segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Pequim, 1983.

 











Legenda para um foto da Cidade Proibida (Pequim), tirada do 8º andar do Hotel Pequim em 15 de Dezembro de 1983, retirada da estória “Forjão-Mentes-Me-Sinto”:

 

Há dias que queria subir ao último andar do hotel, o 8.º, para tirar fotografias. Estamos em dezembro e esse piso, que é todo um salão de jantar, está encerrado. Peço permissão para ir apenas tirar umas fotos. Nem pensar. A sala tem fechadas as portas para a varanda, explicou a moça da recepção. E não é permitido abrir as janelas. Há guardas fardados por todos os lados, que bem os vejo. Mas teimei em ir. Pequim é toda plana e lá de cima – o hotel é o único prédio alto – ao pôr do sol achei que devia conseguir boas fotografias, tanto mais que fica mesmo sobranceiro à Cidade Proibida. Todos me aconselharam a tirar a ideia da cabeça. «Pode ser perigoso e ainda acabas na cadeia.» Fui ao quarto buscar a máquina fotográfica. Vi corredores vazios e escadas também. Subi. Fui subindo. Nem vivalma. A azáfama limitava-se aos primeiros três andares. Não era preciso acender ainda a luz porque havia sol de fim de tarde. Perfeito para fotos. Continuei a subir sem ver ninguém nem ouvir qualquer sinal de gente. Cheguei à sala. Enorme. Mas não havia luz suficiente para apreciá-la (o hotel é profusamente decorado à chinesa imperial). Fui directo a uma das portadas. Abri-a e dei comigo num balcão com Pequim a meus pés. Nada de espectacular, só uma imensidão de linhas e tons cinzentos. Apenas a Cidade Proibida merecia de facto uma foto. O sol estava longe do seu melhor e não a favorecia muito. Bati umas apressadas fotos e voltei à sala fechando a porta com cuidado. De repente, ruídos de passos resolutos com jeito de guarda. «Estou lixado!» – pensei. A poucos metros, uma casa de banho. Entrei e fechei-me lá dentro sem fazer barulho. Os passos aproximaram-se e senti-os tão perto que esperei a todo o momento toques à porta. Pronto. Há-de ser o que for. Mas afinal eles continuaram. Mantive-me quietíssimo quase contendo a respiração. O som dos passos foi-se afastando para o outro lado, mas dali a pouco voltei a senti-los aproximar-se. Convenci-me de que não escaparia, mas os passos, depois de os escutar mesmo junto à minha porta, voltaram a esvair-se na distância, com uma porta a fechar-se sobre eles. Deixei-me quedo e mudo, e aos poucos fui respirando mais e mais fundo. Esperei o bastante por silêncio total, mas depois comecei a recear o desaparecimento da luz do dia. Ser-me-ia impossível chegar ao corredor e atinar com as escadas sem acender luzes. Ainda podia espalhar-me contra uma das grandes jarras e partir louça a valer. Seria o fim: preso por espionagem e vandalismo. Tinha mesmo de safar-me a tempo e arrisquei. Todos os receios se dissiparam quando me vi deslizar escada abaixo. Fui direitinho meter-me no meu quarto no terceiro andar. Agora era só ter de facto a certeza de que as fotos tinham valido a pena.

(Porque vi as fotos, posso apropriar-me de mais uma frase de Fernão Mendes Pinto: «Algumas das quais lhe mostrou logo ali o olho, donde se inferiu que podia ser verdade o mais que dizia.» Quanto à estória em si, FMP diria que chegou ao quarto «com muito alvoroço misturado com não pouco receio, porque até então não entendera ainda o grande perigo em que se metera». N. D.)

 

Excerto de Onésimo Teotónio Almeida, Quando os Bobos Uivam (Lisboa: Clube do Autor, 2013, pp. 175-176)










 

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