terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Reflexões a propósito de um livro - 10

 
 
 
 
 
O modo como pensamos as relações entre os estados e as sociedades constitui matéria a ter em conta, posto que são precisamente essas interações que produzem o que entendemos por política. Para o que está em causa, e por muito legítima que possa ser, a utilização dos conceitos estado colonial e estado pós-colonial na compreensão das realidades africanas é problemática. Tal utilização acaba por dificultar mais do que facilitar as análises sobre a dominação colonial europeia em África nos séculos XIX e XX. Os obstáculos resultam quer da forte carga afetiva que tais conceitos comportam, como se eles nos impulsionassem aprioristicamente a identificar na história um lado mau/injusto e um lado bom/justo e quanto mais valorativas e emotivas são as apreciações menor a capacidade analítica, como escreveu Marx Weber (2005 [1919] «A ciência como vocação» in Ibidem, p.135); quer sobretudo porque as expressões estado colonial «versus» estado pós-colonial induzem à partida pressupostos de descontinuidade histórica na estrutura e funcionamento dos estados com as transições para as independências africanas, descontinuidades no tipo de domínio dos estados sobre as sociedades que, na verdade, podem não ser tão evidentes quanto à partida supomos.
Quando se pensa o estado a partir das sociedades sob a sua tutela, quando se pensa o estado com base nas representações sociais (ou nos discursos de senso comum) descobrem-se outras possibilidades de interpretar a natureza e ação do poder central. Nelas os conceitos de estado colonial e estado pós-colonial surgem relativizados. Torna-se, por isso, preferível utilizar apenas o conceito de estado, sem quaisquer adjetivações.
Recorrendo, a título exemplificativo, ao estudo de caso que realizei em Moçambique resultou consistente a tese de existir, no tipo de domínio do estado sobre as sociedades, um maior distanciamento entre os dois grandes momentos do período pós-colonial (a primeira república de regime monopartidário, entre 1975 e inícios dos anos noventa, «versus» a segunda república do multipartidarismo, a partir dos anos noventa), do que entre o período colonial (até 1975) e o período pós-colonial imediatamente seguinte (Ribeiro 2008, op. cit.).
Não se podem, contudo, fazer generalizações abusivas. Todavia, identifiquei três núcleos que marcam uma continuidade significativa entre o tipo de domínio exercido pelo estado em Moçambique no tempo colonial e o tipo de domínio exercido pelo estado em Moçambique durante a governação do primeiro presidente do país independente, Samora Machel (1975-1986). Ou seja, a partir da perspetiva do senso comum é legítimo inferir que, com a independência, o regime político mudou, mas o tipo de domínio do estado sobre as sociedades nem tanto.
Um primeiro núcleo que sustenta a tese da continuidade entre o colonial e o pós-colonial tem a ver com o modelo de interação do estado com o mundo rural em Moçambique, assente numa postura impositiva e violenta, espelhada no deslocamento compulsivo das populações em algumas áreas. Primeiro para os aldeamentos, na época colonial. Depois para as aldeias comunais, durante a governação pós-colonial monopartidária. Nada de semelhante ocorreu desde a instituição do multipartidarismo em Moçambique nos anos noventa.
Um segundo núcleo prende-se com a regulação coerciva da ordem pública, avaliada como tendencialmente eficaz pelas pessoas comuns, cujo efeito positivo era a garantia da estabilidade e previsibilidade do social. Enquanto no multipartidarismo surgido nos anos noventa em Moçambique, em pleno período pós-colonial, são conferidos ao estado atributos como os de apático, passivo, laxista ou mesmo imoral na relação com a lei e a ordem, por seu lado, no sistema colonial e na governação de Samora Machel o estado, nos discursos de senso comum, ganha atributos de autoritário e capaz de fazer respeitar a lei e a ordem (sobretudo na época colonial) ou os princípios de governação (sobretudo durante o monopartidarismo socialista).
Um terceiro e último núcleo em que sustento a tese da continuidade entre o colonial e o pós-colonial quanto ao tipo de domínio do estado sobre as sociedades relaciona-se com o controlo, pelas autoridades, do acesso e usufruto individual a bens de elevado valor material ou simbólico: «Se você tivesse muito dinheiro» (no tempo colonial) ou «Se você tivesse um bom relógio ou uma boa casa» (no tempo do presidente Samora Machel), «iam querer saber ‘onde você apanhou dinheiro?’» ou «‘como você conseguiu isso?’». A partir dos anos noventa esse tipo de controlo por parte das autoridades deixou de existir.
Este conjunto de referências baralha teses apressadas sobre a descontinuidade entre o colonial e o pós-colonial em África no que tem a ver com a sedimentação das estruturas sociais naquilo em que elas dependem da natureza do poder central. Verificaram-se, sem dúvida, transformações importantes com os acessos às independências, mas persistiram também continuidades não menos significativas.
Retorno ao exemplo de Moçambique para assinalar uma hipótese interpretativa diferente, mas que corrobora a ideia dos cuidados analíticos necessários nas interpretações das relações entre o estado e as sociedades ao longo do tempo. Se em pleno período pós-colonial, com a transição do monopartidarismo para o multipartidarismo, o estado passou a integrar uma dimensão de contratualização na sua relação com as populações, sobretudo por via da instituição de eleições multipartidárias livres realizadas desde 1994, essa dimensão de contratualização retomou de algum modo uma tendência equiparável introduzida nos inícios dos anos sessenta, em plena época colonial, com o fim do estatuto do indigenato, do trabalho forçado e das culturas obrigatórias do algodão e do arroz, tendência depois alterada por atitudes bem mais impositivas por parte do poder central com o acesso à independência em 1975.
O essencial a inferir deste ponto é que a eficácia na compreensão da época colonial cresce quanto maior for o conhecimento com alguma sustentabilidade da época pós-colonial e da atualidade dos países africanos, o que implica a procura de lógicas de continuidade na longa duração temporal.
 
 
Este foi o último desta série de dez textos que servem de introdução à leitura do livro O colonialismo nunca existiu! Colonização, racismo e violência: manual de interpretação (Lisboa, Gradiva, 2013).
 
Termino com agradecimentos: (i) aos que participaram e/ou divulgaram esta iniciativa e permitam-me que destaque os blogues que fizeram referência directa aos textos: Domadora de Camaleões, Diário de um Sociólogo e Blasfémias (agradeço que me informem se omiti algum); (ii) à editora Gradiva por ter prontamente apostado na publicação da obra; e (iii), por último, a António Araújo por ter aceitado, sem hesitações e desde a primeira hora, partilhar os riscos de uma iniciativa como esta no Malomil, numa época em que o debate público sacrifica vezes de mais o tempo e o espaço necessários à sustentabilidade e coerência de temas e argumentos.

Resta-me a certeza de não ter enveredado por argumentos gastos, inconsequentes, empiricamente insustentáveis ou que atentassem contra a dignidade de indivíduos ou povos. Não sei se existem caminhos alternativos para renovar com responsabilidade cívica domínios do saber (demasiado) sensíveis que, não raro, estagnam em estádios que impedem o reforço da qualidade de vida de muitas e muitas pessoas dos mais diversos cantos do mundo.

 

Feliz Natal e Votos de Bom Ano de 2014!
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 
 
 

5 comentários:

  1. A vivência “in loco” do sentimento de um povo é elementar para aferir o estado do mesmo. Estou convicto que esse fator dignifica em grande medida a obra que nos apresenta.

    Votos de um Feliz Natal e Próspero 2014
    Henrique de Sousa

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  2. Caro Henrique de Sousa
    Perceber o «estado» de um povo é uma tarefa permanente, eternamente inacabada, difícil, sobretudo quando se tem por base um país tão heterogéneo como Moçambique. Mas é preciso ir tentado da melhor maneira possível.
    Obrigado pelo comentário e reitero os votos de Boas Festas!
    Gabriel Mithá Ribeiro

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  3. Vivi lá.
    Uma pergunta se pode colocar, existe um país chamado Moçambique, ou simplesmente a régua e o esquadro traçaram arbitrariamente uma ingénua nação?
    Ou por outra palavras, quando é que a África é dividida nas verdadeiras nações baseadas nas etnias que são mais fortes que fantasiosas nacionalidades.

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    1. Caro F.A.
      Não só existe um país chamado Moçambique como uma identidade territorial nacional que lhe confere conteúdo. O problema pode estar na utilização do termo «nação» porque, de uma ou de outra forma, deixa-nos amarrados à transposição para África de um modelo europeu para sociedades que conseguem cruzar heterogeneidades. Por outro lado, países africanos como Moçambique têm sido realidades dinâmicas em contínua reinvenção. Não são mais os mesmos de há cinquenta ou cem anos. Quando na segunda frase do seu comentário se refere às «verdadeiras nações baseadas nas etnias» tenho como hipótese relativamente segura que essas realidades «passaram à história». Fiz trabalho de campo ao longo de década e meia em diversos pontos de Moçambique (espaços rurais e urbanos) e não é difícil encontrar referentes nacionais que orientam o sentido da vida de pessoas e comunidades, mesmo nos espaços rurais. A guerra civil (1976-1992), por exemplo, ao ter tido implicações praticamente em todos os espaços rurais (alguns distritos rurais ficaram despovoados), alterou profundamente as dinâmicas identitárias nos espaços rurais como nunca no passado. Isto não volta atrás. Acrescento que muitas vezes temos a tentação de ficar presos às «profundas raízes culturais e identitárias africanas». Se essa atitude pode ter alguma lógica, a verdade é que raízes muito profundas tanto prendem a um passado remoto quanto, por serem muito profundas, acabarem por ser facilmente rompidas, obrigando as comunidades a reinventarem o seu caminho. Nesta fase, por exemplo, Moçambique vive um momento ambivalente de ultrapassagem da anomia gerada pela guerra civil (um «clássico» que vem de guerras civis como a americana ou a espanhola e ainda podemos estudá-lo «ao vivo»), ao mesmo tempo que se geram novos fenómenos de disrupção social como os raptos. Se juntarmos o multipartidarismo e as reinvenções no domínio da economia ou a massificação do ensino, apesar de todas as interrogações associadas, temos de colocar a hipótese de em sociedades como a moçambicana estar qualquer coisa associada ao «mundo novo». O problema é não sabemos bem o que ele é. Mas a solução pode não ser a de ficarmos presos a determinados conceitos de outras épocas. A verdade é que este «mundo novo» pode acabar por desembocar em dimensões mais próximas de modelos culturais e ideológicos europeus do que supomos, por exemplo comparativamente à Ásia ou à América Central e do Sul. É preciso continuar a tentar perceber. São meras hipóteses. Isto já vai longo.
      Abraço,
      Gabriel Mithá Ribeiro

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    2. Muito obrigado.
      Não estarei cá para ver mas acredito que dentro de cinquenta anos com o aumento da alfabetização com um também aumento do nível de vida as diferenças étnicas e religiosas darão origem a conflitos mais ou menos cruéis que terminarão com o desmembramento de muitas nações artificiais, aliás quase todas o são.
      Os pré-exemplos estão aí, Egipto, Nigéria, Mali, Uganda etc.
      Um macua nunca aceitará ser governado por um maconde e vice-versa.
      De momento toleram-se.
      Melhores cumprimentos

      Encontrado na net
      http://www.usp.br/revistausp/68/19-omar-ribeiro.pdf

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