Da onomatopeia como uma
das belas-artes
Como temos visto, a José Rodrigues
dos Santos falta cada vez mais vigor e potência, na triste andropausa literária
em que está mergulhado. Mas, como acontece a alguns cavalheiros de certa idade,
que quando jovens se entregaram aos maiores sensualismos e lubricidades, JRS arranjou,
no entardecer da vida, compensações e alternativas. Poderia ter-lhe dado para a
filatelia húngara ou para a BD de Manara, para as colegiais japonesas ou para a pesca do safio, mas,
além de escrever estes livros infantis, José encontrou outro hobby paliativo: a criação doméstica
de onomatopeias. Cuida delas no logradouro de sua casa, pastoreia-as ao som de
uma flautinha e solta-as de quando em quando, como aos gases que dão mote a um
soberbo diálogo do bastante gasoso A Vida Num Sopro
(na página 30, quando Amélia conta que o pai “morreu com os gases”, Luís Afonso
pergunta “- Quais gases?”; sem se desfazer, Ana Amélia responde: “- Os da
guerra, claro. O papá era cabo no regimento 10 aqui de Bragança.”).
Na História da Literatura, é frequente um livro definir-se pela frase de
arranque, que as regras mandam ser breve, mas marcante e incisiva. A Recherche de
Marcel Proust começa com “Durante muito tempo fui para a cama cedo.”; Albert
Camus principia L’Étranger
com um cortante “Hoje, a minha mãe morreu.” É avassalador o início de Anna Karénina, de
Léon Tolstoi: “Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes são-no cada
uma à sua maneira.” Pois bem, alinhando pelo diapasão clássico dos grandes
mestres, José dos Santos abre magistralmente O Sétimo Selo da
seguinte forma:
“Crrrrrrrrrrrr.”
Exactamente isso: Crrrrrrrrrrrr.
Nessa mesma primeira página de O Sétimo Selo, a
que começa as hostilidades, temos mais quatro Crrrrrrrrrrrr.
Trata-se, aparentemente, do barulhinho próprio das comunicações-rádio, que José
Rodrigues dos Santos, ciente da indigência dos seus recursos estilísticos,
utiliza para imprimir dinamismo e vivacidade à narrativa, criando “ambientes”
cinematográficos série B que o leitores consigam visualizar. Com simples
descrições não íamos lá, não há estilo e talento que permita dispensar a
flatulência onomotapaica. E assim, engrenada a onomatopeia, é só pô-la a
render. Crepitam mais quatro Crrrrrrrrrrrr na
página 12, outros três Crrrrrrrrrrrr na
página 13. Solitário, apenas um Crrrrrrrrrrrr na
página 16. Mas, logo na página seguinte, somos recompensados com mais um Crrrrrrrrrrrr e,
em versão long-play,
um potentíssimo
Crrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr.
Incomoda os ouvidos?
Estes livros não são para meninos. É assim mesmo, cinquenta e cinco vezes
teclou Rodrigues dos Santos na letra “r” do alfabeto. Mas, temos de admiti-lo,
aliviou uma sonora onomatopeia. Valeu o esforço. Não saciado, volta a escrever
cinco vezes, na página seguinte, Crrrrrrrrrrrr. Um
derradeiro Crrrrrrrrrrrr
na página 19 e, folhas depois, ouve-se um pesado compasso: Bump-bump, bump-bump,
bump-bump. Batuques na selva, sons africanos? Não, é o pulsar do coração de
Howard Jawson, em cadência acelerada. Mal avançamos duas ou três páginas e
somos varados por uma substância psicoactiva ilícita: Crack. O barulho
de um tiro. Crack.
Novo disparo. Crack.
E o último, concludente, disparado à queima-roupa na testa do moribundo. Crack.
Regressando em Fúria Divina,
Rodrigues dos Santos fez sair novamente da toca o seu rebanho de onomatopeias,
que aparecem em fila indiana, muito compostas, prontas para a fucking acção. Ploc (assim fazem
as pistolas disparadas com silenciador); Clic (caiu a
linha telefónica); Paf
(já lambeste uma estalada). Toc. Toc. Toc.,
toca o martelo na mesa (p. 74) ou os dedos na porta (p. 88). Pssst!, é o
vendedor da loja de cachimbos de água a convocar o Ahmed. Pak (caiu o
martelo com estrondo); Trrrr-trrrr…
trrr-trrr… (chamam ao telemóvel); Click (a chamada
foi abaixo); Crrrrrrr
Crrrrrrr Crrrrrrr (calma, desta não são tiros de metralhadora, mas um
telemóvel a tocar a meio da noite). Coff! Coff!,
tosse Tomás em Lahore. Clac, fecha-se a
porta da cela, nas costas do condenado. Crrrrrrr, quando
o telefone toca, apitando de novo, e por três vezes, na página 314 (em Fúria Divina, a
expressão Crrrrrrr
é arranhada vinte e duas vezes, batendo por um ponto os vinte e um Crrrrrrr de O Sétimo Selo). Pah. Pah., é o
som do punhal quando apunhala e mata. Triiimmm, alguém
bate à porta. Tac-tac-tac-tac-tac,
temos metralhadora à solta na página 452. Pah. Pah. Pah., regressou
o punhal cantante? Não, é só uma pistola Walther a fazer misérias na narrativa.
Mais uns toques para a galeria das sonoridades telefónicas: Trrr-trrr (móvel)
e Tut-tut
(fixo). Na ponta final, há tiroteio em Manhattan, com Pah para lá e Pah para cá. Página 559,
ouvem-se os disparos: Pah. Pah. Pah. Pah.
Pah. Cinco balázios. Ahmed tomba na ambulância que levava a bomba nuclear
mas a questão só ficará arrumada à rajada; a metralhadora então avança Crack-crack-crack-crack-crack, e acabou.
Esta pulsão onomatopaica de Rodrigues dos Santos tem duas causas. A primeira, e
mais óbvia, é do foro sexual e ficamos por aqui. A segunda é do domínio
gastrointestinal, devendo-nos lembrar que, em A Fórmula de Deus,
Tomás é acometido por um ataque de diarreia após jantar em Teerão, o mesmo
acontecendo com o presidente dos Estados Unidos, concluída uma reunião na Casa
Branca com um alto funcionário da CIA (p. 337). Já antes, em A Filha do Capitão,
a família Silva Brandão ficara negativamente impressionada com os “excrementos
e rios de urina que deslizavam rua abaixo” pela capital do país, a ponto de o
patriarca Rafael proclamar, com a sabedoria própria da aldeia da Carrachana:
“Esta cidade está cheia de merda” (p. 27). Na mesma obra, a higiene dos
Brandões é meticulosamente analisada e escrutinada. Até certa altura, “as
necessidades eram feitas de cócoras no quintal, atrás da pocilga” e “limpar o
rabo foi um conceito desconhecido nos primeiros anos” (a limpeza do rabo,
sobretudo de idosos, é um conceito muito conhecido e presente na obra romanesca
de Rodrigues dos Santos, como O Sétimo Selo, p.
81 e p. 327, ou A
Fórmula de Deus, p. 461). Depois, verificou-se um progresso sanitário,
quando o filho João começou a comprar por dez réis O Século para
“sondar as propostas de emprego e conhecer a evolução dos jogos do Football
Club Lisbonense”. Os mais novos passaram então a “usar as folhas gigantes do
jornal para se limparem depois de defecarem, mas os pais não foram em
modernices”. O patriarca Rafael, por ser analfabeto (sic), continuou a
não manusear ou a passar os olhos pelo periódico lisbonense e Mariana, sua
mulher submissa, “partilhava o mesmo ponto de vista” (pp. 58-59). Encarcerado
numa prisão egípcia, o jovem Ahmed de Fúria Divina “urinou
longamente para o buraco fétido”, a retrete colectiva onde “o fedor a fezes era
especialmente forte”, registando-se ainda “uma nuvem de moscas a zunir em torno
da latrina” (“as moscas zuniam em fúria sobre o balde” em A Vida Num Sopro,
p. 512). Será aí, junto à latrina, que, à falta de espaço alternativo, o pobre
Ahmed pernoita, adormecendo derrotado e horrorizado, e com um esgar enojado.
Saíra do seu lugar a meio da noite, após ter sentido a “bexiga apertar” e a
“necessidade de urinar” (p. 224). Até em obras mais recentes, como O Homem de
Constantinopla, há uma bexiga a apertar, mas devido a um ataque de tosse
(p. 169), e nunca nos esqueçamos “do bebé que ronrona e dorme e come e defeca e
ronrona e dorme e come e defeca”, fazendo tudo isso na página 80 de O Sétimo Selo. Em
A Vida Num Sopro,
dois amigos discutem os avanços verificados na afirmação dos direitos das
mulheres, dizendo que, com tanto progresso, só faltava “vê-las mijarem de pé!”
(p. 138); nessa mesma novela, o protagonista é preso pela polícia política de
Salazar e, na prisão, apresentam-lhe um “cocktail putrefacto
de odor a mofo misturado ao fedor ácido da urina e das fezes” (p. 510).
Neste apontamento gástrico-urinário, recordemos ainda que, na página 55 de Fúria Divina,
existe uma interessante discussão sobre se as baratas sopram vento na língua de
Montaigne (“Oiça lá, as baratas peidam-se em francês? Não, pois não?”). Ah,
aparece também uma rã que se solta n’A Fórmula de Deus
(“não há uma rã neste planeta que seja capaz de dar um peido sem que nós
saibamos”, p. 61; na tradução americana, "A toad can't fart anywhere on this planet without us knowing it": The Einstein Enigma, p. 41).
Provavelmente existe
uma relação causal entre o declínio do sexo e esta monomania das onomatopeias.
De facto, quanto mais rareiam as alusões ao comércio carnal mais frequentes são
os Crrrrrrrrr
e os Crack-crack.
Às tantas, a crítica maldosa topou que Rodrigues dos Santos andava a abusar
deste recurso de estilo e, obviamente, começou a malhar. Ora, como bem sabemos,
sempre que apanha nas orelhas José encolhe-se. Após ter levado muita vergastada
no lombo à conta dos Crrrrrrrr e dos Tac-tac-tac, de
José Rodrigues dos Santos nunca mais se ouviu uma onomatopeia. Caladinho, nem
um pio. Em A Mão
do Diabo, obra mais recente, aparecem, como Dupont et Dupond, “um zumbido e
um estalido” (p. 13) ou “um ruído metálico” (p. 16), ou um “barulho de um metal
a rodar no interior da fechadura” (p. 17), e ainda “duas estaladas” (p.
19), para não falar num “estampido atrás dele” (p. 188), num “zumbido que
cortara o ar” (p. 189) ou num “estampido distante” (p. 195), ambos provocados
por tiros de uma pistola. Também um martelo a bater na mesa (p. 466), sem
qualquer onomatopeia a acompanhá-lo. Não era assim o Rodrigues dos Santos de
antigamente: o zumbido seria certamente Zzzzzz, o
estalido Plac,
o ruído metálico Tzzzim,
a dupla estalada soaria Paf-paf, os tiros
alternariam entre Ploc
(pistola com silenciador), Pah (pistola sem
silenciador) ou Crack-crack
(metralhadora). Aqui, em A Mão do Diabo,
já não há nada disso: “soou um tiro” (a cabeça do segurança do banco ficou
desfeita “como uma melancia em pedaços”) e os assaltantes “ouviram sirenes a
uivar no ar” (pp. 305-307). Onomatopeias de tiros e sirenes uivantes? Nem uma.
Em 2008, n’A Vida
Num Sopro, com jeito ainda se apanhava uma ou outra onomatopeia, aqui e ali
(“Uma bosta tombou da traseira do bovino sobre o empedrado da rua com um ploc
espalhafatoso”, p. 33). Agora, JRS está em black out
onomatopaico. Silêncio total. No seu último livro, A Chave de Salomão,
há um clic e
um ploc, mais
nada.
As personagens: machos
e fêmeas
Quanto à construção das
personagens, nota-se que o universo feminino de Rodrigues dos Santos é
frequentemente iluminado pelo brilho das estrelas de cinema: a sueca de O Codex 632 tinha
cabelos enrolados “à Nicole Kidman”, a americana de Fúria Divina é
“parecida” com Meg Ryan, a russa de O Sétimo Selo ostenta
lábios “à Natasja Kinsnki”, a italiana de O Último Segredo apresenta
olhos azuis profundos e límpidos “à Jacqueline Bisset”, a coimbrã Maria Flor do
recentíssimo A
Chave de Salomão é tratada por “a Jennifer Connely de Portugal”. Em A Fórmula de Deus
surge Angelina Jolie, de passagem, numa curta aparição e, n’O Anjo Branco,
Guidinha era conhecida como “a Lollobrigida de Espinho”. Até Betty Boop
aparece, fazendo de Beatriz Costa na revista A Vida Num Sopro.
O universo masculino,
em contrapartida, caracteriza-se pela boçalidade militante. Tomás é descrito
frequentemente como “um garanhão” e as conversas de homens seguem a pauta
javardola, lapidarmente expressa em O Sétimo Selo:
“ele era homem e os homens são bons para a farra” (p. 45); “um homem é um
homem”, diz José a Mimicas em O Anjo Branco (p.
527). Ou, como bem observa a Amélia d’A Vida Num Sopro,
as coisas de rapazes “são coisas de brutos” e os homens, com bastante
frequência, fazem “figura de macacos” (p. 45). Olhando da janela de casa para
uma “figueira lacrimante”, possivelmente uma alusão velada à figura bíblica do
traidor Judas, Tomás medita sobre a existência humana e o seu caso amoroso com
a sueca Lena, sendo ele casado com uma doce Constança e pai de uma menina com
trissomia 21, de quem as outras crianças fugiam nos parques infantis.
Dilacerado pela culpa, martirizado pela vergonha, resolve a questão a dois
tempos, interrogando-se e fungando-se: “O que podia ele fazer?, interrogou-se.
Era homem; e como pode um homem dizer não a uma mulher daquelas? Fungou.” (O Codex 632, p.
188). Na página seguinte, prossegue a reflexão pessoal, onde avultava a
excepcionalidade da gentil Lenita: “Sempre ouvira dizer que as mulheres de
seios grandes não eram particularmente boas na cama; mas, se isso era verdade,
Lena constituía certamente a grande excepção” (p. 189). Em Ipanema, no Rio de
Janeiro, Tomás Noronha ouve um pai a aconselhar à filha a praticar sexo oral ao
marido, com o argumento experiente: “os homens gostam disso, meu bem” (O Codex 632, p.
86). Além de gostarem disso, há homens que gostam de escrever sobre pais que
dão conselhos sexuais orais às suas filhas, julgando que é desta forma tão
básica, tão óbvia e tão simplória que conseguem transmitir aos leitores os
lugares-comuns e os clichés
instalados em torno do deboche carioca. Mais grave ainda, há leitores – e
leitoras – que apreciam e pagam por estas pinceladas tropicalistas kitsch, pintadas
com a boca e escritas com os pés, mas jamais pensadas com a cabeça. A
alarvidade máscula, note-se, não morre na praia de Copacabana nem vive apenas
do outro lado do Atlântico. Ao levar o amigo Filipe a um hospital lisboeta, em A Mão do Diabo,
Tomás consola piedosamente o moribundo dizendo-lhe que dentro em breve estaria
bom, apto a “dar umas pinocadas às enfermeiras”. Em A Fórmula de Deus,
um director principal da CIA e Tomás Noronha discutem, por mais de uma vez, se
Ariana será mesmo, como dizem, uma “deusa na cama” (uma “goddess in bed”, na
tradução americana: The
Einstein Enigma, p. 51). Regressado de uma sessão de radioterapia, o
canceroso pai de Tomás, um catedrático de Matemáticas sedento de netinhos,
aconselha o jovem: “toca a pôr os pés ao caminho, arranjares uma miúda jeitosa
e, pimba, fazeres-lhe um filho.” Muito pimba, de facto. Os homens falam das
mulheres como “brasa”, “uma pin-up”,
“gatona”, “boneca”, “bombshell” ou
“belo naco”, arrotam e bebem cerveja, enquanto dizem vários “porra” e trocam
mimos como “cabrões” ou “filhos da puta”. Além disso, “os homens são todos
iguais” (A Vida
Num Sopro, p. 266), como se um inescapável destino os condenasse a
comportarem-se como homens, ou seja, como bestas. Num breve diálogo d’A Vida Num Sopro,
o brutamontes Francisco Rodrigues, que tinha “corpo de gorila” e “linhas goriláceas
no rosto”, não gosta que Juanito lhe chame Paco, e demonstra o seu desagrado
tratando-o por “ó merdoso” e “ó paneleiro”, dizendo “Paco porra nenhuma, hem?”,
“acaba lá com essa merda de me chamares Paco”, “cala-te com isso, paneleiro”,
para concluir com um “Cabrão!”. De seguida, Francisco meteu-se numa camioneta
com um italiano, a quem tratava por “maricas” e, a meio do percurso, “fungou e
escarrou lá para fora.” (p. 332). Voltará a fungar e a cuspir mais adiante, um
pouco antes de chamar “mariconços” e “paneleiros” aos seus camaradas
legionários na guerra civil espanhola e de prosseguir a sua actividade
favorita: violar as mulheres dos rojos. Um dia,
porém, uma das mulheres violadas passa a entregar-se-lhe de livre vontade,
ficando Francisco – e nós – perplexo pelo modo como a “ardente Rosa Fuentes” o
tratava, “abraçando-o com intensidade, acariciando-lhe as costas, beijando-lhe
os lábios, digladiando-se com a língua, abrindo-lhe o calor do ventre” (p.
448). Além disso, Rosa Fuentes mergulhava a boca na erecção de Francisco
(“mergulhando a boca na sua erecção”), sendo, pois, uma mulher “cheia de
iniciativa”. “Submetia-se-lhe com prazer”, o que é sempre vantajoso para um
homem, “suspirando e gemendo, soltando ais e obscenidades em castelhando, vagindo
descontroladamente no auge da entrega”. Além de vagir e soltar ais e
obscenidades em castelhano, não se limitando a acariciar-lhe as costas ou a dar
mergulhos bucais, Rosa Fuentes cozinhava. Não era uma cozinheira de mão cheia,
mas os seus pollos
fritos assemelhavam-se a cozido à portuguesa e as suas paellas a
feijoada à transmontana (p. 448). Em conclusão, Francisco Rodrigues
amancebou-se com Rosa Fuentes e, deste modo, “passou a violar menos viúvas de rojos”. Quando o
fazia, por imperativo ideológico ou em estado de necessidade, tinha aliás o
cuidado de as violar nos pinhais das redondezas, não as trazendo para o casebre
que agora partilhava com a espanhola. Em Tarragona, ainda violaria depois duas
republicanas, mas, graças aos ensinamentos e às paellas de Rosa
Fuentes, aprendera que, na vida humana, “o sexo forçado não era a mesma coisa”
(p. 448). Pois não: regressado de uma batalha, Francisco encontra Rosa a gemer
na cama com outro homem e, como lhe repugnava agora o sexo à força, decidiu
estrangular os dois.
Para humanizar as
personagens masculinas (as femininas não precisam, é só falar de curvas e seios
arrebitados) e para cativar os leitores mais ensonados, Rodrigues dos Santos
traz questões sociais e problemas do quotidiano para o interior dos seus
romances. Porém, excede-se duas oitavas no timbre melodramático. O seu herói,
Tomás Noronha, nascido em Castelo Branco, com uma bisavó francesa de quem
herdara os olhos verdes, reside no concelho de Oeiras e, após ter leccionado no
ensino secundário, faz o doutoramento a custo, tornando-se professor de
História na Universidade Nova de Lisboa, à Avenida de Berna. Possui um veículo
ligeiro da marca Peugeot,
é casado com uma Constança e pai de uma menina com síndrome de Down (“come que
nem uma alarve”, diz Tomás da filha, n’O Codex 632, p.
18, mas a miúda vinga-se, chamando-lhe “grandessíssimo cabrão”, depois de terem
ido visionar o filme Toy Story 2 ao
Cascaishopping). A filha do casal, que além de trissomia 21 enfrentava “uma
infindável panóplia de problemas”, acaba por morrer de leucemia mieloblástica
aguda, sendo ainda criança. “Não há dor maior do que a alguém que perdeu um
filho.”, assim começa o trágico capítulo XIX de O Codex 632. Ao
saber da morte da filha, ainda criança, Tomás sente que jamais houvera uma
menina como a sua e que “nunca um cardo assim se pareceu tanto com a mais
bonita flor do prado” (p. 539). A referência à fealdade dos cardos, em
contraste com a beleza das flores do prado, será uma alusão ao facto de a
menina ter trissomia 21? Para quê comparar aquela criança a um cardo? E agora,
José?
Entretanto, Tomás
mantivera uma ligação extraconjugal com uma rapariga estrangeira e nova, também
quase criança. Tratava-se da nossa conhecida Lena, a sueca das sopas de peixe,
e esta relação fogosa porá termo à constança do seu matrimónio. Saindo a mulher
e a filha de casa, de forma civilizada e habitual nestas situações de ruptura
(“filho da puta” e “grande cabrão”, p. 274), Tomás entra num período da vida em
que fala sozinho diante do espelho do quarto de banho, “procurando
metáforas sobre si e sobre o seu casamento”. Entre as várias metáforas a que
recorre, “a sua favorita era a de que ele era um icebergue e a relação com
Constança ameaçava tornar-se um Titanic” (p.
279). E assim foi, de facto. Mas, pior do que essa tragédia naval, é a frase
que, n’O Codex
abre um parágrafo da página 280: “Freud observou certa vez que o amor é uma
redescoberta”. Uma vez divorciado, Tomás manterá, em freudianas redescobertas,
diversos affaires
inconsequentes com mulheres de várias nacionalidades, enquanto o pai morre em
Coimbra, vítima de cancro no pulmão devido ao tabagismo (no leito de morte, a
esposa ia “turturilhando palavras meigas”). Por fim, apaixona-se pela directora
do lar de idosos onde interna a mãe, doente de Alzheimer e senhora muito
praticante de assuntos religiosos. Numa das suas derradeiras aventuras, A Mão do Diabo, que trata da
crise económico-social, Tomás é despedido da Universidade e passa longas nas
filas da Segurança Social, já não em busca da fórmula de Deus ou do ADN de
Cristo mas de um mais prosaico subsidizito de desemprego.
Em regra, os homens JRS
são apalermados e patetitas, insensíveis e futeboleiros, pouco dados a leituras, preferindo falar dos
atributos femininos. Apesar de ser um docente universitário, o professor Tomás
Noronha não foge à regra. Para explicar o xadrez politico ibérico e as
delicadas negociações diplomáticas que conduziram à celebração do Tratado de
Tordesilhas, em 1494, Tomás refere que o Papa de então era espanhol e, por
conseguinte, tudo não passara de uma partida arbitrada “por um juiz subornado
pelo adversário e disposto a anular quaisquer golos da nossa equipa e a
inventar penalites
contra nós” (O
Codex 632, p. 129). Note-se que, n’O Sétimo Selo,
este historiador de renome mundial desconhecia que a sede da OPEP se situava na
Europa (p. 87) e, mesmo estando em plena Praça Vermelha, não sabia distinguir o
Kremlin e a Catedral de São Basílio (p. 177). Para todos os efeitos, estamos a
falar de um historiador doutorado que só no Rio de Janeiro, no Real Gabinete
Português de Leitura, “verificou que a História da
Colonização Portuguesa do Brasil tinha sido dirigida e coordenada por
Malheiro Dias e impressa pela Litografia Nacional, no Porto, em 1921” (O Codex 632, p.
100).
A situação mais surreal
acontece logo n’O
Codex 632 – e não estamos a falar da sopa de peixe. Tomás, um especialista
em enigmas internacionalmente reconhecido, doutorado e professor universitário
de História, tem de responder à seguinte questão: “Qual o eco de Foucault
pendente a 545?” Que faz o nosso artista? Põe-se a vasculhar a obra de Michel
Foucault, passeia na Praia de Carcavelos com um colega filósofo, que numa só
conversa enumera, com apelidos e nomes próprios, Jacques Lacan, Jacques
Derrida, Jean Braudillard, Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard, Maurice
Merleau-Ponty, Immanuel Kant, Edmund Husserl, Martin Heidegger, Karl Popper,
além de Ricoeur, Marrou, Veyne, Collingwood e Gallie. Estava o professor
Saraiva a desfiar este relambório quando chega ao nome de Michel Foucault, que
Tomás confessa, envergonhado, nunca ter lido. Para o afrancesado Saraiva, Les mots et les
choses tratava-se “talvez do texto mais kantiano de Michel Foucault” (p.
231). Frente a uma bica fumegante (“Se calhar, também ia num cafezinho”), o
professor Saraiva fornece então ao professor Noronha uma lista das obras de
Foucault, que aquele anota atentamente, além de uma extensa nota biográfica,
despejada entre as páginas 230 e 232 (“O que quer que lhe diga, mon cher? Michel
Foucault nasceu em 1926 e era homossexual. Depois de descobrir Martin Heidegger
deu de caras com Friedrich Nietzsche (…). Tinha SIDA. Morreu no Verão de
1984”). Com esta informação preciosa, Tomás Noronha vai no encalço de Michel
Foucault. A perseguição, obsessiva, dura desde a página 224 à 285, ou seja, ocupa
61 páginas d’O
Codex 632. Uma dia, quando vai visitar Lena para mais uma sessão de sexo,
esta espreita para um saco de plástico e pergunta-lhe, à entrada de casa:
“Ainda tens aí o Foucault?”. Também ela, a dedicada Lena, se dedicava
afanosamente a tratar do Foucault, lendo até bibliografia secundária, que,
pasme-se, é citada no romance: “o The Cambridge
Companion to Foucault, de Gutting, viera parar-lhe às mãos, bem como o The Foucault Reader,
de Rabinow, e o The
Lives of Michel Foucault, de Macey” (p. 239). O filósofo francês torna-se
uma companhia habitual de Tomás e Lena, visita de casa, a ponto de encontrarmos
pérolas como esta: “O professor apossou-se da rapariga e possuíram-se ali,
sobre o sofá, ao lado do aquecedor, Michel Foucault espalhado pelo chão” (p.
240). Andam nisto, repete-se, durante mais de sessenta páginas do livro. Na
página 285, finalmente, Tomás entra num centro comercial e vai à livraria.
Percorre as estantes, num trecho saboroso em que Rodrigues dos Santos
homenageia os seus colegas, dizendo, um por um, os nomes dos escritores e dos
seus livros, desde Amin Maalouf (são citados O Rochedo de Tânios
e Samarcanda)
a José Eduardo Agualusa (Nação Crioula),
passando por Isabel Allende (é referida A Filha da Fortuna),
Arundhati Roy (O
Deus das Pequenas Coisas) e Mario Vargas Llosa (cita-se Pantaleão e as
Visitadoras). Ao percorrer as estantes, Tomás Noronha encontra Umberto Eco,
com O Nome da Rosa
e – espanto! – O
Pêndulo de Foucault. O que fez Tomás, perante esta fantástica descoberta?
Um “trejeito com a boca”, claro está. Quer dizer, foram gastas 61 páginas de
papel, com conversas em Carcavelos e carradas de livros e citações, para que um
historiador de renome conseguisse perceber, ao olhar para uma lombada de
Umberto Eco num shopping center, que não era o filósofo Michel Foucault mas
Léon Foucault, o físico do século XIX inventor do famoso pêndulo, a chave do
enigma contido na pergunta “Qual o eco de Foucault pendente a 545?”. Por vezes,
temos a sensação de que José Rodrigues dos Santos julga que somos parvos e está
a gozar connosco. Tomás, um ás das charadas, mata a cabeça com o número 545
quando, logo de início, todos nós percebêramos que a solução se encontrava no
conhecidíssimo pêndulo de Foucault. Depois, era só ir à página 545 do livro de
Umberto Eco, que se chama… O Pêndulo de Foucault.
Ao ver desvendado o mistério, o personagem americano, com carradas de razão,
grita “Fuck!”.
Um escritor de sucesso que coloca um historiador de renome a fazer uma figura
destas é, no mínimo, tão inepto como a sua personagem. Fiat lux!,
pensou Tomás na livraria (e “sentiu-se iluminar”). Interrogou-se de seguida:
“como pudera ser tão estúpido?”. Queres mesmo saber o que é ser estúpido?
Pergunta a quem te fez as orelhas.
Além da estupidez
profunda, a ignorância de Tomás Noronha é de tal forma enciclopédica e
monumental que, em A
Fórmula de Deus, chegam a perguntar-lhe se já ouvira falar da CIA (p. 44),
uma vez que, questionado sobre o que era o Hezbollah, o académico respondera
evasivamente (“Não são os tipos do Líbano que estiveram em guerra com Israel?”,
p. 57) e, ao falarem-lhe do Projecto Manhattan, indagara, como uma criança
sabichona: “Não foi aí que fizeram a primeira bomba atómica?” (p. 61). No
Tibete, Tomás recebe da boca sábia do monge Tenzing Thubten uma explicação
básica, mas muito extensa, sobre o budismo (“O budismo tem as suas origens
remotas no hinduísmo, cuja filosofia assenta…”, isto vai da página 397 até à
443). Logo ao fim de poucas linhas, Tomás, muito mentecapto, começa a levantar
o dedo com dúvidas sobre a matéria (“Deculpe, não estou a entender”), mas o
Mestre esmigalha-o num ápice (“Alguma vez leu o Tao Te Ching?”;
“Uh… não.”). Aqui se vê a diferença entre os homens e as mulheres. Ariana, a
companheira de Tomás, não só é mais subtil e profunda na conversa (“Então tenho
de entrar pelo lado do Paradoxo EPR”, conclui ela, a dado passo), como se
mostra mais delicada e cortês, acalmando o macho furibundo através de sussurros
dissimulados (“Temos de aguentar”, “Tem paciência”). Terminada a aula, ao fim
de quarenta e seis páginas, o bodhisattva
sorriu. Nós também.
(Continua)
OBRIGADA!!! adoro estes posts, só mesmo aqui, os livros do José valem alguma coisa. Obrigada pelo trabalho.
ResponderEliminarEstou agora preocupada com que a minha mãe andou a ler!
ResponderEliminarEstes textos são geniais, ri-me à gargalhada, mas ainda não me recompus da personagem do violador. No meio de tanta canastrice, essa parece-me demais.
Talvez a sua mãe possa dar uma opinião sensata sobre o livro já que afinal para além do AA só ela "aqui" o leu.
EliminarUma maravilha, adorei. Não me ria tanto com texto já há algum tempo...
ResponderEliminarBrilhante.
ResponderEliminarNunca me tinha passado pela cabeça perder um minuto a ler JRS.
ResponderEliminarAgora que li isto fiquei cheio de dúvidas. Vou ler.
não me ri, e texto tão risível só pode vir de alguém que escreve um post de 2 páginas, mas não edita livros. A inveja é lixada, e por si é risível. Desse para ser mais moderno e sem tanto Tolstoi pelo meio a tentar dizer que é culto (antigo) e talvez descobrisse que não só há onomatopeias em muitos escritores internacionais premiados por gente não presumida e preconceituosa, mas também (e estou a dar-lhe a dica para um post de 3 páginas) há quem abuse das fontes (tipo de letra, sabe o que é?) e altere formato, dimensão e tipo. A criatividade pode ir bem além (ou em si, vai até Tolstoi).
ResponderEliminarUi! O JRS enxofrou-se :)
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