quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A família de negro.






Henri Cartier-Bresson
Lisboa, 1955


 
  
No café do bairro, uma família vem sempre tomar o pequeno-almoço na hora em que eu leio os jornais. Esta tribo madrugadora tem um pormenor esmagador: estão todos vestidos de preto há mais de um ano. Todos os dias, a sua presença pinta um quadro escuro, um Rothko caiado a breu, uma mancha de um preto absoluto, baço, sem reflexos de luz, sem brechas de cor na muralha de Jericó. No meio do colorido profano da cidade, o luto terminal daquelas quatro pessoas, avô, avó, mãe e filho, marca uma diferença. Apesar de estarem vestidos de negro, eles é que têm toda a cor e luz do café, da rua, do bairro. Não dizem os cientistas que os buracos negros engolem as partículas de luz do universo? No meio das unhas de gel das meninas do Pingo Doce, no meio do cheiro a farandol das cabeleireiras que têm penteados de três cores, no meio da brasileira decotada que faz de babá da velhota do terceiro esquerdo, no meio da executiva ruiva, no meio do ruído dos telemóveis, ipads e televisão, no meio dos palavrões em cascata das miúdas da escola e dos pedreiros da obra ao lado, no meio disto tudo, dizia eu, aquele silêncio enlutado é que marca o ritmo.

A família de negro está dessintonizada, está em AM quando toda a gente está mergulhada no FM, está a balouçar levemente a cabeça quando todo o mundo está num frenesim de ancas e bundas dançantes, está tocar um Requiem no meio da Kizombada geral. Repare-se que é mesmo um Requiem e não um folclore chorado por obrigação social. Há ali um respeito sério pela perda de alguém, provavelmente o pai da criança. E este luto que parece tinta florescente aos meus olhos de Záqueu nasce da disciplina da fé, uma fé que obriga a encarar de frente a morte, que não coloca a perda debaixo do tapete, porque o futuro não se constrói na negação da dor, o futuro daquela criança não se faz com uma família a fingir que um tufão moral não passou por ali. Sim, a família de negro é o arquipélago das Filipinas depois da catástrofe, e assumir a dimensão do desastre é o primeiro passo do caminho que leva à esperança.

Cercado por uma sociedade construída na negação de Deus e na ilegalização do luto, esta família de negro é um pelourinho onde penduro a minha fé todos os dias. Não, não estou a dizer que irei fazer lutos integrais ou que irei encher o roupeiro com trapos negros. Aliás, se iniciasse uma conversa com estas quatro pessoas, provavelmente ficaria horripilado com a sua noção de “moral e bons costumes”. Mas isso não me impede de admirar a sua coragem, a sua bravura discreta e espampanante ao mesmo tempo. No meio de tanta gente que se julga rebelde, eles é que são os verdadeiros iconoclastas. A fé é a nova rebeldia, a suprema transgressão, a desobediência que resta. No passado, durante a geração dos meus pais, recusar a fé era um acto iconoclasta. Mas, hoje em dia, depois de décadas e décadas de licenciosidades, de profanações, de recusas de Deus, de derrubes de tabus e dogmas, de fugas ao luto, depois deste vendaval profano, dizia eu, a iconoclastia só pode estar nos crentes, naqueles que dizem “eu acredito”, “sim, eu faço luto”. Lamento, mas aquela família de quadradões, de botas de elástico, de beatos, é a única iconoclasta que eu conheço. Os modernos que olham com desdém para o seu luto é que compõem a ortodoxia.
Bom Natal.  
 
 
Henrique Raposo




Crónica publicada no semanário Expresso, de 14/12/2013,
e gentilmente cedida pelo autor ao Malomil. Obrigado, Henrique!  




5 comentários:

  1. Obrigado Henrique, e bom Natal para você também. Mas a tinta não será "fosforescente"?

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  2. Grande texto e grande capacidade de "ver".
    Bom Natal para si e para os seus.

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  3. Parabéns, Henrique Raposo!
    "depois de décadas e décadas de licenciosidades, de profanações, de recusas de Deus, de derrubes de tabus e dogmas, de fugas ao luto, depois deste vendaval profano" eis que Raposo me permitiu descobrir que Nossa Senhora de Fátima afinal é Erica Fontes, todas umas grandes malucas iconoclastas. Também fiquei a perceber que o padre João Seabra afinal é do Bloco de Esquerda, ou que o Daniel Oliveira é do Comunhão e Libertação. Confusos!? Perguntem ao Raposo. Ele é muito esperto. É o candidato a Nelson Rodrigues na pastelaria mais próxima.

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