instrumento que era o COPCON [Comando Operacional do
Continente]. Avançou-se depois calmamente, melhor, com relativa calma, para que
a Constituinte acabasse o seu trabalho. Isso já é outra fase, uma fase,
digamos, muito pouco revolucionária, que correspondia a elaborar uma
Constituição que recolhesse o saldo final da revolução.
Um dos pontos críticos que se pôs a
seguir ao 25 de Novembro era a de saber o que fazer ao Pacto MFA/Partidos. O 25
de Novembro aconteceu pouco antes de se começar a discutir a matéria da
organização do poder político na Constituinte. Tinha havido declarações que
pediam a pura e simples abolição do Pacto. Os principais partidos – o Partido
Socialista e o Partido Popular Democrático ([1]) –
pedem na Constituinte em princípios de Dezembro uma revisão do Pacto. O
Conselho da Revolução, já com nova composição, já muito remodelado, aceita. A
questão que se coloca agora é o que fazer ao Pacto celebrado: o Conselho da
Revolução aceita renegociá-lo, e pede aos partidos que até 30 de Dezembro lhe
mandem propostas. Os partidos enviam as suas propostas e o Conselho da
Revolução, por meados de Janeiro, apresenta uma contraproposta em cuja
elaboração tive interferência. Há depois umas negociações que não segui
directamente e a 26 de Fevereiro de 1976 dá-se a assinatura do II Pacto
MFA/Partidos, que desenhou em boa medida a estrutura orgânica da Constituição
de 1976 e o sistema de fiscalização da constitucionalidade.
O II
Pacto MFA/Partidos: uma visão global
AA – Feito este enquadramento,
gostaria agora, antes de mais, de fazer uma pergunta de índole genérica. A mais
de vinte anos de distância, qual é para si o significado do II Pacto?
MGT – Eu tenho algumas coisas na vida
que recordo com gosto... Fiz muitas asneiras, mas algumas coisas que me saíram
bem e penso que o II Pacto MFA/Partidos saiu muito bem. Penso que saiu muito
bem, realmente... Naturalmente houve uns pequenos sobressaltos, mas funcionou
bem, deu-nos um quadro de relação entre várias instâncias do poder militar e do
poder democrático que permitiu uma passagem para o futuro que teve sucesso.
Poderia ter funcionado mal, mas funcionou bem. Também houve condições externas
– que não se sabia na altura em que ele foi pensado se se verificariam ou não –
que favoreceram, basicamente uma. De resto, acho que o II Pacto funcionou bem.
AA – Mas quem é que tomou
verdadeiramente a iniciativa do Pacto? Foram os partidos que na Constituinte
reclamaram a sua revisão ou foi o Conselho da Revolução que em Dezembro de 1975
pediu aos partidos que apresentassem propostas de alteração?
MGT – Aqui funciono muito por
reminiscências, até porque não sou bom arquivista... Mas tenho ideia de que há
um documento e não referi isso no meu artigo ([2]),
tenho a noção de que há uma declaração do Conselho da Revolução a fazer apelo à
negociação com os partidos ([3]).
É claro que a seguir ao 25 de Novembro houve substituições no Conselho da
Revolução, feitas pelo próprio Conselho, que afastou os membros que estavam
ligados à facção derrotada no 25 de Novembro. Aí, a facção derrotada só ficou
representada por um membro, cuidadosamente escolhido, que foi o comandante
Martins Guerreiro. Mas a facção agora dominante no Conselho da Revolução não
queria o I Pacto.
AA – Mas, na elaboração das propostas
iniciais dos partidos, existiram alguns contactos exploratórios com membros do
Conselho da Revolução?
MGT – Não sei, não sei.
AA – Acha que os partidos se
certificaram previamente até onde podiam ir?
MGT – Não sei, não sei.
AA – Mas o Conselho, de certo modo,
colocou-se na posição mais confortável, porque no fundo recebia as propostas
dos partidos, não tinha de avançar nada...
MGT – Estava. Mas é difícil
responder. Há coisas que eu não sei por uma razão muito simples: um dia, Melo
Antunes, que eu não conhecia pessoalmente até aquela altura, telefonou-me a
pedir para falar comigo e pediu-me para eu dar uma ajuda, perguntou-me se me
importava de dar uma ajuda na preparação da reforma do Pacto. A ideia que tenho
é que isso foi já depois de terem sido pedidas as propostas aos partidos, mas
ainda antes de estes as enviarem ao Conselho.
AA – Entretanto, na altura, outros
juristas iam trabalhando do lado dos partidos: o doutor José Manuel Cardoso da
Costa, por exemplo, que participou na elaboração da proposta do Partido Popular
Democrata.
MGT – Sim, ele “confessou-me” isso ([4]).
Quem foi afastado do processo foi Jorge Miranda. Aquilo das relações com Sá
Carneiro eram sempre “coisas” variáveis... Quanto a mim, ainda hoje não sei
quem é que indicou o meu nome a Melo Antunes. Mais tarde, tornei-me um grande
amigo de Melo Antunes, a cuja memória presto aqui homenagem. Não o conhecia,
soube que passava aqui na Faculdade sem estar inscrito, vinha assistir às
minhas aulas de vez em quando, antes do 25 de Abril, na altura da guerra
colonial, eu ensinava aqui Direito Constitucional. Mas não sei quem é que me
indicou a Melo Antunes. Foi com certeza uma de duas pessoas, porque só podia
ser uma delas: ou foi o actual Presidente da República, Jorge Sampaio, ou foi o
meu primo José Manuel [Galvão Teles] ou foram ambos, não sei. Melo Antunes já
conhecia nessa altura o Luís Nunes de Almeida, que viria a trabalhar comigo ([5]).
Mas eu nunca falei sobre o processo político com Melo Antunes, nunca falei com
Eanes – que não conhecia na altura –, nunca falei com Vítor Crespo. Aliás,
também pode ter sido Vítor Crespo que me indicou a Melo Antunes, pois eu tinha
trabalhado com ele em Setembro/Outubro de 1975. Portanto – e isso explica muito
da minha ignorância em relação a certos factos –, a minha relação era
exclusivamente com Melo Antunes, começou aí, Melo Antunes era uma pessoa
reservadíssima, era uma pessoa que falava o menos possível; do que estava para
além de nós só dizia o estritamente indispensável para trabalharmos. Por
conseguinte, o que se passava de Melo Antunes para lá eu sei pouco, sei algumas
coisas que me foram contadas depois pelo general Eanes, mas sei pouco. Melo
Antunes dizia mais ou menos como as coisas iam evoluindo para nós ajustarmos o
papel, mas não mais do que isso.
AA – Em Abril de 1996, houve aqui um
colóquio na Faculdade de Direito em que o Senhor Doutor participou e que esteve
na base do texto que acabou por publicar sobre o II Pacto. A dada altura, o
Professor Jorge Miranda colocou-lhe uma dúvida sobre qual teria sido a fonte
inspiradora da inconstitucionalidade por omissão que, no fundo, demonstrou que
o Professor Jorge Miranda teve uma intervenção muito escassa nesta fase.
MGT – Percebe-se que quem conduziu as
coisas pelo PPD na altura foi Barbosa de Melo e – e sabe-se isso por
“confissão” do próprio feita depois – com apoio de Cardoso da Costa na parte
relativa à fiscalização da constitucionalidade.
AA – E a “comissão” integrada pelo
Senhor Doutor e por Luís Nunes de Almeida recorreu a outros juristas para
apoiarem o Conselho da Revolução?
MGT – Não, não havia mais ninguém.
Éramos só eu e ele.
AA – E actuavam com total liberdade
ou recebiam algumas directrizes do Conselho da Revolução?
MGT – Íamos conversando, entre nós,
não era preciso termos directrizes. Íamos conversando, ajustando. Houve duas
outras pessoas que intervieram. Uma, foi o Luís Filipe Castro Mendes – tinha sido meu aluno e é sobrinho de um grande professor desta Casa,
João Castro Mendes, já falecido – que era na altura, salvo erro, secretário de Melo Antunes
como Ministro dos Negócios Estrangeiros. Portanto, Castro Mendes ajudava e
secretariava, de certa maneira. E a outra pessoa era o César Oliveira, que não
tinha nenhumas funções, mas ia aparecendo... Nós reuníamo-nos normalmente numa
casa em Entrecampos, uma casa pequenina que Melo Antunes tinha, modesta, e
César Oliveira, que era muito amigo de Melo Antunes (foi-o sempre, de todos os
tempos), aparecia lá e, claro, não era excluído das conversas.
O
conteúdo do II Pacto
AA – Ao
falarmos do conteúdo do II Pacto, temos de ver primeiro o que acabou por não
ser incluído. Refiro-me em especial ao preâmbulo elaborado por Melo Antunes,
que foi rejeitado liminarmente pelos partidos. Porque é que o preâmbulo
suscitou uma reacção tão negativa?
MGT – Penso que
a reacção foi essencialmente do Dr. Sá Carneiro. Desde logo, porque este queria
cortar qualquer referência a ideologia, suponho eu, e o preâmbulo tinha um
traço ideológico acentuado. Enquanto o I Pacto tinha normas materiais, digamos
assim, o II Pacto era puramente orgânico. Quanto ao preâmbulo, Melo Antunes só
muito no fim é que falou da intenção de o fazer. Nas conversas com ele, só
perto do final é que surge a ideia do preâmbulo. Penso que uma das coisas que
poderá ter dificultado a aceitação do preâmbulo é justamente o facto de este só
ter aparecido no fim: os textos que foram sendo vistos, que foram sendo
discutidos, não tinham qualquer preâmbulo. Portanto, o preâmbulo não estava
inserido desde a origem, foi um acrescento em relação ao qual os partidos
podiam dizer que foram surpreendidos. Penso que, dos dirigentes dos principais
partidos, a pessoa menos favorável à elaboração de uma segunda plataforma era
Sá Carneiro. No PS, Sottomayor Cardia, se bem me recordo, também não era
favorável...
AA – Não, até
tinha sido um dos deputados que primeiro pediu a renegociação do I Pacto ([6]).
MGT – Sim, mas
depois já estava um pouco na ideia “não há pacto nenhum, a Constituinte faz o
que quiser”... Porém, o Dr. Sá Carneiro era o mais desfavorável a um segundo
Pacto. Aliás, na primeira proposta do PPD dizia-se que não deveria haver pacto,
mas, a haver, aproveitava-se para afinar umas coisas. Julgo que a rejeição do
preâmbulo foi para tirar o traço ideológico ao Pacto, mas também para o
degradar um bocadinho a puro instrumento orgânico.
AA – Há tempos,
conversando com Luís Nunes de Almeida, este confessou-me que uma das coisas que
mais o espantou em todo o processo foi o alheamento quer político quer
técnico-jurídico do Partido Socialista em relação ao Pacto. Isto é, o Partido
Popular Democrático apresentou uma proposta com qualidade, apoiada em grandes
juristas, e o PS como que se alheou. Porquê?
MGT – Nunca
percebi. Os textos do PS eram fracos. Mas, entre os papéis que não encontro, há
um texto dos socialistas que é melhor. É um comentário à contra-proposta do
Conselho da Revolução... Aqui há uma divergência de reminiscências: no artigo
que escrevi referi a reminiscência de Luís Nunes de Almeida ([7]).
A minha reminiscência era que se tratava do nosso texto emendado à mão, a letra
vermelha, com a ortografia do Dr. Mário Soares. Mas Nunes de Almeida garante
que era do Dr. Salgado Zenha.
AA – Já me garantiu isso,
também.
MGT – E eu confio mais na memória
dele. A primeira proposta do Partido Socialista é muito fraca. Não percebo
porque é que o Partido Socialista se alheou, talvez por que confiasse nos
“Nove”, não sei, ou porque estava interessado noutras coisas... Houve uma
oposição firmíssima – isso, sim, e do Partido Socialista – ao veto absoluto por
inconstitucionalidade, parece-me que vem do Dr. Soares.
AA – Sim,
revela faro político para as consequências do veto...
MGT – É faro político, claro: “se
houver veto absoluto, o Conselho da Revolução pode chumbar os diplomas todos e
não se pode governar”. Foi o ponto mais forte da oposição do Partido
Socialista, que acabou por aceitar apenas o veto suspensivo por
inconstitucionalidade. Para um jurista como Barbosa de Melo, que era quem
conduzia as coisas pelo PPD, fazia sentido o veto absoluto por inconstitucionalidade,
caso a Comissão Constitucional e o Conselho da Revolução declarassem que uma
norma era inconstitucional. Para um político como o Dr. Soares isso era dar um
poder enorme ao Conselho da Revolução. Havia um outro ponto que levantou a
oposição de três partidos (PS, PPD e CDS), que era um ponto um bocadinho
exagerado: tratava-se da substituição do Conselho da Revolução à Assembleia da
República ou ao Governo nos casos de inconstitucionalidade por omissão, mas
isso era provocatório...
AA – Para subir
a parada...
MGT – Era,
exactamente. A proposta do Conselho da Revolução era que, verificada que
estivesse uma violação da Constituição por omissão, o Conselho recomendaria à
Assembleia da República ou ao Governo, conforme o caso, que fizesse o
respectivo diploma legislativo. E, depois – eu não sei se essa ideia foi minha,
de Melo Antunes ou do Nunes de Almeida –, se no prazo que fosse fixado não
fosse emitida a lei, o Conselho da Revolução poderia fazê-la...
AA – Era
demais...
MGT – Sim, era
demais. Mas o veto absoluto também era demais...
AA – Contudo, a
questão que mais preocupa os autores que, há distância, se debruçaram sobre a
génese do sistema de governo português – lembro-me, por exemplo, de Horst
Bahro, da Universidade de Colónia ([8]) –
é a eleição do Presidente por sufrágio directo. Em que altura, ao certo, é que
se começou a esboçar a hipótese da eleição directa? Para ela, pesaram sobretudo
questões históricas – a memória da campanha de Delgado em 1958 e da revisão de
1959 – ou o circunstancialismo de 1975-76?
MGT – Bom, eu
continuo a dizer que eu só sei o que se passava entre Melo Antunes, eu próprio
e Luís Nunes de Almeida. A solução da eleição directa não é nossa, eu hoje acho
lindamente, mas não é proposta nossa. Na altura, estávamos cheios de dúvidas
nessa matéria: eu era mais pela eleição directa, Luís Nunes de Almeida e Melo
Antunes menos. Mas é preciso fazer aqui uma advertência: temos naturalmente a
tendência para simplificar o passado. A escolha da eleição directa surge entre
Dezembro de 1975 e Janeiro de 1976, mas é feita basicamente em Dezembro. Em
Dezembro de 1975 já tínhamos conversado sobre isso, mas, entre nós, a situação
estava longe de ser clara. Hoje, vendo retrospectivamente, simplificando o
passado, como disse, julgamos que o 25 de Novembro arrumou as questões. Ora, a
situação não estava de forma alguma clarificada e tinha ocorrido no dia 26 de
Novembro uma intervenção crucial de Melo Antunes onde diz que o Partido
Comunista é essencial ao sistema político português. É que a seguir ao 25 de
Novembro havia o fortíssimo risco de uma corrida para o “revanchismo” e todos
nós vivíamos com a percepção desse risco. Toda a gente tinha a sensação de que
o primeiro Presidente da República seria militar mas havia a consciência dos
perigos. Em Dezembro tinha-se começado a desenvolver um processo de
reorganização das Forças Armadas e havia um temor do “revanchismo”, da
vingança, da retaliação, e tinha-se a sensação de que havia ainda uma tendência
muito poderosa de “vertigem” para a direita, mas não era para uma direita
democrática, era para uma direita que podia não ser democrática e de que nós
tínhamos medo (pelo País). O problema não era a eleição directa em si. O
problema principal no nosso espírito era o seguinte: “isto sai militar [para a
Presidência], mas que militar é que pode sair disto?”; “que militar é que
sai?”. Cuidado! É que ninguém sabia ao certo qual o grau de controlo do
eleitorado pelos partidos políticos.
AA – E Eanes... era um enigma.
MGT – A primeira pessoa que me falou
em Eanes foi o Melo Antunes por essa altura e nos seguintes termos: “do
Conselho da Revolução, o único que pode ser é o Eanes”. E Eanes era um enigma.
Mas havia sobretudo o medo de, através da eleição directa, sair outro, um
“caudilho”. Nós estávamos cheios de preocupação, e Melo Antunes tinha
particularmente receio disso.
AA – O Dr. Galvão Teles tinha menos
medo...
MGT – Não sei se tinha menos medo,
era mais presidencialista, mas também tinha algum medo. Discutíamos muito entre
nós: a eleição indirecta deixa o Presidente frágil... A certa altura, chegámos
a pensar em que, como se tratava de um regime transitório, poder-se-ia
estabelecer em termos provisórios durante uns anos a eleição presidencial
indirecta. Mas isso também não dava. Ensaiámos várias fórmulas... O Luís Nunes
de Almeida recordou, há tempo, uma reunião alargada, com a presença do Jorge
Sampaio e do Nuno Brederode dos Santos, que se pronunciaram claramente a favor
da eleição directa. Mas, quando digo que a questão estava mais ou menos
encerrada em Dezembro de 1975 e as coisas se arrumaram no princípio de Janeiro,
é porque aí surgem várias declarações tanto do Partido Socialista como do
Partido Popular Democrático – que eram os partidos decisivos – a defender a
eleição directa. E, quando recebemos os papéis dos partidos, verificámos que
todos, salvo o Movimento Democrático Português, todos, incluindo o Partido
Comunista, iam para a eleição directa. Isso acabou com a questão: se todos
querem a eleição directa, pronto, não há alternativa, não vale a pena pensar
mais... A eleição directa é, pois, uma decisão dos partidos. Não sei como é que
pensariam os outros membros do Conselho da Revolução que não o Melo Antunes,
mas pelo menos Melo Antunes e nós tínhamos grandes dúvidas... A solução, a
decisão, não é deste lado, mas dos partidos políticos.
AA –
No texto que publicou sobre o II Pacto diz que na altura era
praticamente certo que o Presidente da República seria um militar ([9]).
Isto significa que, como diz André Gonçalves Pereira ([10]),
o II Pacto tinha uma “cláusula militar implícita”?
MGT – Isso não tem a ver com o Pacto,
embora o Pacto contasse com isso. Tem a ver com as circunstâncias do País. Nós
vínhamos de um período de grande intervenção militar e não havia maneira, não
havia condições políticas para uma alternativa. Repare: nas primeiras eleições,
em quatro candidatos só um não é militar – há três militares, Eanes, Pinheiro
de Azevedo e Otelo Saraiva de Carvalho, e um civil, Octávio Pato. Era a própria
situação da sociedade política que o impunha, não havia nenhuma “cláusula
militar”. Havia, isso sim, a noção de que, para que o sistema que estava a ser
montado pudesse funcionar, o Presidente da República tinha de sair do Conselho
da Revolução e tinha de ter o apoio dos principais partidos. Essa noção havia.
AA – Mas, recentemente, nas
entrevistas que concedeu à jornalista Maria João Avillez ([11]),
o Dr. Mário Soares diz que em várias ocasiões se colocou a hipótese de se
candidatar à Presidência...
MGT – Não me admiro nada!
AA – Mais precisamente, o Dr. Mário
Soares diz que foi sondado por Octávio Pato em nome do Partido Comunista, que
um grupo de oficiais da Força Aérea quis convencê-lo a candidatar-se, que Sá
Carneiro e Manuel Alegre também pretendiam que se candidatasse. Como é que vê
essas afirmações?
MGT – O que referi era a sensação que
nós tínhamos. Agora, que os chefes de partido pensassem em candidatar-se é
natural. Mas repare que eles todos pensavam mas ninguém se candidatou! Aliás, o
Dr. Mário Soares também esteve para se candidatar em 1980. Era, digamos,
natural para todos eles, que eram chefes de partido, pensarem em candidatar-se,
mas perceberam que não havia condições para isso.
AA – Mas então talvez isso demonstre
que não havia na verdade uma cláusula jurídica
implícita a apontar para um Presidente militar, que era antes uma cláusula ao
sabor das condições e das conveniências políticas...
MGT – Não havia nenhuma cláusula.
Quer dizer, havia uma “cláusula” no II Pacto que dizia que o Presidente da
República tinha de se dar bem com o Conselho da Revolução e ter autoridade
sobre as Forças Armadas. Quando eu disse, no início, que isto correu bem foi
justamente porque se encontrou um Presidente da República que se dava bem (ou
relativamente bem) com o Conselho da Revolução, embora houvesse algumas dificuldades,
claro, e com autoridade sobre as Forças Armadas.
AA – Mas a “cláusula” (chamemos-lhe
assim) tem suscitado diversas leituras dos comentadores. Uns dizem que ela se
destinava a subordinar os militares ao Presidente da República ([12]),
outros que se tratou, pelo contrário, de uma exigência das próprias Forças
Armadas ([13]). Qual a sua opinião?
MGT – Mas, pelo menos no meu
espírito, nunca houve cláusula militar...
AA – Sim, está bem. Mas por “cláusula
militar” eu chamo apenas a ideia de que o primeiro Presidente da República
tinha de ser um militar. Isso visava que as Forças Armadas ficassem
subordinadas ao Presidente da República ou tratou-se de uma exigência dos
próprios militares?
MGT – Na minha perspectiva, havia um
ponto essencial: uma coisa era o Movimento das Forças Armadas, outra eram os
militares. Nos primeiros dias após o 25 de Novembro, o Conselho da Revolução
sofreu logo um conflito sério entre o MFA e os chefes de Estado-Maior. Quer
dizer, uma coisa eram os militares, a hierarquia, outra o MFA. A nossa grande
preocupação era de deixar por algum tempo o MFA – não “os militares” – na
política. Eram o MFA e o Presidente da República que tinham de reorganizar as
Forças Armadas, mas com subordinação aos princípios constitucionais.
AA – Portanto, a Presidência militar
destinava-se a “domesticar” as Forças Armadas?
MGT – Isso, se quiser, sim. Para que
o processo de re-hierarquização corresse bem. Numa altura em que as Forças
Armadas tinham muita influência, o grande perigo era que elas viessem a exercer
mal essa influência no quadro de uma estrutura hierárquica. Isso é que era o
ponto crucial: nunca deixar que o Conselho da Revolução fosse dominado pelos
chefes de Estado-Maior.
AA – Mas as alternativas à eleição
directa foram ponderadas até onde? Isto é, foram cenários traçados apenas pelos
juristas que apoiavam o Conselho da Revolução ou chegaram a ser discutidos
pelos partidos?
MGT – Não, nunca. Tudo entre nós.
Nunca foram discutidas com os partidos, que eu saiba.
AA – Um dos contributos mais inteligentes
do II Pacto é a ideia de não criar um Conselho da Revolução misto, civil e
militar. De quem é que foi esta ideia de manter a composição exclusivamente
militar?
MGT – Acho que foi de todos,
provavelmente. Não era apenas a composição exclusivamente militar, era o
Conselho da Revolução do 25 de Novembro. Só mudavam os Chefes de Estado-Maior,
porque esses eram membros do Conselho por inerência. A ideia era que o Conselho
da Revolução correspondesse ao Conselho da Revolução do 25 de Novembro. Isso
vinha obviamente de Melo Antunes.
AA – Essa ideia de um Conselho da
Revolução integrado só por militares tinha uma virtualidade clarificadora da
situação política – e militar.
MGT – Exactamente.
AA – Havia a consciência disso, na
altura?
MGT – Eu diria que houve uma rejeição
liminar das propostas de órgãos mistos. Aquilo era um grupo de gente que tinha
salvo a revolução em 25 de Novembro e que tinha o papel de adaptar as Forças
Armadas na transição para a democracia.
AA – E, já agora, um outro ponto:
porque motivo não foi possível criar na altura um Tribunal Constitucional? Por
inércia dos partidos ou porque o Conselho da Revolução queria ter uma palavra a
dizer?
MGT – Porque o Conselho da Revolução
queria ter uma palavra... E ninguém propôs o Tribunal Constitucional.
AA – O professor Jorge Miranda
propôs... ([14])
MGT – Mas Jorge Miranda não contava
nessa altura nos bastidores do PPD. Não, a ideia foi do Conselho da Revolução,
que queria ter um papel a desempenhar. A certa altura, foi encontrada uma
fórmula em que o Conselho da Revolução tivesse uma palavra a dizer...
AA – Mas soubesse dizer essa palavra,
isto é, tivesse juristas...
MGT – Sim, gente de primeiríssima
qualidade.
AA – De quem foi a ideia de uma
Comissão Constitucional?
MGT – Se bem me lembro, a ideia da
Comissão Constitucional foi minha.
Visões
do II Pacto
AA – Passaríamos agora a uma outra
parte que corresponde às leituras ou interpretações do II Pacto que têm sido
feitas. Mais ou menos por esse tempo, Adriano Moreira escrevia que os militares
eram o “novíssimo príncipe” ([15]),
tese recentemente rejeitada por Joaquim Aguiar ([16]).
Qual é a sua opinião? Acha que os militares eram o “novíssimo príncipe” da
revolução?
MGT – Eu acho que os nossos militares
conseguiram fazer uma coisa extraordinária: cumpriram rigorosamente a sua
missão de redisciplinar as Forças Armadas e de sair da política. Os militares
conseguiram, com alguma amargura, preparar a sua própria morte política e, no
fundo, acabou por ser o normal jogo das forças democráticas que fez deslocar a
legitimidade para os partidos políticos e para o Presidente da República.
AA – É usual dizer-se hoje em dia que
houve um conflito de legitimidades: a legitimidade democrática, de um lado, a
legitimidade revolucionária, do outro. Não acha que isso é um mero chavão
simplificador para descrever o que se passou naquele tempo?
MGT – É extremamente simplificador.
Mas existiu. Para quem viveu essa época, isso foi claríssimo. Houve realmente
um conflito entre uma legitimidade democrática, ou uma legitimidade
revolucionária transitória que seria a legitimidade para instalar a democracia,
e uma legitimidade revolucionária, que seria a legitimidade para desenvolver a
revolução mesmo contra os mecanismos democráticos. Aliás, eu ainda hoje fico
perplexo... De todo o processo revolucionário, para mim o milagre maior são as
eleições para a Constituinte. Havia realmente condições para não deixar avançar
a eleição da Constituinte, havia condições políticas para isso. Era a guerra
civil? Seria provavelmente a guerra civil. Mas havia algumas condições
políticas para ter impedido as eleições para a Constituinte a seguir ao 11 de
Março. Repare que de 11 de Março a 25 de Abril vai um mês e pouco... Aí, acho
que o papel de Costa Gomes terá sido muito importante, sobretudo na noite da
“assembleia selvagem”; na noite de 11 para 12 de Março, Costa Gomes reafirma o
compromisso do MFA de que haveria eleições para a Constituinte no prazo de um
ano contado do 25 de Abril de 1974.
AA – Talvez o
PCP e o MDP julgassem que iam ter uma votação superior, sobretudo o MDP.
MGT – É
possível. É possível que tenha havido um erro de cálculo.
AA – Porque, na
verdade, a votação do PPD foi surpreendente pela positiva (a do PS era
esperada) e a do MDP pela negativa...
MGT – O MDP
morreu... É possível que tenha sido um erro de cálculo.
AA – Em
entrevistas dadas anos mais tarde por dois participantes na elaboração do II
Pacto, Melo Antunes e Ramalho Eanes, afirmam que não houve qualquer imposição
das Forças Armadas aos partidos políticos ([17]).
O Dr. Miguel Galvão Teles disse que, através do II Pacto, o Conselho da
Revolução se tornou um órgão póstumo, uma sobrevivência, e confessou mesmo que
na altura se lembrou da Câmara dos Lordes ([18]).
Não poderemos considerar, afinal, que essa sobrevivência do Conselho da
Revolução foi uma imposição dos militares aos partidos, ao contrário do que
disseram Melo Antunes e Ramalho Eanes?
MGT – Vamos lá
a ver: quem esteve nas negociações não fui eu! Porventura, haverá pessoas que
depois de terem assinado o II Pacto tiveram vergonha de o desejar tanto e de o
ter assinado, tiveram vergonha política a
posteriori. Mas quem ler as propostas dos cinco partidos verifica que o
único que levanta reticências é o PPD. O PS e o CDS não levantaram qualquer
reticência. Eles queriam era libertar-se do I Pacto! Nós temos a tendência para ler o II Pacto à luz do
texto constitucional posterior a 1982, mas, se se ler ao contrário – isto é, o
II Pacto à luz das propostas dos partidos –, verifica-se que a ideia dos
partidos era manter o I Pacto com algumas alterações. Ora, o II Pacto é muito
mais aberto, muito mais democrático do que eram as propostas da generalidade
dos partidos, excepto talvez a do PPD. E isso veio do Conselho da Revolução.
AA – No seu
livro de memórias, César Oliveira queixa-se do modo com os partidos trataram
esta questão, dizendo-se – e passo a citar – “impressionado com a ligeireza com
que muitos partidos seus subscritores tratavam do conteúdo [do Pacto]” ([19]).
César Oliveira queixa-se também da forma “ingrata” como os partidos trataram os
militares, falando explicitamente do Partido Socialista e de Salgado Zenha.
Partilha esta opinião?
MGT – O César
Oliveira ficou obcecado pela inconstitucionalidade por omissão. Nunca
funcionou, mas está bem... Eu diria que o II Pacto tinha uma função
determinada; esgotava-se na Constituição. Era, digamos, uma mesa-redonda – um
modelo que viria a ser usado depois nas transições do Leste dos anos noventa ([20])
– para tratar de matérias que viriam a ser incluídas na Constituição. Agora, o
II Pacto morreu quando nasceu a Constituição.
AA – Eu por
acaso não diria isso. Eu diria antes que o II Pacto ficou inscrito na
Constituição e sobreviveu através dela.
MGT – Sim,
claro. Noutra perspectiva, isso é verdade. Mas como acordo cumpriu-se com a
Constituição.
AA – Vou
fazer-lhe agora uma pergunta um pouco provocatória. Num livro que publicaram em
1980, Pedro Santana Lopes e José Manuel Durão Barroso chegam a afirmar que – e
cito – “os autores materiais das propostas militares entregues aos partidos
políticos não detinham conhecimentos suficientes para passarem com êxito num
exame elementar de Ciência Política ou de Direito Constitucional” ([21]).
Quer comentar?
MGT – Bem,
nenhum deles foi meu aluno... e parece que fizeram Direito Constitucional por
passagem administrativa. É capaz de nenhum deles ter aprendido o suficiente
para saber, ao tempo, do que estava a falar... (risos). Falando a sério, até porque sei que foram depois alunos
distintos: o comentário aparece a propósito do semi-presidencialismo e é um
disparate. Os autores omitem que o PPD foi um dos que reclamaram a eleição
directa do Presidente da República e parecem esquecer, mas só nalguns momentos,
que um Presidente da República eleito por sufrágio directo e universal tem de
possuir poderes significativos, sob pena de ruptura do sistema. Mas o livro tem
interesse. Os autores defendiam alguma parlamentarização do sistema, em parte
conseguida em 1982, mas sem eliminação do poder do Presidente da República de
demitir o Governo, e criticavam, na linha de Jorge Miranda, a abertura
constitucional para os governos minoritários – o que neles traduzia,
evidentemente, os interesses da AD e, em particular, do PPD. E o livro recolhe,
do projecto constitucional do Dr. Sá Carneiro, a moção de censura construtiva,
de que o grande adepto viria a ser, mais tarde, Luís Nunes de Almeida. A
proposta seria retomada pelo PS na revisão constitucional de 1988-89, mas não
obteve então o acordo do PSD e, por isso, não passou… Sem discutir os méritos e
os deméritos da solução alemã, e das suas variantes possíveis, por mim sempre
considerei que a moção de censura construtiva é dificilmente compatível com a
eleição directa do Presidente da República… Voltamos sempre ao mesmo.
AA – Por altura
das comemorações do vigésimo aniversário da Constituição, Jorge Miranda,
entrevistado por um semanário, afirmou textualmente que se sentiu “traído” pela
celebração do II Pacto, já que este se baseou em “negociações nas costas da
Assembleia Constituinte” ([22]).
Segundo Jorge Miranda, teria sido possível revogar pura e simplesmente o I
Pacto impondo aos militares a assunção da plenitude do poder constituinte pela
Assembleia. É também essa a sua opinião?
MGT – Eu julgo
claramente que sim. Os partidos poderiam ter perfeitamente revogado o I Pacto.
AA – E os
militares não reagiriam?
MGT – Não, não
([23]).
Agora, o que aconteceria seria muito pior do que foi, porque aí
dessolidarizava-se do processo de democratização uma instância militar que
tinha uma importância decisiva no controlo das Forças Armadas. Quer dizer,
aqueles militares que eu conheço não teriam feito nada de grave, mas outros
talvez fizessem...
AA – E o risco
de um “caudilhismo” de direita poderia ser muito maior...
MGT – Exacto. Eu penso que os
partidos podiam ter imposto isso, mas teria sido um desastre. Toda a gente na
altura, excepto um pouco o Dr. Sá Carneiro, dizia que teria de ser uma
instância militar com alguma autonomia a enquadrar as Forças Armadas através de
um esquema maleável. Poder-se-ia ter feito outra coisa, mas teria sido muito
pior. Ir-se-ia descontrolar todo o sistema militar.
AA – E a
Comissão Constitucional actuava aqui como uma “válvula de segurança” civilista,
um contraponto ao peso que tinha de se reconhecer aos militares?
MGT – O que era
essencial era que as pessoas da Comissão tivessem grande qualidade
técnico-jurídica, como tiveram. A Comissão Constitucional era presidida por um
membro do Conselho da Revolução que ainda por cima era Ernesto Melo Antunes.
Portanto, a Comissão Constitucional foi criada para em condições normais o
Conselho da Revolução não poder dizer coisa diferente do que a Comissão dizia.
Tratava-se de manter o poder imponente no Conselho da Revolução, mas de
atribuir o poder eficiente à Comissão Constitucional.
AA – Aliás, um estudo
de Miguel Lobo Antunes mostrou já que houve uma sintonia quase total entre o
Conselho da Revolução e a Comissão Constitucional ([24]).
MGT – Sim, a
única grande divergência de que me lembro respeitou à lei de delimitação dos
sectores. O resto eram declarações políticas. O Vasco Lourenço fazia
declarações políticas? Sim, fazia, é claro que fazia! E depois?
O II
Pacto MFA/Partidos: um balanço político final
AA – Ao fim de
todos estes anos, procurando um balanço político, pode dizer-se que, mais do que
na Constituição, é no II Pacto que se situa a génese do nosso sistema de
governo?
MGT – Pode. Mas
com uma particularidade, atenção. No II Pacto, mas também por via dos partidos.
A eleição directa do Presidente é dos partidos, vem dos partidos. O sistema de
responsabilidade limitada do Governo perante a Assembleia da República – isto
é, a necessidade de maioria absoluta para rejeitar o programa ou para o fazer
cair – era uma coisa que estava na proposta de pacto, mas que saiu por oposição
feroz do PPD. A seguir, o Dr. Salgado Zenha conseguiu fazer passar isso no
grupo parlamentar do PS e depois na Constituinte, com o apoio, que me pareceu
surpreendente, do Partido Comunista. Com esse complemento – essa fórmula da
responsabilidade, que está no projecto de Pacto, que sai e que volta a entrar
na Constituição –, a resposta à sua
pergunta é afirmativa.
AA – Mas até
que ponto o nosso sistema de governo, mesmo actualmente, não sofre os efeitos
da famigerada “cláusula militar”? Ou seja, se o primeiro Presidente não tivesse
sido militar não teria certamente os poderes que teve – Chefe do Estado,
presidente do Conselho da Revolução, Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas
até 1981; ora, se não tivesse tantos poderes não teria havido o “revanchismo”
que ocorreu em 1982, quando cercearam os poderes presidenciais. No fundo, não
pode dizer-se que a revisão de 1982 é um ajuste de contas com o II Pacto?
MGT – Pode, mas
as coisas também se foram moderando, não é? As coisas também se foram
moderando. Desde que, com o fenómeno do Partido Renovador Democrático pelo
caminho, os grandes partidos estabilizaram, a capacidade do Presidente da
República diminuiu. Nós estamos a evoluir para um sistema já muito próximo do
bipartidário. Em sistemas desses o Presidente tende a apagar-se. O que há de
mais importante de 1987 para cá é a estabilização de governos maioritários ou
de governos próximos da maioria e aí a posição do Presidente ressente-se
sempre.
AA – Mas a
revisão de 1982 foi feita ad hominem
contra o general Eanes...
MGT – Isso é
indiscutível.
AA – E, sendo
feita ad hominem, o general Eanes não
terá sido, ao mesmo tempo, o grande beneficiário e a grande vítima do II Pacto
MFA/Partidos?
MGT – Foi, foi. É curioso, nunca
tinha pensado nisso assim, mas foi.
AA – Só que as consequências de uma
revisão ad hominem acabaram por ficar
no texto da Constituição...
MGT – Mas também não são
importantes... Alguém se preocupa hoje com isso?
AA – A dupla responsabilidade
política do Governo...
MGT – Mas se o Presidente da
República quiser demitir o Primeiro-Ministro continua a poder fazê-lo. Eu penso
que, como sucede com todas estas coisas feitas ad hominem, as alterações foram efectuadas relativamente a actos do
passado que não têm condições de se repetir no futuro e tornam-se, por isso,
inúteis. Aliás, só uma vez o Presidente da República demitira, por sua
iniciativa o Governo. O poder de demissão é essencial, não para ser normalmente
exercido, mas como ameaça. Como poderia, por exemplo, o Presidente da República
requerer do Primeiro-Ministro que, em situação crítica, solicitasse a um
Ministro que pedisse a exoneração ou que lhe propusesse a demissão dele se o
Primeiro-Ministro não soubesse que, em último recurso, o Presidente da
República o poderia exonerar a ele próprio? Julgo que com a responsabilidade
limitada perante a Assembleia e sem responsabilidade política perante o
Presidente o Governo fica, com alguma incongruência, um bocado “pendurado” no
ar; mas, mais coisa menos coisa, ficou tudo na mesma. Eu também me bati contra
a segunda revisão, mas hoje aceito-a perfeitamente.
AA – À distância, fica-se com a ideia
de que os partidos jogavam em dois tabuleiros, ou seja, ao mesmo tempo que
negociavam com o Conselho da Revolução estavam a trabalhar na Constituinte,
nunca interromperam o trabalho na Assembleia.
MGT – Sim, mas
respeitaram o resultado das negociações com o Conselho da Revolução.
AA – Mas é que
os tabuleiros eram independentes. Por exemplo, algumas afirmações de Jorge
Miranda fazem crer que os partidos ou os deputados não tinham conhecimento
nenhum do que se estava a passar ao nível das negociações para o II Pacto.
MGT – Penso que
não tinham conhecimento, não tinham. Como, aliás, é próprio de qualquer boa
negociação, faz-se em segredo... (risos).
Eu também não sabia! Só sabia o que era preciso.
AA – No seu
artigo, fica-se um pouco com a ideia de que, ao fim destes anos, ainda não foi
feita justiça ao Conselho da Revolução. Que injustiça foi cometida?
MGT – Foi a
maneira como... Não era preciso dar condecorações, não era preciso grande
coisa. Foi a maneira como se trataram pessoas. É que nem sequer houve uma
cerimónia, ao menos isso. Foi a maneira como se trataram pessoas que mereciam
consideração, respeito e gratidão.
AA – Quem foi o
culpado desse tratamento? Os partidos?
MGT – Não vou
dizer nomes, mas penso que sim. Foi da parte de alguns partidos, dois
principalmente.
AA – Os dois
maiores partidos?
MGT – Algumas
pessoas desses partidos. Enfim, acho que havia maneiras mais dignas de as
coisas terem findado. Mas isso também se resolve com o tempo. Eu lembro-me na
altura de ter ido à Madeira e alguém ter começado a dizer mal do Melo Antunes e
eu ter dito “vocês não digam mal do Melo Antunes à minha frente que ele é meu
amigo”. Responderam logo: “você aqui na Madeira não diga isso, nunca diga
disso!”. Hoje, toda a gente reconhece o papel que ele teve.
AA – A Melo
Antunes certas pessoas nunca perdoaram as declarações do dia 26 de Novembro.
MGT – Essa declaração foi, segundo
julgo saber, combinada com Eanes. Desculpe, não quero referir nomes, mas ouvi
da parte de quem, na altura, era radical e teve um papel importantíssimo, a
afirmação, feita muito depois, de que afinal era o Melo Antunes quem tinha
razão. No fundo, as pessoas, passada a paixão, reconhecem as coisas. É claro
que Melo Antunes hoje não teria dito aquilo como disse no 26 de Novembro, que o
Partido Comunista era indispensável “à revolução e ao socialismo”; teria dito
“à revolução e à democracia”, pronto. Na altura havia propostas em cima da mesa
para proibir o Partido Comunista e prendê-los a todos. O Melo Antunes pagou
toda a vida a declaração que então fez. Mas salvou a democracia.
AA – Passando agora a uma
retrospectiva mais abrangente: ao fim destes anos, fica-se com a ideia de que o
sucesso da transição democrática portuguesa, em termos institucionais e
organizatórios, se deveu em larga medida a uma infinidade de pequenos
ajustamentos – não misturar militares e civis no Conselho da Revolução, manter
a composição que esse órgão tinha em 25 de Novembro (que não foi mudada),
colocar na Presidência um militar que em simultâneo servisse de travão e de
escudo ao Conselho da Revolução. Essas pequenas coisas revelam uma inteligência
muito grande.
MGT – É um
facto que houve uma infinidade de pequenas coisas que influenciaram.
AA – A pergunta
que eu coloco é, então, a seguinte: esses pequenos dispositivos foram
deliberadamente arquitectados com o objectivo de assegurar uma transição para a
democracia a médio prazo ou resultaram tão-só da relação conjuntural de forças na
altura?
MGT – É muito
agradável dizer depois que foi tudo muito bem pensadinho e que saiu tudo muito
bem. Houve intuições. Eu diria que no II Pacto houve intuições. Acho que
funcionou muito bem, mas na altura não havia uma perspectiva clara de que ia funcionar
tão bem. Houve algumas intuições, como por exemplo essa de não misturar os
civis com os militares no Conselho.
AA – Mas o II
Pacto é uma peça de relojoaria constitucional muito bem pensada, desculpe.
MGT – Saiu bem.
Pois saiu bem, mas também houve muita sorte.
AA – O que era
a sorte? Qual foi o seu papel?
MGT – A sorte
era, principalmente, encontrar um Presidente da República que não criasse uma
relação de hostilidade com o Conselho da Revolução, tivesse acolhimento popular
e tivesse respeito pela hierarquia
militar.
AA – E o
respeito da hierarquia militar.
MGT – Exacto.
Eanes foi o homem que conseguiu equilibrar, conseguiu refazer a hierarquia
militar e conseguiu, digamos, gerir os seus amigos do Conselho da Revolução.
AA – Tendo em
conta a intervenção do Conselho da Revolução no II Pacto e noutros lados, será
exagerado dizer-se que os militares também integraram o núcleo dos “pais
fundadores” da Constituição de 1976?
MGT –
Concerteza. Não é nenhum exagero.
AA – E em que
medida participaram?
MGT – É difícil
quantificar. Na medida em que fizeram a revolução, primeiro, na medida em que
fizeram o 25 de Novembro e, depois, na medida em que participaram na elaboração
do II II Pacto.
AA – Mas está a
falar de um sector militar?
MGT – Estou,
mas foram essencialmente esses militares...
AA – Os “seus”
militares?
MGT – Mas foram
os “meus” militares os vencedores no final. Quer dizer, a revolução foi uma
revolução internamente conflituante e os “meus” militares representaram o saldo
vencedor, ainda que depois ultrapassados historicamente. Mas cumpriram o seu
papel. A Constituição é a herança do jogo dos partidos, concerteza, mas também
o saldo final da vitória dos “meus” militares. Os militares poderiam ter tido
menos influência se o Partido Socialista tivesse bons juristas na Constituinte,
que não teve (Salgado Zenha e Almeida Santos, que, se bem me lembro, ainda não
era do Partido, estavam no Governo). Do ponto de vista de criação e de
redacção, a Constituição é essencialmente obra do Jorge Miranda e do Vital
Moreira.
AA – Penso que
é tudo. Muito obrigado, Dr. Miguel Galvão Teles.
(publicado originalmente na revista Sub Judice,
nº especial – 25 de Abril: A Revolução na Justiça, coord. de António Araújo, 2005)
*
Entrevista realizada em 2001, no decurso de uma aula da Pós-Graduação em
Ciências Político-Internacionais da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa. A transcrição da entrevista foi realizada por Ana Maria Zbyszewski, a
quem aqui se agradece. O texto foi revisto pelo entrevistado.
[1]
Refira-se que já em 7 de Agosto de 1975 o Deputado Freitas do Amaral (CDS)
preconizara na Constituinte a reabertura de conversações entre o MFA e os
partidos, tendo nomeadamente em vista a revisão do Pacto – cfr. Diário da Assembleia Constituinte, nº
28, de 8-VII-1975, p. 706.
[2]
Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, “A Segunda Plataforma de Acordo Constitucional entre
o Movimento das Forças Armadas e os Partidos Políticos”, in Jorge Miranda
(org.), Perspectivas Constitucionais. Nos
20 Anos da Constituição de 1976, vol. III, Coimbra, 1998, pp. 681ss.
[3]
Miguel Galvão Teles refere-se provavelmente à resolução aprovada por maioria em
11-XII-1975 pelo Conselho da Revolução, que autorizava à realização de
contactos com os partidos através de uma comissão específica. Essa comissão
seria formada em 15 de Dezembro, integrando Ramalho Eanes, Vasco Lourenço,
Martins Guerreiro, Canto e Castro e Melo Antunes (cfr. BRAULIO GÓMEZ FORTES,
“De la revolución hacia la democracia representativa. El 2º Pacto MFA-Partidos
Políticos”, Historia y Política. Ideas,
processos y movimientos sociales, nº 7, 2002/1, p. 256).
[5]
Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, “A
competência da competência do Tribunal Constitucional”, in AA.VV., Legitimidade e Legitimação da Justiça
Constitucional. Colóquio no 10º Aniversário do Tribunal Constitucional,
Coimbra, p. 124.
[6]
Cfr. Diário da Assembleia Constituinte,
nº 78, de 8-XI-1975, pp. 2574-2575; tb. in JORGE MIRANDA, Fontes e Trabalhos Preparatórios da Constituição, vol. I, Lisboa,
1978, pp. 213-217.
[8]
Cfr. HORST BAHRO, “A influência de Max Weber na Constituição de Weimar e o
semipresidencialismo português como sistema político de transição”, Análise Social, vol. XXXI (138), 1996
(4º), pp. 777-802.
[10]
Cfr. ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, O
Semipresidencialismo em Portugal, Lisboa, 1984, pp. 42-43. Por “cláusula
militar implícita” entende-se o compromisso nos termos do qual o primeiro
Presidente da República a eleger por sufrágio universal deveria ser um membro
das Forças Armadas. Segundo alguns
autores, ficou no entanto acordado que aos partidos caberia escolher os
candidatos militares (cfr. THOMAS C. BRUNEAU, “From revolution to democracy in
Portugal: the role and stages of the provisional governments”, in Yossi
Shain e Juan J. Linz, Between States: Interim Governments and
Democratic Transitions, Nova Iorque, 1995, p. 150). É interessante recordar
que, na altura, Eduardo Lourenço considerava que os partidos, ao apresentarem
um candidato militar, visavam “pôr as Forças Armadas ao serviço dos seus
próprios fins” (cfr. EDUARDO LOURENÇO, “Por uma presidência civil”, in O Fascismo Nunca Existiu, Lisboa, 1976,
p. 219).
[11]
Cfr. MARIA JOÃO AVILLEZ, Soares.
Democracia, Lisboa, 1996, pp. 23ss. É
interessante lembrar, por exemplo, o que, em fins de Maio de 1976, disse o
general Eanes, na qualidade de Chefe do Estado-Maior-General das Forças
Armadas, ao Regimento de Caçadores das Caldas da Rainha: “encontramo-nos
perante uma encruzilhada. Eu pessoalmente não veria mal nenhum em que o
Presidente da República fosse um civil” (apud
DRAGISA POPOVIC BALDANI, Eanes Entre
o Ontem e o Amanhã, Lisboa, 1986, p. 135).
[12]
Cfr. JOSÉ MEDEIROS FERREIRA, O
Comportamento Político dos Militares. Forças Armadas e Regimes Políticos em
Portugal no Século XX, Lisboa, 1992, p. 314; ID., Ensaio Histórico Sobre a Revolução de 25 de Abril. O Período
Pré-Constitucional, Lisboa, 1983, pp. 213-214. Noutro escrito, Medeiros
Ferreira considera que a “cláusula militar” consubstanciava a “sublimação da
influência militar na evolução do regime” - cfr. JOSÉ MEDEIROS FERREIRA, “25 de Abril de 1974: uma
revolução imperfeita”, Revista de
História das Ideias, nº 7, 1985, pp. 391ss.; ID., Portugal em Transe (1974-1985), vol. VIII de José Mattoso (coord.),
História de Portugal, Lisboa, 1994,
p. 219. Ramalho Eanes tem uma leitura relativamente semelhante à de Medeiros
Ferreira, dizendo, em entrevista ao Diário
de Notícias, que “as próprias Forças Armadas consideravam de todo o
interesse que o Chefe de Estado fosse militar, na medida em que isso permitiria
uma certa unidade de acção, afastando as Forças Armadas do envolvimento
político directo” (cfr. Diário de
Notícias, de 24-IV-1984, p. 6). Mais recentemente, em carta dirigida ao
investigador alemão Horst Bahro, Diogo Freitas do Amaral veio igualmente
considerar que, entre outros, o motivo para a eleição directa do Presidente foi
a necessidade de existir um órgão do Estado com autoridade suficiente para
equilibrar os poderes atribuídos ao Conselho da Revolução (cfr. HORST BAHRO, “A
influência de Max Weber...”, cit., p. 796).
[13]
Cfr. PEDRO SANTANA LOPES e JOSÉ DURÃO BARROSO, Sistema de Governo e Sistema Partidário, Amadora, 1980, p. 23;
cfr., ainda, ADRIANO MOREIRA, O Novíssimo
Príncipe. Análise da Revolução, Braga-Lisboa, 1977, p. 114. Logo em 1976,
um observador estrangeiro veria nessa “cláusula” o resultado de uma estratégia
dos militares, que pretendiam obter uma representação
mediata dos seus interesses através do Presidente da República (cfr. GIUSEPPE DE VERGOTTINI, Le Origini della Seconda Repubblica
Portoghese, Milão, 1976, pp. 126ss. e pp. 171ss). Há quem entenda,
curiosamente, que tal “cláusula” se traduzia numa necessidade de conferir
legitimidade política directa ao poder militar (cfr. MANUEL BRAGA DA CRUZ, “O Presidente da República na génese
e na evolução do sistema de governo português”, in Instituições Políticas e Processos Sociais, Venda Nova, 1995, p.
229).
[14]
Cfr. Diário da Assembleia Constituinte,
nº 96, de 17-XII-1995, pp. 3099-3100. A proposta do Deputado Jorge Miranda
(PPD) seria criticada pelo Deputado José Luís Nunes, contando esta intervenção
com o apoio do Deputado Barbosa de Melo (PPD) – cfr. ANTÓNIO DE ARAÚJO, “A
construção da justiça constitucional portuguesa: o nascimento do Tribunal
Constitucional”, Análise Social, vol.
XXX (134), 1995 (5º), pp. 906-907.
[16]
Cfr. JOAQUIM AGUIAR, “A história múltipla”, Análise
Social, vol. XXXI (139), 1996 (5º), p. 1249.
[17] Melo Antunes refere que os partidos
foram os principais interessados na existência do Conselho da Revolução,
dizendo que a mesma: “(…) não foi uma imposição do Movimento das Forças Armadas
aos partidos políticos. Foi o resultado de um debate interno em todo o sistema
político. Sentimos muito mais a pressão dos próprios partidos para que houvesse
um sistema de transição, que garantisse essa intervenção em nome da defesa da
democracia do que o contrário” (Diário de
Notícias, de 15-IV-1984, p. 34). Num sentido próximo, disse Ramalho Eanes
em entrevista a Mário Mesquita: “A necessidade [de um segundo pacto] foi
sentida pelas Forças Armadas e pelos partidos políticos que subscreveram o
Pacto. Falou-se depois disso em imposição das Forças Armadas. Como é sabido, eu
participei nas negociações e posso dizer que isso não é historicamente verdade.
As Forças Armadas não impuseram o Pacto” (cf. Diário de Notícias, de 24-IV-1984). De facto, declarações de
responsáveis partidários revelam que estes estavam dispostos a aceitar um papel
transitório das Forças Armadas (o que não significa, obviamente, que algumas
das soluções do II Pacto não tenham sido “impostas” pelos militares). Assim,
Diogo Feitas do Amaral afirmou a A
Capital, em 17-XII-1975: “embora
sejamos favoráveis àquilo que se tem chamado propriamente ‘regresso do MFA aos
quartéis’, nós entendemos que as Forças Armadas têm um papel importante a
desempenhar (…) no encaminhamento do País para uma verdadeira democracia (…)
Por isso mesmo pensamos que a presença das Forças Armadas na vida pública
portuguesa se deve manter ainda por algum tempo”. E, um pouco mais tarde,
Francisco Sá Carneiro diria ter de se reconhecer “um certo papel das Forças
Armadas, um pouco diferente daquele que têm em democracias mais estáveis” (cfr.
Povo Livre, de 4-II-1976, p. 16).
[19]
Cfr. CÉSAR OLIVEIRA, Os Anos Decisivos.
Portugal, 1962-1985. Um Testemunho, Lisboa, 1993, pp. 212-213.
[20] Cfr., por ex., JON ELSTER (ed.), The Roundtable Talks and the Breakdown of
Communism. Constitutionalism
in Eastern Europe, Chicago, 1996.
[22]
Cfr. O
Diabo, de 13-XII-1996,
p. 8. Ainda assim, Jorge Miranda já reconheceu que existiram razões para a
celebração do II Pacto (cf. A
Constituição de 1976. Formação, Estrutura, Princípios Fundamentais, Lisboa,
1978, pp. 29-30). A necessidade da assinatura do II Pacto foi reconhecida por
diversos sectores. Mário Soares, por exemplo, explicou assim as vantagens desse
acordo: “(...) tratou-se de um indiscutível avanço no caminho que sempre
defendi: uma democracia civilista, europeia e pluralista. No novo texto, as
Forças Armadas disponibilizavam-se a limitar o seu próprio poder e a retirar-se
de todas as instâncias do poder político, após um prazo de transição de cinco
anos. Numa palavra: o MFA não era mais o motor da Revolução...” (cfr. MARIA
JOÃO AVILLEZ, Soares..., cit., p.
15).
[23]
Deve notar-se que, já após a realização desta entrevista, foi publicado em
Espanha um artigo que dá conta da documentação do Arquivo do Conselho da
Revolução na Torre do Tombo (aberta ao público em 1999), designadamente da acta
da importante reunião de 3-XII-1975 (cfr. BRAULIO GÓMEZ FORTES, “De la
revolución hacia la democracia representativa...”, cit., em esp. p. 255). É
interessante recensear as intervenções dos vários conselheiros nesse encontro.
Costa Gomes afirmou que “não deve haver demasiada complacência para com os
partidos políticos que pretendam passar por cima do Conselho da Revolução”;
Vasco Lourenço disse: “pretendo que o Pacto com os partidos seja revisto, mas
não aceito que os partidos o denunciem assim, sem mais”; “penso que deve ser o
Conselho da Revolução e o MFA a tomarem a iniciativa da revisão do Pacto com os
partidos, defendendo que não está em causa a essência do mesmo”, foi a tese
avançada por Melo Antunes; “o MFA deve tomar a iniciativa da revisão do Pacto”,
opinou Martins Guerreiro; “o MFA tem responsabilidades históricas e direito de
tutela sobre os partidos políticos, que lhe são conferidos pelo 25 de Abril, o
28 de Setembro, o 11 de Março e agora o 25 de Abril”, sustentou Franco
Charais.
[24]
Cfr. MIGUEL LOBO ANTUNES, “A fiscalização da constitucionalidade das leis no
primeiro período constitucional: a Comissão Constitucional”, Análise Social, vol. XX (81-82),
1984-2º-3º, pp. 309-336; cfr. ainda ARMINDO RIBEIRO MENDES, “O Conselho da
Revolução e a Comissão Constitucional na fiscalização da constitucionalidade
das leis (1976-1983)”, in Mário Baptista Coelho (coord.), Portugal. O Sistema Político e Constitucional, 1974-1987, Lisboa,
1989, pp. 925-940.
Meu caro António Araújo
ResponderEliminarFui apenas modesto escriba neste processo, mas arrepiou-me ler nesta entrevista o meu nome como "falecido". Sei que foi um lapsus calami, o falecido em causa era meu tio ( grande admirador e amigo do Miguel), mas o arrepio ficou... luis castro mendes ps - Tive oportunidade pouco antes da morte do Miguel de esclarecer com ele a posição de Melo Antunes sobre a eleição directa do PR. Dada a infelicidade de termos perdido o Miguel, estou ao seu dispor para lhe dar as informações que na altura lhe transmiti . Com a maior consideração Luis Castro Mendes
Meu caro Luís Castro Mendes,
Eliminarmuito obrigado pela sua mensagem, vou proceder de imediato à correcção, pedindo-lhe as maiores desculpas.
Com a estima e a admiração do
António