sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Maria das dores.

 
 
 
 
La Cueva de las Manos


 
A Joana às vezes quer ver coisas. Hoje à noite eram pinturas rupestres. Mostrei-lhe as dos animais, claro, e aquelas de que mais gosto: La Cueva de las Manos, na Patagónia. A Joana sabe o que são «pinturas rupestres» porque anda a aprender na escola o que foi a evolução dos homens e das mulheres, aquilo a que chamamos «História». É complicado explicar a evolução a uma criança. Sobretudo quando duvidamos que exista. Sempre que vejo as mãos rupestres da Patagónia lembro-me de um quadro que despertou tremenda polémica: Myra, de Marcus Harvey, o retrato da famosa assassina de crianças, Myra Hindley. Não vou entrar na controvérsia que, entre outras obras, o quadro suscitou quando foi exibido na exposição Sensation, em 1997. Se hoje em dia procurarmos o nome de Marcus Harvey – aqui na Wikipedia, por exemplo – o que aparece é sempre, mas sempre, a tela Myra. Porquê? Porque é feita a partir de uma laboriosa junção das pinturas de uma mão, em várias tonalidades. De uma mão de uma criança. De crianças como as que foram mortas por Myra Hindley – a qual, aliás, escreveu da prisão, dizendo que o quadro não deveria ser exibido pois tal representava uma ofensa não apenas para as suas vítimas mas para as famílias de qualquer criança que tenha sido morta.  
 
 
Myra Hindley
 
 
Marcus Harvey
Myra
1995

 
Saber se o quadro deve ser mostrado é problema delicado, em que não entro. Eu próprio estou a mostrá-lo aqui, não é verdade? Pergunto-me, no entanto, que evolução terá havido entre La Cueva de las Manos, pintada há 9000 anos, e Myra, datada de 1995. Retrocesso, degradação? Não sei. Talvez tenha havido sacrifícios humanos nas grutas com mãos da Patagónia, possivelmente. Mortes de crianças às mãos de Myra Hindley, isso houve de certeza.
 
Manoela Lemos e Mariana Pêgas, A Dor da Gente

 
 
Não mostrei nada disto à Joana, como é óbvio, pois ninguém deseja o sofrimento de um filho, facto que torna ainda mais perturbador a exibição do quadro provocatório de Marcus Harvey. Quando tiver a idade certa, talvez a mini-Joana sofra, como as «Joanas» que, a partir da música de Chico Buarque, dão o mote a um projecto das fotógrafas brasileiras Manoela Lemos e Mariana Pêgas. Pegando em Notícia de Jornal, retratam mulheres comuns – e as dores vulgares dos seus amores. Há várias mulheres, várias «Joanas», que viveram e sofreram. Uma dor diferente das vítimas dos Moors murders ou dos seus familiares. Ainda assim, uma dor, que é a delas. Íntima mas transmissível, aqui.




 

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