segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Crime no Expresso de Zurique-Moscovo-Doha

 
 
 
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A 2 de Dezembro de 2010 o Expresso da FIFA saiu de Zurique em direcção a Moscovo e, finalmente, Doha. Esta viagem que Joseph S. Blatter pretendia que fosse histórica – levar o futebol a novas paragens e mercados – tem-se revelado bastante … acidentada. E quase quatro anos depois continuamos a questioná-la.
A atribuição da organização dos Campeonatos Mundiais de 2018 e 2022 à Rússia e Qatar, respectivamente, levantou muitas dúvidas. A Rússia conseguiu superar com 13 votos, na segunda volta, as candidaturas de Portugal-Espanha (com 7) e Bélgica-Holanda (com 2). A quarta candidatura – a inglesa – recebeu apenas dois votos na primeira ronda. A decisão relativa ao Campeonato Mundial de 2022 foi mais renhida. O Qatar recebeu 14 votos na quarta votação contra os EUA que receberam 8. Pelo caminho ficaram os sul-coreanos (que foram até à terceira volta) e os japoneses e australianos.
Para além das óbvias questões políticas há também outras mais práticas. Lembro-me de ter ficado perplexa com a opção da FIFA pela candidatura qatari. Como é que se vai aguentar o calor abrasador dos meses de Junho e Julho que chega aos 50 graus? Esta questão foi evidente este ano, no Brasil, com alguns jogos marcados à tarde que pura e simplesmente não deveriam ter sido agendados naquele horário e cidades… Após muito debate as opções mais «realistas» são as de realizar o Campeonato nos meses de Novembro e Dezembro ou Janeiro e Fevereiro. Para além da necessidade de harmonizar estas datas com os Jogos Olímpicos de Inverno e cujo anfitrião será decidido em Julho do próximo ano, há ainda a questão da UEFA e Ligas milionárias, que terão de parar as suas competições. Por isso mesmo a Associação de Clubes Europeus, formada em 2008, composta por 214 clubes e que inclui os grandes … defende a sua realização em Maio.
E há também «pequenas» questões culturais associadas à presença de milhões de estrangeiros num país onde há restrições religiosas e culturais, entre outras, quanto ao álcool e também à forma de vestir. O Qatar já veio a público dizer que durante o Mundial serão tomadas medidas excepcionais e criativas. A ver vamos.
 
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Para além de tudo isto há ainda as acusações de corrupção na atribuição da organização dos Campeonatos Mundiais de 2018 e 2022 à Rússia e ao Qatar. Estas seguiram-se aos casos de Amos Adamu e Reynald Temarii, dois membros do Comité Executivo, que foram considerados culpados e afastados do «futebol» por um período (início a 20 de Outubro de 2010) de três anos e um ano, respectivamente. Tal como em relação a estas acusações foi o jornal The Sunday Times (desta feita através de um artigo publicado a 18 de Novembro de 2012) a alavanca para uma investigação mais profunda pela FIFA. A investigação foi liderada por Michael Garcia, no âmbito do Comité de Ética, durou cerca de dezoito meses e culminou num relatório com cerca de 430 páginas. Este relatório foi resumido em 42 páginas por Hans-Joachim Eckert, presidente da Comissão de Ética da FIFA, e divulgado no passado dia 13. Uma das conclusões deste sumário foi a de que não há irregularidades comprovadas na vitória do Qatar e da Rússia e de que a única candidatura que não teve qualquer comportamento indevido foi a belgo-holandesa (p. 21). A reacção da FIFA foi de alívio.
 
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Mas foi sol de pouca dura. O principal autor do relatório, o procurador norte-americano Michael Garcia, afirmou que o sumário apresentado «contém várias representações dos factos que estão materialmente incompletas e são erróneas».
Fiquei curiosa e fui ler o documento. Em primeiro lugar, temos as conclusões mais controversas. Embora tenha sido reconhecido que se registaram «condutas potencialmente problemáticas de certos indivíduos» estas não foram consideradas suficientes para «comprometer a integridade do processo». Mais ainda, as críticas mais duras foram efectuadas à candidatura inglesa e australiana.
Depois de ter lido e relido este documento encontrei algumas pérolas que valem a pena explorar. Temos que começar pelo Relatório do Grupo de Avaliação. Este documento foi o resultado de visitas aos países entre Julho e Outubro de 2010 com o objectivo de avaliar a capacidade organizativa das suas candidaturas (p. 14). O Grupo concluiu que, em matéria operacional, todas eram de risco baixo com excepção da russa que foi considerada de risco médio e da qatari de risco elevado. No que toca aos restantes requisitos apenas dois «locais» receberam a classificação de risco elevado: Rússia em matéria de transportes (aeroportos e ligações internacionais) e Qatar (instalações para as equipas). Ora é curioso verificarmos que as duas candidaturas que ofereciam mais riscos do ponto de vista organizacional foram justamente … as vencedoras.
De seguida, passamos para a candidatura russa. E percebemos, desde logo, as limitações da investigação sobre um dos vencedores (pp. 30-31). E passo a traduzir: só foi possível ter acesso a um número limitado de documentos e e-mails pois os computadores utlizados pela delegação russa tinham sido alugados a uma empresa. Esta, depois de todo o material informático ter sido devolvido, acabou por destruir os computadores. E dos documentos entregues «muito poucos» diziam respeito a informação e correspondência relevante. Quanto aos e-mails, a delegação russa informou a FIFA que tinha tentado junto da Google USA aceder às contas Gmail usadas durante todo este processo e que … a Google não tinha respondido. E este é o pormenor mais «delicioso» tendo em conta que a Google (tal como o Facebook e Skype) têm estado (e agora ainda mais) sob pressão do governo russo. Este ano Vladimir Putin considerou o servidor norte-americano um «projecto da CIA». Moscovo ameaça colocar estas empresas numa lista negra se estas não cumprirem com a legislação que permite às autoridades russas acederem às informações e dados.
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E o Qatar? Há vários elementos curiosos que são apontados na candidatura qatari (pp. 26-27). Por exemplo, temos a realização de um jogo amigável entre o Brasil e a Argentina em Doha a 17 Novembro de 2010 (a duas semanas da decisão final) que foi organizado por uma «empresa» qatari independente da «candidatura 2022» e da federação de futebol do Qatar. Mais ainda, este país patrocinou o Congresso da Confederação Africana em Angola em Janeiro de 2010 e como nos diz o relatório «continua sem ser claro quanto custou o evento…». Mas é o papel do membro do Comité Executivo e vice-presidente da FIFA, o qatari Mohamed Bin Hammam, que levanta todas as dúvidas. Hamman fez «pagamentos» a outros membros do Comité que foram acusados de corrupção como, por exemplo, Reynlad Temarii e Jack Warner, de Trinidade e Tobago. A delegação qatari negou que Hamman estivesse a fazer lobby para que Doha ficasse com o Mundial 2022 e que este estaria focado na sua candidatura a Presidente da FIFA em 2011. Mohamed bin Hammam acabou por ser banido do futebol de forma vitalícia em Dezembro de 2012. No sumário apresentado por Hans-Joachim Eckert conclui-se que não há uma associação directa entre os «pagamentos» e o apoio à candidatura do Qatar para 2022…
 
 
 
Mas talvez seja necessário recuar até à reunião do Comité Executivo da FIFA em Tóquio em 19 e 20 de Dezembro de 2008 onde foi tomada a decisão pioneira de atribuir dois campeonatos de uma só vez. A primeira mudança nas regras de atribuição dos Campeonatos teve lugar em 2002 com a sua realização em território asiático (Japão-Coreia do Sul) pondo fim à rotatividade entre a Europa e a América. O Campeonato voltou à Europa em 2006 tendo depois passado pela África do Sul em 2010 e Brasil 2014. Para além das regras simples de não repetir continente e confederação em dois campeonatos sucessivos ficámos a saber também que há um compromisso informal em relação à Europa: a realização de uma em cada três edições (p. 7).
Mas ainda assim porquê atribuir dois campeonatos ao mesmo tempo? Esta decisão é citada no relatório embora não explicada ou contextualizada (p. 13). Nas palavras do secretário-geral Jerome Valcke e tendo como contexto o Campeonato de 2010: «eu penso que o período de seis anos para uma nação anfitriã se preparar para organizar um grande evento como o Campeonato do Mundo não é suficiente. (…) Alguns países, em particular os países em vias de desenvolvimento, necessitam de mais tempo para construir as infraestruturas.» Valcke dizia ainda que «se fizermos o anúncio em 2010 para os campeonatos de 2018 e 2022 as nações anfitriãs terão oito e doze anos. (…) A FIFA está sempre à procura do Campeonato Mundial perfeito». Pois.
No resumo divulgado por Hans-Joachim Eckert este é justamente um dos aspectos a evitar. E é uma recomendação que não precisa de muita explicação. Face às críticas e indícios de venda e troca de votos potenciada pela «dupla selecção» (p. 34) a FIFA já tinha vindo a reformular o processo de atribuição. Neste novo modelo o Congresso volta a ter um papel fundamental em conjunto com o Comité Executivo. No que toca ainda ao resumo/relatório encontramos ainda recomendações no sentido de maior transparência nos critérios de rotatividade geográfica e também de estabelecer limites de mandatos para os membros do Comité Executivo. E mais ainda, que os membros deste Comité não possam votar quando está em causa o «seu» país…
O impacto da divulgação deste resumo foi muito para além da reacção do procurador Michael Garcia. Ficámos a saber que o FBI tem uma investigação em curso. E, apesar de reiterar a decisão de manter a confidencialidade do relatório inicial, a FIFA apresentou queixas-crime contra certos indivíduos ao Gabinete do Procurador-Geral em Berna. As críticas mais duras vieram de fora e há quem fale em Guerra civil. Michael Hershman, antigo conselheiro da FIFA, chamou a atenção para o facto de que esta foi uma investigação administrativa (sem grandes poderes) e de que a FIFA é uma organização fechada em si mesma e incapaz de se autorregular. E foi mais longe pedindo a demissão de Blatter pela sua responsabilidade política durante quatro mandatos com vários escândalos de corrupção. No poder desde 1998 Blatter decidiu recandidatar-se nas eleições de 2015.
Um dos aspectos mais positivos deste resumo/relatório foi o de nos fazer pensar sobre o peso financeiro dos Campeonatos Mundiais no orçamento da FIFA e também no funcionamento desta organização. Do ponto de vista orçamental e tendo como exemplo os anos de 2007 a 2010 (pp. 6 e 7), a organização do Campeonato Mundial representou 87% da receita geral da FIFA, ou seja, 3 654,7 milhões de dólares e sendo a grande fatia – 2 408,1 – referente a direitos televisivos. O resumo reforça ainda a capacidade de atracção deste evento desportivo chamando a atenção para os números: por exemplo, a audiência cumulativa de todos os jogos do Campeonato de 2006 na Alemanha foi estimada em 26,29 biliões e a final foi vista por 715 milhões de pessoas.
Do ponto de vista formal, a FIFA é uma associação privada, sem fins lucrativos e baseada em Zurique (p. 3). Fundada em 1904 com sete associações (França, Bélgica, Dinamarca, Holanda, Espanha, Suécia e Suíça), em Paris, conta actualmente com 209 membros. Estes estão divididos em seis confederações regionais sendo a mais poderosa a europeia UEFA. Esta primazia é evidente no número de lugares atribuídos aos europeus no Comité Executivo: 3 vice-presidentes e 5 membros. A UEFA é seguida pela sua congénere africana e asiática, ambas com quatro lugares (1 vice-presidente e três membros). Temos depois as duas organizações do continente americano e da Oceânia. É curioso verificarmos que, à excepção da UEFA liderada pelo francês Michel Platini, as restantes confederações são presididas por nacionais de países sem grande peso no futebol. Não querendo parecer preconceituosa e percebendo a vantagem de ter candidatos que não sejam de grandes potências «futebolísticas» em relação aos quais é mais fácil um consenso, continua-me a fazer alguma confusão ter vice-presidentes da FIFA de países como a Papua Nova-Guiné, Ilhas Caimão ou Jordânia.
Mas é, sem dúvida, a relação entre a FIFA e a UEFA que é decisiva em matéria de poder. Michel Platini juntou-se ao coro de vozes que pedem a divulgação do relatório Garcia. Outros dirigentes das associações nacionais têm sido mais críticos. Basta olharmos para o caso de Christian Seifert, director-geral da Liga Alemã de Futebol. Numa entrevista ao jornal alemão Süddeutsche Zeitung Seifert apelou ao boicote aos mundiais de 2018 e 2022. Apesar de não lhe parecer exequível ter todos os europeus do mesmo lado lembrou um argumento de peso: «75 por cento dos jogadores de um Mundial têm contrato na Europa e, se a Europa disser 'nós não participamos', isso mudaria tudo».
Num artigo publicado na Foreign Policy Roger Pielke oferece vários exemplos e alternativas para lidar com a corrupção na FIFA, tal como já aconteceu com outras organizações de cariz desportivo. Mas talvez a frase mais interessante do resumo apresentado pelo presidente da Comissão de Ética da FIFA esteja na página 41:
       «No entanto, o maior desafio relativamente à corrupção é prová-la».
And this is where the plot thickens.
 
Raquel Vaz-Pinto
 
Nota: esta crónica foi escrita ao som de «Private Investigations» dos Dire Straits (versão ao vivo Alchemy)
 


2 comentários:

  1. Mas que belo e competente trabalho. Muitos parabéns. Vou republicá-lo com indicação dos correspondentes créditos, se não discordar.

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  2. Pois é, como ja se sabe ha muito,naõ ha Pai Natal.Ha apenas negocio.

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