Why Trust Science? é baseado nas Tanner Lectures on Human Values,
realizadas na Universidade de Princeton em 2016. Além das palestras de Naomi Oreskes, o livro inclui
comentários de Ottmar Edenhofer, Martin Kowarsh, Jon Krosnick, Marc Lange e
Susan Lindee, e uma resposta final da historiadora da ciência da Universidade
de Harvard. Neste livro, Naomi Orekes propõe-se responder à pergunta: porque é
que devemos confiar na ciência? Ao contrário do que muitos cientistas supõem, a
autora defende que não se deve confiar na ciência porque esta funciona, porque
a utilidade e operacionalidade do conhecimento científico não correspondem,
necessariamente, à verdade. Na história da ciência, houve vários modelos e
teorias que “funcionavam” e que posteriormente foram rejeitados. Basta recordar
o modelo geocêntrico de Ptolomeu.
No primeiro capítulo,
Oreskes começa por expor as diferenças entre Auguste Comte, os filósofos do
círculo de Viena, Karl Popper, Ludwick Fleck, Pierre Duhem, Thomas Kuhn, Bruno
Latour e Paul Feyerabend sobre quais os limites da ciência, o papel da
observação e da indução na construção de uma teoria científica, a validação e
refutação da ciência, e o modo como a ciência progride. Um dos argumentos
principais do livro é que os critérios que maximizam a objectividade em ciência
são: a abertura ao criticismo—nomeadamente através de práticas como a revisão
por pares—e a existência de uma comunidade aberta e diversa o suficiente para
permitir o desenvolvimento de várias opiniões. Como não há um único método
científico, e a prática das ciências depende de comunidades de pessoas que
tomam decisões que são simultaneamente empíricas e sociais, porque é que se deve
confiar na ciência? Para Oreskes, há duas razões principais: a relação contínua
entre a ciência e o mundo natural e o carácter social da prática científica. Os
cientistas são os peritos que se dedicam a estudar o mundo natural e, por isso,
devemos confiar, à partida, no seu trabalho, da mesma forma como confiamos, à
partida, num canalizador, electricista, ou dentista no normal exercício das
suas profissões. Mas como garantir a confiança num determinado cientista? Como
é que se pode saber se este ou aquele cientista não estará errado? Para
Oreskes, a resposta está na reputação e credibilidade do cientista. Tal como se
verifica a reputação de um canalizador (o exemplo mais citado ao longo do livro),
também se deve verificar a reputação de um cientista. E existem uma série de
mecanismos que podem ajudar a verificar a credibilidade de um cientista, como,
por exemplo, as suas publicações em revistas com revisão por pares. Por outro
lado, como a ciência é, na sua essência, uma prática colectiva não se pode
tomar como certa uma única evidência (publicação) como critério. Em resposta a
uma possível acusação de uma confiança cega na ciência (e nos cientistas),
Oreskes sustenta que é preciso verificar qual o domínio de especialização dos
cientistas e se estes estão ou não a dar a sua opinião sobre uma matéria
extemporânea. Dada a sua formação intensiva e hiper-especializada num micro-tema,
é até possível que estejam menos preparados para falar sobre assuntos que se
encontram fora do seu domínio de especialização:
“Outside their domain of expertise, scientists may be no more well
informed than ordinary people. They may be less so as their intense training in
one area can lead them to be undereducated in others” (p. 61)
De modo semelhante, quando uma actriz
defende que as vacinas causam autismo, ou quando um executivo da indústria
petroleira sustenta que as alterações climáticas são causadas por manchas
solares, devemos desconfiar porque nem a actriz é uma perita em imunologia nem
o gestor é um perito em climatologia. Tal como Naomi Oreskes e Erik Conway já
tinham argumentado em Merchants of Doubt. How a Handful of Scientists
Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming (New
York: Bloomsbury, 2010), confiar na ciência implica desconfiar, à partida, de
pessoas e indústrias com conflitos de interesses. Não faz qualquer sentido
confiar na indústria petroleira quando o tema são alterações climáticas, nem
nas empresas de refrigerantes quando os assuntos são obesidade e diabetes, da
mesma forma que não se pode confiar na indústria tabaqueira para avaliar as
consequências do tabaco para o desenvolvimento de cancro e doenças
cardiovasculares. Só se pode confiar em cientistas financiados por empresas com
conflitos de interesses se estes fizerem parte da comunidade científica,
apresentando os resultados da sua investigação em conferências, publicando
artigos em revistas com revisão por pares, e divulgando publicamente as suas
fontes de financiamento. A indústria petroleira pode ser um importante
repositório de informação sobre extracção e refinação do petróleo, mas não se
pode esperar que seja uma fonte de informação sobre alterações climáticas.
No segundo capítulo, Naomi
Oreskes debruça-se sobre alguns estudos de caso em que a ciência falhou (Science
awry), procurando ir assim de encontro a uma das perguntas que mais
frequentemente lhe fizeram em conferências dirigidas a um público alargado: Se
os cientistas estão sempre a enganar-se, porque é que devemos acreditar que
estão certos agora em relação às alterações climáticas? Na sua resposta,
Oreskes defende que ainda que o conhecimento científico seja, inevitavelmente,
parcial, a substituição de teorias antigas por teorias e modelos novos não é,
em si mesma, uma refutação da ciência, mas antes uma prova do seu progresso. Ao
longo dos exemplos apresentados neste capítulo, a historiadora de Harvard
defende que as principais características que conferem credibilidade à prática
científica são: o consenso da comunidade, o método empregue, os resultados
obtidos e os valores dos cientistas, incluindo a humildade para acolher
críticas ao seu trabalho.
O primeiro exemplo
apresentado é a história da Limited Energy Theory do médico americano e
professor na Harvard Medical School Edward H. Clarke (1820–1877). Inspirado nas
novas leis da termodinâmica, Clarke publicou em 1873 uma obra que, rapidamente,
se tornou num autêntico best-seller. Com mais de 12 000 cópias impressas e
19 edições, Sex in Education (Boston: James R. Osgood and Company, 1873)
marcou profundamente a história da educação nos Estados Unidos. No seu
livro, Clarke defendia que as raparigas não deviam estudar porque, de acordo
com a lei da conservação da energia, as exigências do ensino universitário
iriam, certamente, levar à diminuição dos seus ovários e útero. Como, num
sistema fechado, a energia não se cria nem se destrói, mas apenas se transfere
e transforma, a energia gasta nos estudos teria consequências nefastas na
fertilidade feminina. Naturalmente, a teoria dizia apenas respeito aos estudos
e não a outras tarefas trabalhosas como a educação dos filhos ou as lides
domésticas. Para Oreskes, este é um exemplo de assimetria e de aplicação
incorrecta de uma teoria. Clarke aplicou a lei da conservação da energia no seu
trabalho, mas a lei é válida apenas para sistemas fechados e o corpo humano é
um sistema aberto—é isso, aliás que possibilita a vida! Por outro lado,
aplicou-a apenas à mulher. Como seria a aplicação desta teoria ao homem?
Yet, while stressing the claim that if a woman was educated, her uterus
would shrink, he evidently never paused to ask: if men were educated, what part
of their anatomy would shrink? (p. 138)
Tal como a teoria do Clarke se
inspirava nas leis da Termodinâmica, também o Eugenismo se inspirava na Teoria
da Evolução por Selecção Natural proposta por Darwin em meados do século XIX.
Porque é que não se pode melhorar a espécie humana, perguntavam os defensores
de práticas eugénicas nos Estados Unidos e na Europa nas décadas de 1920 e
1930? Um dos exemplos citados por Oreskes é o caso Buck v. Bell, onde o Juíz
Oliver Holmes (1841–1935) defendeu a esterilização forçada de pessoas com
deficiências mentais argumentando que três gerações de imbecis eram suficientes
(“Three generations of imbeciles are enough”, p. 88). Este caso marcou profundamente
a jurisprudência americana e levou à esterilização forçada de dezenas de
milhares de pessoas nos Estados Unidos nas décadas seguintes. Com teorias e
resultados destes, como é que se pode então confiar na ciência? Ao longo deste capítulo,
Oreskes reforça a importância de existir um consenso alargado em ciência e dá
como exemplo a rejeição das teorias de Clarke por feministas e do eugenismo por
socialistas (e católicos, deveríamos acrescentar). A contestação, sobretudo em
casos polémicos, é essencial para o progresso da ciência. Contudo, é preciso
distinguir entre os vários níveis de contestação. Actualmente, a contestação
sobre determinados assuntos científicos—na América mas não só—é sobretudo
política e cultural e ignora o consenso científico alcançado:
Contestation is the outcome of a conflict about authority. Second, these
are not conflicting scientific pronouncements. On most of the scientific issues
that are highly contested in American culture—evolution, vaccine safety, climate
change—there is a scientific consensus. What is lacking is cultural acceptance
by parties who have found a way to challenge science. (...) Political and
cultural debate is by no means illegitimate, but political debate masquerading
as science is dishonest. (p.
129)
Neste capítulo, Oreskes refere três
exemplos: a rejeição da teoria da deriva continental, a relação entre a pílula
contraceptiva e depressão e a importância de usar fio dentário. Nos casos da
pílula e do fio dentário, a autora alerta para o problema do método usado em
ciência. Por exemplo, para estudar os efeitos benéficos do fio dentário não se
pode fazer uma experiência “double-blind”. Por outro lado, é do conhecimento
geral que usar fio dentário regularmente reduz o sangramento das gengivas. Isto
é, não é por não aplicarmos o método perfeito que podemos concluir que não
sabemos nada: “Imperfect information is still information” (p. 134). Apesar de
se conhecer os mecanismos através dos quais a pílula poderia diminuir a
serotonina no sangue, foram ignorados, durante décadas, os relatos de pacientes
que associavam a toma da pílula à depressão. Ora quando se conhecem os
mecanismos “there is no reason to play dumb” (p. 135). Em suma, Oreskes defende
a confiança na ciência como um processo social rigoroso de legitimação de
factos científicos: “Our trust is not in scientists, but in science as a social
process that rigorously vets claims” (p. 141).
Os quatro capítulos
seguintes são comentários às palestras. Susan Lindee debruça-se sobre a
história da ciência na guerra fria e a divisão disciplinar entre ciência e
tecnologia. Enquanto que a primeira seria conhecimento puro (e livre de
valores), a segunda seria apenas conhecimento aplicado (e por isso poroso a
influências nefastas). No quarto capítulo Marc Lange serve-se do exemplo de
Galileu para ilustrar as razões pelas quais se deve confiar na ciência. Tal
como Oreskes, Lange defende que uma das características mais importantes na
prática científica é a sua capacidade para se auto-corrigir. Porém, não
possível que se ponha em causa todas as teorias científicas ao mesmo tempo:
One of the most important features of science is that it is
self-correcting; it is able to put in jeopardy any of its theories,
scrutinizing its justification. But science cannot reasonably be
expected to put all of its theories in jeopardy at once. (p. 183)
No quinto capítulo, Ottmar Edenhofer
e Martin Kowarsch reflectem sobre o papel da ciência na definição de políticas
governamentais, nomeadamente no que diz respeito às alterações climáticas. No
sexto capítulo, Jon A. Krosnick alerta para o problema da reprodutibilidade e
para as más práticas em ciência, nomeadamente a manipulação de dados
estatísticos para se obterem os resultados desejados. No sétimo e último
capítulo, a historiadora de Harvard responde aos comentários e reforça a
importância do consenso em ciência, e de se agir com base nas evidências
científicas disponíveis actualmente, sobretudo em relação às alterações
climáticas:
The uncertainty of future scientific knowledge should not be used as an
excuse for delay. (p.
234)
No epílogo, Oreskes resume o
argumento das paletras começando por chamar atenção para a importância da
confiança no mundo:
All social arrangements rely on trust, and many involve expertise, be it
from doctors, dentists, plumbers, electricians, car mechanics, accountants,
auditors, tax attorneys, real estate appraisers, or what-have-you. Even buying
a pair of shoes may rely on trusting the salesman to measure our feet properly.
If trust in experts were to come to a halt, society would come to a halt, too.
Scientists are our experts in studying the natural world and sorting out
complex issues that arise in it. Like all experts, they make mistakes, but they
have knowledge and skills that make them useful to the rest of us. The crucial
component that separates science (here I include the social as well as the
natural sciences) from, for example, plumbing, is the centrality of the social
vetting claims. (p. 247)
O
carácter social da ciência e o escrutínio são, para a autora, as principais
forças motrizes no estabelecimento de um facto científico: “A claim that has
survived critical scrutiny becomes established fact, and collectively
the body of established facts constitute scientific knowledge (p. 248–249.
Dada a centralidade do
consenso científico no seu argumento, Oreskes salienta que ainda que não
corresponda à verdade, o consenso é uma boa aproximação à verdade:
Consensus is essential to our argument for the simple reason that we
have no way to know for sure if any particular scientific claim is true
(249).
Bem escrita, provocadora, actual—e
com um formato pouco usual na academia—Why Trust Science? é uma obra dirigida
principalmente a estudantes, historiadores da ciência, cientistas e
governantes. No século da pós-verdade, a sua leitura deveria obrigatória para
todos aqueles que, em nome da ciência e do relativismo, defendem, acerrimamente
a sua verdade.
Naomi Oreskes, Why Trust Science? (Princeton: Princeton University Press, 2019).
Francisco Malta Romeiras,
Departamento de História e Filosofia
das Ciências,
Universidade de Lisboa
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