Ao
invés do Super-Homem, de Batman, do Homem-Aranha e de mais alguns super-heróis,
Wonder
Woman nunca teve circulação em
Portugal. Podem cá ter chegado alguns exemplares da sua versão brasileira “Mulher-Maravilha” mas não conseguiram formar
um verdadeiro culto. Nem mesmo os episódios televisivos da "SuperMulher", emitidos nos anos 80 na RTP, em que Lynda
Carter dava corpo (e pouco espírito) à intrépida amazona, conseguiram
entusiasmar por aí além a lusa juventude (mais elas que eles, atendendo a que
mulheres com super-poderes não havia muitas...).
Lynda Carter, no papel de Wonder Woman
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Ao
invés do que aconteceu nos EUA, onde a série surgida em 1941, em versão comics
mensal e depois em strips nos jornais, foi logo um grande sucesso, mantendo-se
ininterruptamente até hoje.
Sabia-se
até agora de uma vaga ligação desta
heroína ao mito das Amazonas, povo de mulheres
guerreiras, que entroncava bem na necessidade em oferecer às raparigas norte-americanas um bem
sucedido e popular modelo de valentia e afirmação feminina. Sabia-se também do
criador da série, William Moulton Marston (1893-1947), que assinava Charles
Moulton e que terá escrito todos os
argumentos da série até falecer em 1947.
William Moulton Marston
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Mas
muitas outras particularidades ficavam por explicar. Sobretudo para quem leia
as primeiras aventuras, justamente as que se publicaram entre 1941 e 1947, a
tendência absolutamente inédita no panorama da literatura juvenil da época (e
mesmo dos nossos dias), da nossa "Super-Mulher" se ver envolvida,
página sim página não, em cenas de bondage.
Não existe rigorosa tradução portuguesa para a expressão bondage. Submissão? Escravatura? Servidão? Mas o ponto também não é
especialmente relevante. Basta ler as cenas – que são constantes em todas as
aventuras – em que Wonder Woman ou está amarrada com cordas ou correntes ou se vê
confinada em espaços minúsculos, ou surge com os olhos vendados ou liberta alguém na mesma situação, para se
perceber a obsessão de Marston com o tema.
Algumas
destas interrogações e curiosidades vieram recentemente a receber uma nova
interpretação, devido à revelação de aspectos desconhecidos da vida de Marston.
A responsável pelo verdadeiro reboliço que as novas revelações estão a causar entre
os fãs de Wonder Woman é uma distinta
professora de História da Universidade de Harvard, por sinal também colaboradora
da New Yorker, de seu nome
Jill Lepore. O livro intitula-se The Secret History of Wonder Woman (Alfred A. Knopf, 2014) e acabou de sair.
Jill
Lepore é considerada uma especialista em História americana dos séculos XVII e
XVIII, com dezenas de livros publicados e não menor número de prémios e
distinções, sendo esta a sua primeira incursão na História Contemporânea. A
verdade é que há um ponto comum em todas as suas obras: serem excelentes
paradigmas da apelidada
"micro-história". Foi aliás a própria quem, num artigo de 2001,
apresentou um manifesto em defesa da micro-história
por confronto com o género histórico da "biografia" assente em 4
pontos:
(a)
ao contrário da biografia, o pressuposto da micro-história quanto à história de
vida individual reside em como esta última serve de alegoria para a cultura no seu
todo;
(b)
o interesse da micro-história reside na resolução de pequenos mistérios na vida de certa pessoa como meio para explorar dada cultura;
(c)
a biografia tem que ver com protecção da
intimidade, enquanto que na
micro-história todo o esforço é empregue para ressuscitar a vida dos que não
deixaram registos abundantes (ou que deliberadamente apagaram esses registos);
(d)
os biógrafos tendem a identificar-se com
os biografados enquanto que os micro-historiadores tendem a julgá-los.
No
essencial esta escavação histórica das origens de Wonder Woman é um bom exemplo dos
quatro pressupostos da micro-história.
A
ideia fundamental é a de que a criação de Wonder
Woman se deveu a um propósito eminentemente político. E que a jovem amazona
foi pura e simplesmente inspirada em
Margaret Sanger. O propósito político consistiu na reafirmação do feminismo na
sociedade norte americana, que havia esmorecido, pelo recurso à
imagem da mais importante
feminista do seu tempo, justamente Margaret Sanger. Esta foi responsável pela
fundação da primeira clínica de controlo da natalidade nos EUA, em Brooklyn, e uma activíssima divulgadora dos métodos contraceptivos e da
medicina reprodutiva. A sua aventurosa vida, que envolveu nos anos 20 do século
passado, uma passagem pela prisão por distribuir publicamente contraceptivos,
terá servido de modelo para Wonder Woman.
Segundo
Jill Lepore, a mensagem explicitamente feminista de Wonder Woman permitirá
preencher um vazio histórico no movimento feminista norte-americano que
se registaria entre os anos 20 e os anos
60 do século XX.
Mas
qual terá sido a conexão que Jill Lepore encontrou para associar Margaret Sanger a Wonder Woman? Aí só o brilho
dedutivo da historiadora − cuja caução académica é indiscutível − e o
seu exaustivo trabalho de pesquisa nos
podem convencer.
Reconstruindo
a vida pessoal e o percurso profissional de Marston pela mão de Lepore, encontramos um retrato fascinante... mas
bizarro! Marston
formou-se em Direito mas acabou por se
doutorar em Psicologia na Universidade
de Harvard e foi aí que tomou contacto com a literatura feminista e as ideias de Emmeline
Pankhurss e Margaret Sanger, a que desde logo aderiu. Estudou depois com o famoso psicólogo alemão
Hugo Munsterberg, que curiosamente defendia a inferioridade das mulheres... o que
só reforçou as suas convicções feministas (e que Lepore sustenta ser a inspiração do arqui-rival de Wonder Woman, o perverso Dr. Psycho). Enquanto estudava com
Munsterberg inventou o teste
da pressão arterial sistólica que constituiu a base do mais tarde famoso detector de mentiras (invenção da qual não
chegou a obter qualquer proveito material).
Margaret Sanger
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Na
academia, Marston ensaiou um sem-número
de experiências no campo da psicologia
sensorial, concluindo, por exemplo, através
de apelidado “Love Meter”, que a morenas
são mais emotivas e excitáveis do que as loiras; escreveu livros sobre a
emoções humanas e defendeu a ideia de que os impulsos da vida sexual considerados
“desviantes” (como, por exemplo, o apetite sexual pela dominação ou pela
submissão) são não só normais como "neuronais",
ou seja, resultam do funcionamento regular do sistema nervoso.
A
fama de "guru" da psicologia levou-o a trabalhar para as Forças Armadas
americanas, a ser contratado por Hollywood como consultor especializado quanto
aos aspectos emocionais dos argumentos
cinematográficos (sustentava a superioridade da mulher no relacionamento
amoroso). Até que, após ter elogiado o
papel dos comics na educação das
crianças norte-americanas − em entrevista conduzida por Olive Byrne, que já
então era sua amante, como a seguir se verá −, veio a ser convidado pelo então
fundador da DC Comics como um espécie de relações públicas da editora.
Não
tardou a propor a criação de uma “super-mulher”, que logo se tornou um sucesso
de vendas.
Mas
o mais curioso provém da vida pessoal de Marston e é isso que permite a Lepore
encontrar o missing link com Margaret
Sander.
Após
a sua graduação em Harvard, Marston casou-se com uma mulher muito pouco
convencional chamada Sadie Elizabeth Holloway. Mais tarde, quando dava aulas na
Universidade de Tufts, encontrou uma estudante de nome Olive Byrne por quem se
apaixonou... e que era sobrinha de Margaret Sanger. Apresentou então à sua
mulher um ultimato: "ou Olive vive connosco ou o casamento acabou".
Acabou por ter filhos das duas mulheres, todos vivendo na mesma casa. As crianças tinham três pais: “ Both mommies and poor old Dad”, como
dizia Marston. E quando alguém mais curioso perguntava acerca desta estranha
combinação conjugal na casa de Marston, este dizia que Olive era sua cunhada. O
trio doméstico, que hoje chamaríamos de " poliamoroso", manteve-se até
à morte de Marston . Mas, depois disso,
Sadie e Olive viveram juntas com os filhos de ambas e de Marston até ao fim das
suas vidas.
Foto da família Marston: William Marston ao centro, rodeado pelos filhos e pelas "duas mães", Elizabeth, a primeira à direita, sentada, e Olive, atrás de Marston, de branco.
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É
esta complexa e estranha mistura de ideologia, vida pessoal e circunstâncias de
tempo e lugar que está na origem de Wonder
Woman, segundo Jill Lepore. Por um lado um contexto geográfico e temporal
da 2ª Guerra, propício ao surgimento de uma personagem feminina com “super-poderes”,
dando
continuidade a Superman e Batman , surgidos em 1938 e 1939. Por outro lado,
as convicções feministas de Marston, alimentadas por um misto de admiração por Margaret Sander
(cuja sobrinha era sua amante) e pela sua
crença na superioridade da mulher do ponto de vista emocional e afectivo. Mas a tudo isso acresceu a sua própria experiência pessoal
"poliamorosa" e as
características dos que com ele conviviam . A esse respeito, Lepore identifica
vários pormenores:
(a)
um dos “super-poderes” de Wonder Woman,
o famoso laço que obriga os inimigos a falarem verdade, será uma variante do
detector de mentiras);
(b)
as braceletes de metal que evitam o fogo inimigo, outro dos “super-poderes”, são idênticas às que Olive usava;
(c)
as expressões típicas de Wonder Woman,
como "suffering Sappho!",
emulam a adoração de Sadie pela poetisa
grega.
Persiste
contudo um ponto controvertido e que não deixa de poder ser considerado contraditório. Como compatibilizar as
recorrentes cenas de bondage, em que Wonder Woman surge amarrada, confinada, submissa,
com uma visão feminista de libertação e de
defesa dos direitos das mulheres? A
verdade é que Marston era muito preciso
com os ilustradores acerca do modo como as cordas e as correntes deveriam
prender Wonder Woman ou os seus adversários : “This whole panel will lose its
point and spoil the story unless these
claims are drawn exactly as described here”.
Lepore
interroga-se e responde : “It´s feminism
as fetish”.
E
acrescenta que toda a iconografia feminista − bem presente nas marchas, nos protestos e nos panfletos ilustrados − exibiam
a mulher aferrolhada, presa a grilhetas
e cadeados. Seria a expressão teatralizada da ideia de que, sem direito
a voto, a mulher é escrava do homem. Muitas feministas do início do século
representavam a luta das sufragistas como quebrando as correntes que as
amarravam. Aliás, foi isso mesmo que Marston sempre sustentou quando interrogado
sobre o excesso de bondage nas aventuras
da Mulher-Maravilha: “quando Wonder Woman
está acorrentada, perde todos os seus super-poderes ficando à mercê da
tirania masculina”. É uma explicação
plausível, diz Lepore, que acrescenta:
ver na submissão de Wonder Woman
aspectos da cultura sadomasoquista dos dias de hoje é cometer o pecado do anacronismo, o maior inimigo do historiador.
Para analisar a questão teremos que olhar para o tempo e o para o mundo de
Marston. Não podemos transportar a kink
culture dos dias de hoje e andar
para trás!
O
ponto de vista de Jill Lepore é aceitável. Mas permanecem algumas interrogações.
Saber , por exemplo, se a vida pessoal de Marston, designadamente o seu "poliamorismo" bem como o seu manifesto interesse nos temas
das diferenças sexuais, do ajustamento
sexual e dos comportamentos ditos “desviantes”, não tiveram expressa projecção
nas aventuras de Wonder Woman. Para
além da mensagem feminista parece existir uma outra que traduzirá (é uma
hipótese…) as teorias de Marston no campo da psicologia comportamental. É o que,
por exemplo, parece resultar da vinheta abaixo, quando uma das
personagens exclama : "the only
real happiness for anybody is to be found in obedience to loving authority".
Mas Jill Lepore tem disso consciência quando, em entrevista recente, confessa
que a sua investigação não resolve todos os enigmas e que "there´s clearly
something else going on in Wonder Woman, too" !
Quando
Marston morreu, apesar de Olivia se ter oferecido à DC Comics para continuar a
assegurar as histórias de Wonder Woman,
a série acabou por ser entregue a outros argumentistas. Mas rapidamente se
transformou numa caricatura daquilo que tinha sido a ideia original de Marston:
juntaram-na à poderosa Justice Society of
America, com Batman, Green Lantern e outros super-heróis, no papel de...
secretária.
Ricardo
Leite Pinto
Creio que a atriz que a encarnou era a mesma que fazia de mulher do chefe da esquadra na famosa e saudosa Balada de Hill Street não?
ResponderEliminarCreio que não. Mas, se vir a sua biografia, Lynda Carter foi «escalada» para ser uma das «coelhinhas da Playboy» que aparecem no Apocalypse Now:
Eliminarhttp://en.wikipedia.org/wiki/Lynda_Carter
Cordialmente,
António Araújo
Anónimo, só posso supor que nunca viu a Balada de Hill street e que para além disso nem sabe fazer uma simples pesquisa no google ;). Ou apenas terá querido dialogar com o malomil.
EliminarTodas as hipoteses estão em aberto e as suposições tambem.Talvez o Juiz Carlos Alexandre alertado por si como anonimo inicie uma investigação que culmine com mais uma espetacular prisão!Ha varios potenciais crimes dos quais e talvez o mais grave o de não ter parado para ir ao google.Pena a pena de morte não se aplicar nestes casos.
ResponderEliminarCuriosamente este mesmo assunto foi objecto de um longo artigo na New York Review of Books, na edição de 6 de Novembro, disponível em papel nalgumas tabacarias de Lisboa. Se tiver curiosidade pode ver o artigo neste link:
ResponderEliminarhttp://www.nybooks.com/articles/archives/2014/nov/20/wonder-woman-weird-true-story/?insrc=whc
Que bom post! Parabéns!
ResponderEliminarÉ engraçado que ainda ontem comprei uma caneca com a temática da Wonder Woman.
ResponderEliminarDivulguei:
http://malomil.blogspot.pt/2014/11/a-verdadeira-e-estranha-historia-de.html