segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Reflexões a propósito de um livro - 9

 
 
 


É importante considerar os riscos associados às interpretações por analogia na compreensão de fenómenos sociais e históricos. Na análise comparativa dos diferentes processos coloniais liderados por países europeus no século XX, se faz sentido comparar a atitude de Portugal com a atitude de outras potências coloniais europeias como a Inglaterra, a França ou a Bélgica, fará muito mais sentido comparar a evolução dos territórios de Angola e de Moçambique, o coração do império português, com a evolução dos territórios vizinhos da África Austral. Em primeiro lugar e sobretudo, com a decisiva África do Sul (e Namíbia), a potência regional, logo seguida pela Rodésia do Sul (Zimbábue). Num segundo plano, com os demais países fronteiriços, todavia com um peso estratégico bem mais relativo: Rodésia do Norte (Zâmbia), Niassalândia (Malawi), Tanganica (Tanzânia) ou o Congo. Num terceiro plano, pode considerar-se o Botswana, embora neste caso sem fronteiras com Angola ou Moçambique.
Mesmo que focássemos a atenção apenas na Europa, não é menos relevante considerar que a segunda guerra mundial e as suas profundas sequelas atingiram de forma directa e, por isso, muito significativa as potências europeias com colónias na África Subsaariana: França, Inglaterra, Bélgica e, embora recente, a Itália. Houve uma excepção: Portugal. Pode acrescentar-se o contexto peninsular marcado pela violenta guerra civil de Espanha (1936-1939), a antecâmara da segunda guerra mundial, o que torna mais saliente a singularidade portuguesa em contexto europeu. Logo, um país que teve um percurso diferenciado na conjuntura que condicionou de modo mais marcante a Europa no século XX e que, de alguma forma, simbolizou para os países envolvidos uma ruptura com um certo tempo histórico, não é tão absurdo quanto isso que esse país alimentasse representações sociais, partilhadas por elites e pessoas comuns, que projectassem essa sua excepcionalidade no ciclo histórico do império colonial africano.
É certo que parte importante da manutenção das lógicas de continuidade histórica podem ser remetidas para os regimes salazarista e marcelista, mas é também certo que uma opção dessa natureza não existe nem resiste no vácuo social.
E como referi no início, colonizar e descolonizar são fenómenos do tempo longo dependentes de circunstâncias históricas particulares de cada caso. Mesmo considerando que fosse previsível, desde os anos cinquenta, a antecipação de tendências gerais de longa duração favoráveis às independências africanas, o que faz a história é a forma concreta como essas tendências se materializam em cada caso. E não é de somenos considerar que nenhuma potência colonial europeia largou a sua jóia da coroa de mão beijada (tese do Prof. Maciel Santos). Nem os ingleses a Índia, nem os franceses a Argélia (onde os franceses travaram uma guerra de guerrilha entre 1954 e 1962). Angola não destoou. Como é fácil constatar, existem desfasamentos nos processos e no tempo, mas não de orientação política de fundo.
Terá até sido bem mais coerente ou homogéneo o modo como terminou a dominação colonial portuguesa em África do que o desfecho da presença colonial inglesa neste continente. Tal torna-se visível se considerarmos o prolongamento de regimes brancos em estados africanos com independências formais: os casos da Rodésia do Sul (1980, Zimbábue) e da África do Sul/Namíbia (1990). Estes regimes podem ser considerados fórmulas reinventadas de dominação colonial branca europeia que resistiram na África Austral para lá do final do ciclo colonial português e que se inserem na velha lógica britânica de indirect rule.
Nas pesquisas de campo que realizei em Moçambique não é por acaso que as pessoas comuns quando comparam a colonização portuguesa com a inglesa, como é seu hábito, persistem nessa comparação até ao final do ciclo colonial português. Quem vê a África Austral a muitos e muitos quilómetros, a partir da longínqua Europa, é natural que se regule por referentes formais, legais, burocráticos. Só que a vida vivida e auto-representada pelas pessoas comuns em espaços territoriais concretos obedece a lógicas que lhes são peculiares. Logo, na perspectiva em que situo a questão, é plausível considerar que os portugueses saíram primeiro, mais depressa e de modo mais radical da África Austral do que os outros europeus.
Em suma, as teses que criticam a obstinação do regime português do Estado Novo em prosseguir na aventura colonial contra todas as evidências não podem ser necessariamente interpretáveis à letra, nem na actualidade e muito menos à época.
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 
 

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