terça-feira, 26 de novembro de 2019

Porquê confiar na ciência?

 

 
 
Why Trust Science? é baseado nas Tanner Lectures on Human Values, realizadas na Universidade de Princeton em 2016. Além das palestras de Naomi Oreskes, o livro inclui comentários de Ottmar Edenhofer, Martin Kowarsh, Jon Krosnick, Marc Lange e Susan Lindee, e uma resposta final da historiadora da ciência da Universidade de Harvard. Neste livro, Naomi Orekes propõe-se responder à pergunta: porque é que devemos confiar na ciência? Ao contrário do que muitos cientistas supõem, a autora defende que não se deve confiar na ciência porque esta funciona, porque a utilidade e operacionalidade do conhecimento científico não correspondem, necessariamente, à verdade. Na história da ciência, houve vários modelos e teorias que “funcionavam” e que posteriormente foram rejeitados. Basta recordar o modelo geocêntrico de Ptolomeu.
No primeiro capítulo, Oreskes começa por expor as diferenças entre Auguste Comte, os filósofos do círculo de Viena, Karl Popper, Ludwick Fleck, Pierre Duhem, Thomas Kuhn, Bruno Latour e Paul Feyerabend sobre quais os limites da ciência, o papel da observação e da indução na construção de uma teoria científica, a validação e refutação da ciência, e o modo como a ciência progride. Um dos argumentos principais do livro é que os critérios que maximizam a objectividade em ciência são: a abertura ao criticismo—nomeadamente através de práticas como a revisão por pares—e a existência de uma comunidade aberta e diversa o suficiente para permitir o desenvolvimento de várias opiniões. Como não há um único método científico, e a prática das ciências depende de comunidades de pessoas que tomam decisões que são simultaneamente empíricas e sociais, porque é que se deve confiar na ciência? Para Oreskes, há duas razões principais: a relação contínua entre a ciência e o mundo natural e o carácter social da prática científica. Os cientistas são os peritos que se dedicam a estudar o mundo natural e, por isso, devemos confiar, à partida, no seu trabalho, da mesma forma como confiamos, à partida, num canalizador, electricista, ou dentista no normal exercício das suas profissões. Mas como garantir a confiança num determinado cientista? Como é que se pode saber se este ou aquele cientista não estará errado? Para Oreskes, a resposta está na reputação e credibilidade do cientista. Tal como se verifica a reputação de um canalizador (o exemplo mais citado ao longo do livro), também se deve verificar a reputação de um cientista. E existem uma série de mecanismos que podem ajudar a verificar a credibilidade de um cientista, como, por exemplo, as suas publicações em revistas com revisão por pares. Por outro lado, como a ciência é, na sua essência, uma prática colectiva não se pode tomar como certa uma única evidência (publicação) como critério. Em resposta a uma possível acusação de uma confiança cega na ciência (e nos cientistas), Oreskes sustenta que é preciso verificar qual o domínio de especialização dos cientistas e se estes estão ou não a dar a sua opinião sobre uma matéria extemporânea. Dada a sua formação intensiva e hiper-especializada num micro-tema, é até possível que estejam menos preparados para falar sobre assuntos que se encontram fora do seu domínio de especialização:
 
“Outside their domain of expertise, scientists may be no more well informed than ordinary people. They may be less so as their intense training in one area can lead them to be undereducated in others” (p. 61)
 
De modo semelhante, quando uma actriz defende que as vacinas causam autismo, ou quando um executivo da indústria petroleira sustenta que as alterações climáticas são causadas por manchas solares, devemos desconfiar porque nem a actriz é uma perita em imunologia nem o gestor é um perito em climatologia. Tal como Naomi Oreskes e Erik Conway já tinham argumentado em Merchants of Doubt. How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming (New York: Bloomsbury, 2010), confiar na ciência implica desconfiar, à partida, de pessoas e indústrias com conflitos de interesses. Não faz qualquer sentido confiar na indústria petroleira quando o tema são alterações climáticas, nem nas empresas de refrigerantes quando os assuntos são obesidade e diabetes, da mesma forma que não se pode confiar na indústria tabaqueira para avaliar as consequências do tabaco para o desenvolvimento de cancro e doenças cardiovasculares. Só se pode confiar em cientistas financiados por empresas com conflitos de interesses se estes fizerem parte da comunidade científica, apresentando os resultados da sua investigação em conferências, publicando artigos em revistas com revisão por pares, e divulgando publicamente as suas fontes de financiamento. A indústria petroleira pode ser um importante repositório de informação sobre extracção e refinação do petróleo, mas não se pode esperar que seja uma fonte de informação sobre alterações climáticas.
No segundo capítulo, Naomi Oreskes debruça-se sobre alguns estudos de caso em que a ciência falhou (Science awry), procurando ir assim de encontro a uma das perguntas que mais frequentemente lhe fizeram em conferências dirigidas a um público alargado: Se os cientistas estão sempre a enganar-se, porque é que devemos acreditar que estão certos agora em relação às alterações climáticas? Na sua resposta, Oreskes defende que ainda que o conhecimento científico seja, inevitavelmente, parcial, a substituição de teorias antigas por teorias e modelos novos não é, em si mesma, uma refutação da ciência, mas antes uma prova do seu progresso. Ao longo dos exemplos apresentados neste capítulo, a historiadora de Harvard defende que as principais características que conferem credibilidade à prática científica são: o consenso da comunidade, o método empregue, os resultados obtidos e os valores dos cientistas, incluindo a humildade para acolher críticas ao seu trabalho.
O primeiro exemplo apresentado é a história da Limited Energy Theory do médico americano e professor na Harvard Medical School Edward H. Clarke (1820–1877). Inspirado nas novas leis da termodinâmica, Clarke publicou em 1873 uma obra que, rapidamente, se tornou num autêntico best-seller. Com mais de 12 000 cópias impressas e 19 edições, Sex in Education (Boston: James R. Osgood and Company, 1873) marcou profundamente a história da educação nos Estados Unidos. No seu livro, Clarke defendia que as raparigas não deviam estudar porque, de acordo com a lei da conservação da energia, as exigências do ensino universitário iriam, certamente, levar à diminuição dos seus ovários e útero. Como, num sistema fechado, a energia não se cria nem se destrói, mas apenas se transfere e transforma, a energia gasta nos estudos teria consequências nefastas na fertilidade feminina. Naturalmente, a teoria dizia apenas respeito aos estudos e não a outras tarefas trabalhosas como a educação dos filhos ou as lides domésticas. Para Oreskes, este é um exemplo de assimetria e de aplicação incorrecta de uma teoria. Clarke aplicou a lei da conservação da energia no seu trabalho, mas a lei é válida apenas para sistemas fechados e o corpo humano é um sistema aberto—é isso, aliás que possibilita a vida! Por outro lado, aplicou-a apenas à mulher. Como seria a aplicação desta teoria ao homem?
 
Yet, while stressing the claim that if a woman was educated, her uterus would shrink, he evidently never paused to ask: if men were educated, what part of their anatomy would shrink? (p. 138)
 
Tal como a teoria do Clarke se inspirava nas leis da Termodinâmica, também o Eugenismo se inspirava na Teoria da Evolução por Selecção Natural proposta por Darwin em meados do século XIX. Porque é que não se pode melhorar a espécie humana, perguntavam os defensores de práticas eugénicas nos Estados Unidos e na Europa nas décadas de 1920 e 1930? Um dos exemplos citados por Oreskes é o caso Buck v. Bell, onde o Juíz Oliver Holmes (1841–1935) defendeu a esterilização forçada de pessoas com deficiências mentais argumentando que três gerações de imbecis eram suficientes (“Three generations of imbeciles are enough”, p. 88). Este caso marcou profundamente a jurisprudência americana e levou à esterilização forçada de dezenas de milhares de pessoas nos Estados Unidos nas décadas seguintes. Com teorias e resultados destes, como é que se pode então confiar na ciência? Ao longo deste capítulo, Oreskes reforça a importância de existir um consenso alargado em ciência e dá como exemplo a rejeição das teorias de Clarke por feministas e do eugenismo por socialistas (e católicos, deveríamos acrescentar). A contestação, sobretudo em casos polémicos, é essencial para o progresso da ciência. Contudo, é preciso distinguir entre os vários níveis de contestação. Actualmente, a contestação sobre determinados assuntos científicos—na América mas não só—é sobretudo política e cultural e ignora o consenso científico alcançado:
 
Contestation is the outcome of a conflict about authority. Second, these are not conflicting scientific pronouncements. On most of the scientific issues that are highly contested in American culture—evolution, vaccine safety, climate change—there is a scientific consensus. What is lacking is cultural acceptance by parties who have found a way to challenge science. (...) Political and cultural debate is by no means illegitimate, but political debate masquerading as science is dishonest. (p. 129)
 
Neste capítulo, Oreskes refere três exemplos: a rejeição da teoria da deriva continental, a relação entre a pílula contraceptiva e depressão e a importância de usar fio dentário. Nos casos da pílula e do fio dentário, a autora alerta para o problema do método usado em ciência. Por exemplo, para estudar os efeitos benéficos do fio dentário não se pode fazer uma experiência “double-blind”. Por outro lado, é do conhecimento geral que usar fio dentário regularmente reduz o sangramento das gengivas. Isto é, não é por não aplicarmos o método perfeito que podemos concluir que não sabemos nada: “Imperfect information is still information” (p. 134). Apesar de se conhecer os mecanismos através dos quais a pílula poderia diminuir a serotonina no sangue, foram ignorados, durante décadas, os relatos de pacientes que associavam a toma da pílula à depressão. Ora quando se conhecem os mecanismos “there is no reason to play dumb” (p. 135). Em suma, Oreskes defende a confiança na ciência como um processo social rigoroso de legitimação de factos científicos: “Our trust is not in scientists, but in science as a social process that rigorously vets claims” (p. 141).
Os quatro capítulos seguintes são comentários às palestras. Susan Lindee debruça-se sobre a história da ciência na guerra fria e a divisão disciplinar entre ciência e tecnologia. Enquanto que a primeira seria conhecimento puro (e livre de valores), a segunda seria apenas conhecimento aplicado (e por isso poroso a influências nefastas). No quarto capítulo Marc Lange serve-se do exemplo de Galileu para ilustrar as razões pelas quais se deve confiar na ciência. Tal como Oreskes, Lange defende que uma das características mais importantes na prática científica é a sua capacidade para se auto-corrigir. Porém, não possível que se ponha em causa todas as teorias científicas ao mesmo tempo:
 
One of the most important features of science is that it is self-correcting; it is able to put in jeopardy any of its theories, scrutinizing its justification. But science cannot reasonably be expected to put all of its theories in jeopardy at once. (p. 183)
 
No quinto capítulo, Ottmar Edenhofer e Martin Kowarsch reflectem sobre o papel da ciência na definição de políticas governamentais, nomeadamente no que diz respeito às alterações climáticas. No sexto capítulo, Jon A. Krosnick alerta para o problema da reprodutibilidade e para as más práticas em ciência, nomeadamente a manipulação de dados estatísticos para se obterem os resultados desejados. No sétimo e último capítulo, a historiadora de Harvard responde aos comentários e reforça a importância do consenso em ciência, e de se agir com base nas evidências científicas disponíveis actualmente, sobretudo em relação às alterações climáticas:
 
The uncertainty of future scientific knowledge should not be used as an excuse for delay. (p. 234)
 
No epílogo, Oreskes resume o argumento das paletras começando por chamar atenção para a importância da confiança no mundo:
 
All social arrangements rely on trust, and many involve expertise, be it from doctors, dentists, plumbers, electricians, car mechanics, accountants, auditors, tax attorneys, real estate appraisers, or what-have-you. Even buying a pair of shoes may rely on trusting the salesman to measure our feet properly. If trust in experts were to come to a halt, society would come to a halt, too. Scientists are our experts in studying the natural world and sorting out complex issues that arise in it. Like all experts, they make mistakes, but they have knowledge and skills that make them useful to the rest of us. The crucial component that separates science (here I include the social as well as the natural sciences) from, for example, plumbing, is the centrality of the social vetting claims. (p. 247)
 
O carácter social da ciência e o escrutínio são, para a autora, as principais forças motrizes no estabelecimento de um facto científico: “A claim that has survived critical scrutiny becomes established fact, and collectively the body of established facts constitute scientific knowledge (p. 248–249. Dada a centralidade do consenso científico no seu argumento, Oreskes salienta que ainda que não corresponda à verdade, o consenso é uma boa aproximação à verdade:
 
Consensus is essential to our argument for the simple reason that we have no way to know for sure if any particular scientific claim is true (249).
 
Bem escrita, provocadora, actual—e com um formato pouco usual na academia—Why Trust Science? é uma obra dirigida principalmente a estudantes, historiadores da ciência, cientistas e governantes. No século da pós-verdade, a sua leitura deveria obrigatória para todos aqueles que, em nome da ciência e do relativismo, defendem, acerrimamente a sua verdade.
 
 
 
Naomi Oreskes, Why Trust Science? (Princeton: Princeton University Press, 2019).
 
 
 
Francisco Malta Romeiras,
Departamento de História e Filosofia das Ciências,
Universidade de Lisboa
 




 

1 comentário:

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