quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

VPV



 
 

 
 
 
Às Avessas – Vasco Pulido Valente
 
Assírio & Alvim, Lisboa, 1990
 
 
 

 
 
 
O Autor
         Vasco Pulido Valente nasceu, segundo o próprio, em 21 de Novembro de 1941[1]. Passados os devaneios de infância [2], quis ser romancista (aos quatorze anos), cineasta (aos dezoito), revolucionário (aos vinte), e por aí adiante, até querer “fazer uma tese para granjear o apetitoso título de “doutor”” (aos vinte e sete) [3]. As opiniões dividem-se quanto ao modo como concretizou esse último desiderato: na sua versão escrita, “em quatro anos de ociosidade produzi[u], quase por inadvertência, um livro[4];  na sua versão oral, percebeu “a extensão aterrorizante da sua ignorância” e “trabalhou como um cão[5].
 Aos trinta e cinco anos, a meio do caminho da [...] vida, não era escritor, nem jornalista, nem académico.[6] Aos setenta e três, é do melhor que temos em tudo isso – já que a irmã, segundo o próprio mais ilustrada e de melhor prosa [7], foi conquistada pelo Brasil.
 
 
 
 
 
Também pelo próprio, sabemos que aos vinte e dois anos se queria casar, “desse por onde desse[8], e que de facto se casou, aos vinte e três, com uma mulher “estarrecedoramente bonita[9]. Por uma sua biografia não-autorizada – que tem, entre vários, o inconveniente de ter sido vertida para português num programa de tradução automática –, sabemos quase tudo o mais sobre as suas peripécias amorosas até 1976 [10]. Provando que a esperança é mais forte do que a experiência, depois dessa data ainda celebrou matrimónio mais duas vezes – com a atenuante de o ter feito com a mesma mulher [11].
 
 
         Em 1980 foi, por mero acaso [12], Secretário de Estado da Cultura – durante dez meses (os do Governo AD chefiado por Francisco Sá Carneiro), tempo que lhe chegou para, entre  o mais, fechar o S. Luís [13], obter o terreno e o financiamento para a construção da Torre do Tombo, encomendar o projecto e fazê-lo aprovar pela UNESCO [14]. Conseguiu, ainda, nomear o homem certo (o Dr. João Bénard da Costa) para um dos seus múltiplos possíveis lugares certos (a Cinemateca Portuguesa). Sendo as coisas, entre nós, o que são, é claro que isso o afastou definitivamente de lugares executivos.
Ficou com a fama de “telhudo” na primeira candidatura presidencial de um seu ex-professor do Colégio Moderno, “diáfano e muito ausente em Caxias por razões de força maior[15] (ver “Uma Aventura com o Dr. Mário Soares” [16]), e foi apodado de Pulido, o Breve, após uma equívoca passagem pelo Parlamento, em 1995.
Define-se como um “historiador narrativo e, portanto, um escritor[17], mas é aos quarenta anos de colunas jornalísticas que deve o grosso dos seus inimigos [18], mesmo que não o grosso da sua pública notoriedade: num evidente sintoma da nossa inalterada iliteracia (não obstante os furiosos progressos das taxas oficiais de alfabetismo), as “dezenas de milhares de páginas que penosa ou alegremente ench[eu]”[19] hão-de ter acumulado menos leitores do que o número de tele-espectadores de uma única edição do já esquecido Jornal Nacional de 6ª da TVI[20], ou de uma das suas diversas caricaturas (que lhe glosam invariavelmente o entaramelamento da fala e a desconexão dos gestos, e não deixam adivinhar o rigor da escrita – no que reedita a dupla personalidade discursiva de um outro nome ímpar, posto que mais secreto, da ciência portuguesa: o Prof. Manuel de Andrade[21]).
 
 
O Género
         Num País em que a imprensa é estreita em títulos e parca em edições, o comentário, pelo menos desde os alvores da Primavera marcelista, medrou desproporcionadamente. Em consequência, como Vasco Pulido Valente já tinha assinalado em 1984, “Cérebros, cuja quietude jamais aragem perturbou, escrevem, portanto, colunas. Escrevem, ou seja, põem frases à frente de frases, em que é preciso penetrar com diabólica paciência e uma cevadeira mecânica.”[22] (E providenciou a prosaica razão: “Os jornais, pagando pouco, vão enchendo espaço.[23]) Um efeito secundário dessa infausta acumulação de textos opinativos – e da Lei de Lavoisier – foi a sua inevitável encadernação em série: tirando o dr. Paulo Portas (pela muito elementar prudência de evitar o embaraço de submeter a sua próspera prática política à comparação com as suas anteriores proclamações jornalísticas), não há praticamente escriba algum que prescinda da exumação dos seus textos jornalísticos para o cerimonial embalsamento em livro. Naturalmente, se a qualidade dos textos pode piorar ao longo do processo (pela perda das referências à actualidade, por exemplo), dificilmente pode melhorar. Donde resulta que os produtos acabados dessa idiossincrasia nacional vão do frequente péssimo ao razoável ocasional – exactamente como a sua matéria-prima: “Perpetrou-se (e continua a perpetrar-se) muita da mais deprimente prosa portuguesa com esses pretextos.”[24] Em casos distintamente raros (Nuno Brederode Santos, João Bénard da Costa e Vasco Pulido Valente – e A. B. Kotter, para quem entenda que A. B. Kotter professava opinião), porém, há requinte na forma e inteligência no conteúdo – e, em consequência, chega a haver colectâneas indispensáveis.
         A propósito de uma significativa disparidade de temas[25] (artificialmente reduzida pelos critérios de selecção adoptados em cada colectânea), Vasco Pulido Valente olha para as causas e vê as conclusões. Nalguns casos, nem as primeiras eram evidentes; noutros, as segundas eram, a bem dizer, imperceptíveis; por vezes o que faltava era a compreensão que só pode resultar do estudo “do princípio ao fim, com alguma ordem e alguma minúcia[26]; outras vezes, sabiam-se as causas e as consequências, e o enquadramento não era desconhecido – mas, como nos estereogramas, eram precisas instruções para se poder ver. Na generalidade dos casos, (re)lê-lo é ter a sensação de perceber melhor o mundo. 
 
 
 
 
 
 
No Prefácio a O País das Maravilhas, a primeira (e tardia) recolha dos artigos que publicou na imprensa (entre Fevereiro de 1974 e Setembro de 1979), Vasco Pulido Valente confessou, com a sua proverbial franqueza, que o livro “não [tinha] de se envergonhar ao pé dos grandes clássicos do género, “As Farpas”, ou “Uma Campanha Alegre” ou as “Cartas Políticas” de João Chagas. Antes pelo contrário.”[27] Qualquer réstea de cepticismo que porventura se alimentasse sobre a comparação evaporar-se-ia necessariamente na presença de Retratos e Auto-Retratos (1992), de Esta Ditosa Pátria (1997) e, sobretudo, de Às Avessas (1990). Qualquer deles, posto que com a desvantagem de vir assaz desbastado de origem (bem como o recente “Portugal - Ensaios de História e de Política” (2009) – sobre o qual disse “Olhem, isto são as coisas que eu acho que escrevi de relevante sobre Portugal.[28]), tem tudo o que é preciso para entrar num hipotético cânone de leituras de um tempo em que, com o alto patrocínio do Ministério da Educação, tudo se lê – menos isso.
 

 
 
O Título
Às Avessas recolhe artigos que – como mais miudamente se dirá à frente – Vasco Pulido Valente assinou entre 1982 e Setembro de 1989. Foi também um dos títulos da sua página n’ O Independente[29]. Esse semanário, que depois se esvaiu até à irrelevância e ao fecho (em 2006), foi o contraponto crítico da década cavaquista (1987-1997) e, durante esse período, a maior reunião de talentos da opinião portuguesa. Regressando-lhe agora de chofre, como leitor, é pavoroso constatar, por contraste, o quanto, na última década, se banalizou e degradou a imprensa – mas, pior ainda, o quanto isso nos foi imperceptível. Como o sapo que acaba cozido, não percebemos as alterações discretas do nosso habitat.
 
 


 
 
 
 
 
O Estilo
O “estilo” de Vasco Pulido Valente cobre a totalidade do espectro – da mais desarmante seriedade ao mais delirante sarcasmo.  De facto, para ele,  o estilo é um instrumento; é adequado ou não é adequado.[30] E mesmo quando podemos discordar dos seus pressupostos, dos seus juízos de valor, das suas conclusões – nalguns casos, até da sua pontuação – nada há a apontar a um estilo que, em reverse engeneering, parece destilável numa fórmula (frases curtas; adjectivos inesperados ou em cambiantes próximas; generoso uso de advérbios; repetição de palavras na mesma frase; léxico aditivado; interrogações retóricas; pródiga distribuição de insultos e sarcasmos) e num método (concretizações miúdas a seguir às teses gerais; opiniões iconoclásticas;  e, sobretudo, humor acerado).
Leiam-se os esforçados pastiches do seu estilo “pimpão e encaracolado[31] (poucos, e só os do João Pereira Coutinho bons) e lá está, em roda baixa, o mesmo programa. O que nenhum evidentemente percebeu é que “o estilo (...) é a pertinência[32], e que a pertinência resulta da adequação entre forma e conteúdo. Há coisas sobre as quais Vasco Pulido Valente escreve sem sombra de distância, e eles, compenetrados, nunca dispensam a mecânica da encenação; há ecos de leituras que ele tem e aos epígonos faltam; e, claro, carecem do fine tuning do tom: aos trinta não se pode escrever como aos cinquenta, porque o que em certa idade soa a experiência, antes, soa a presunção. De resto, o próprio se encarregou de explicar “o carácter intrinsecamente ridículo do imitador[33], por melhor que seja: “O imitador não tem e, por definição, não pode ter dignidade. Não é: finge; e finge o que não é.” [34]
 
 
 
 

 
A Obra
Enquanto historiador narrativo[35], Vasco Pulido Valente invoca a figura tutelar de Oliveira Martins e, modestamente, remete-se para um lugar secundário – o mesmo que, quando anunciei a minha escolha, um “esquerdista excitado” logo se aprestou a esclarecer, em meu benefício e dos circunstantes, que era o que lhe devia caber.  Sobre isso não opino, porque cabendo-me escolher uma obra, a minha escolha não foi essa – foi a “colectânea perfeita” do comentador (essencialmente político) e pela mais óbvia das razões: nesse domínio não há ninguém, entre nós, acima (ou sequer ao lado) de Vasco Pulido Valente; não houve; nem é provável que venha a haver. Afinal convém não alimentar ilusões sobre a educação que é prodigalizada aos indígenas, nem sobre as qualidades da raça: para o igualar seriam necessários aplicação e método; argúcia e cultura; talento e trabalho; e, o que não é o menos importante num universo exíguo, aristocrática indiferença à mais perfunctória análise de custo-benefício do empreendimento e aos custos pessoais dos resultados do seu labor – ou, o que é o mesmo, coragem como virtude e franqueza como princípio. Cada um dos requisitos é um fosso, que de ano para ano se alarga; o conjunto é, claro, um abismo.
Sendo várias as antologias de artigos do A., a preferência por esta não é arbitrária – do que só o eventual leitor integral, se ainda o há, se aperceberá. Às Avessas reúne sessenta e um artigos[36], publicados – entre 1982 (dois) e 1989 (dezasseis)[37] – n’ O Independente (trinta e dois), no Diário de Notícias (treze), na Grande Reportagem (dez), no Semanário (cinco) e n’ A Tarde (um). Estão distribuídos por quatro áreas temáticas, em larga medida sobrepostas: Livros e Autobiografias (dezasseis); O País das Maravilhas (dezasseis); Liberdades e Democracias (dez); e Política à Portuguesa (dezanove).
Comecemos pelo fim. Nesta última, sob a designação histórica da defunta coluna do arq. Saraiva no Expresso, vai o seu exacto oposto: aquele era o mestre da exposição das evidências (agora já nem isso), Vasco Pulido Valente é o mestre da exposição das essências por detrás delas. Há artigos sobre a remota natureza do Prof. Cavaco (cinco[38]), sobre o substracto ontológico dos políticos (quatro[39]), sobre os ociosos dilemas da esquerda (quatro[40]), sobre os, à data, partidos da oposição (PS, PCP e CDS – um para cada[41]/[42]/[43]), sobre a pandemia da corrupção (um[44]), sobre a correlação – por vezes inversa – entre influência e poder (um[45]) e sobre a muito instrutiva história pátria (um[46]).
Voltemos agora ao princípio: em Livros e Autobiografias, Vasco Pulido Valente escreve sobre o seu peculiar percurso de vida [47]/[48], sobre os modernos padrões de conduta (para si[49]/[50], e para as mulheres [51]), sobre as inestimáveis vantagens de não ir de férias[52], sobre o tépido e nada trepidante mundo da intriga internacional[53] e sobre o triunfo da representação sobre o real [54]. Só por si, um sortido variado. E, naturalmente, escreve sobre um sortido não menos variado de livros (O Romance da Raposa, de Aquilino Ribeiro[55]; Céu Aberto, de Virgínia de Castro e Almeida [56]; Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes[57]; A Morgadinha dos Canaviais e Os Fidalgos da Casa Mourisca, de Júlio Diniz[58]; S. João Subiu ao Trono, de Carlos Amaro[59]; As Encruzilhadas de Deus, de José Régio[60]; As Farpas, de Ramalho Ortigão[61]; e Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins[62]).
Em O País das Maravilhas (como capítulo de Às Avessas) há uma incursão pelas condições materiais de produção romanesca – e a constatação da inata implausibilidade dos portugueses como personagens de whodunits [63] –, quatro artigos sobre a cultura portuguesa – se é que, por atrevimento, existe [64] –, um texto sobre a natureza profunda dos políticos – e sobre as ladainhas que praticam [65] –, dois ensaios sobre a doutrina da igreja – em relação à família e ao seu aggiornamento [66] –, quatro artigos sobre especificidades exóticas da vida nacional – a lógica do subsídio[67], a riqueza envergonhada[68], a Faculdade de Direito de Lisboa[69], e exemplos avulsos da tendência nacional para, à nossa volta, nada funcionar[70] –, e nada menos do que três dissertações sobre o eng. Roberto Carneiro e as suas proezas[71] – um erro de avaliação, a exigir pronta adenda a anterior lista[72], e, pior do que isso, uma pura perda de tempo[73]. E tem, a propósito do folclórico “caso Taveira”, uma rigorosíssima ponderação do melhor critério de compatibilização do direito à intimidade privada com a liberdade de imprensa e o interesse público[74]:
Os políticos do século XVIII e do século XIX não precisavam de ocultar as bebedeiras, os adultérios e as traficâncias. Mas precisavam de ocultar a homossexualidade e a cobardia. Os políticos contemporâneos precisam de ocultar tudo isso e muito mais. No fundo, porém, a situação é a mesma. Em nenhum regime representativo o eleitorado admite que os políticos ignorem os limites da sua “moral”. Ora um político obrigado a viver uma vida clandestina constitui um perigo público, porque se torna vulnerável à chantagem. O seu direito à privacidade não pode, assim, ser igual ao de uma pessoa privada. O direito à privacidade de nenhuma pessoa pública pode ser igual ao de uma pessoa privada porque a única garantia da sua independência é o escrutínio livre e permanente de todos os seus actos , sejam eles de que natureza forem.  
 
 
Por último, Liberdades e Democracias trata, pode dizer-se, das grandes potências: há artigos sobre os costumes americanos (três), sobre a política soviética (três), sobre os efeitos da Iª Grande Guerra na mutação do Estado (um), sobre os Jogos Olímpicos (um), sobre a dissolução dos impérios (um) e, last but not the least, sobre um  “intelectual” português típico.
 A propósito da “longa história de pobreza de espírito e fanatismos vários”[75] do dr. Eduardo Prado Coelho (era ele o “intelectual”, mimoseado com a costumada minúcia), seria desnecessário ao A. elaborar se houvesse algum critério socialmente aceite para perceber “a diferença entre falar fluentemente sobre um assunto e falar informadamente sobre um assunto[76]. Como não havia, nem há, lá está o artigo.
Sobre as nefastas consequências dos nacionalismos eslavos – ou, mais genericamente, sobre os efeitos perversos das justas aspirações de emancipação do jugo imperial – dá-nos o A. uma lição de história[77], susceptível de ser replicada por nossa conta, mutatis mutandis, em outros tempos e coordenadas geográficas.
Efeito muito mais perverso foi o da génese democrática, por exemplo, do nazismo: “A guilhotina e o campo de concentração foram sempre o destino da democracia pura, isto é, da vontade maioritária que não encontra, ou não admite, obstáculos e se acha legitimada pelo facto da sua própria existência.[78]  
Efeito perverso foi também o que transformou os Jogos de Pierre de Coubertin na actual Feira dos Horrores[79], fazendo-os regressar, de certo modo, à sua matriz original. Mesmo deixando de lado as subtilezas do que neles é ilícito (vg: uma qualquer substância artificial) e lícito (vg: as auto-transfusões de sangue sobre-oxigenado), a reflexão informada sobre a sucessão de ideais olímpicos e as suas circunstâncias propiciatórias dá outra perspectiva à bissexta e fascinada contabilidade tri-metálica.
Sobre os assuntos do Império, talvez o assunto a propósito do qual Vasco Pulido Valente mais vezes se enganou[80], três artigos[81] pecam por excesso e por defeito: por defeito, porque, mesmo com o talento de Tocqueville, para descrever as oscilações do melting pot, a extensão de A Democracia na América já não chegaria. Por excesso, porque, não podendo acompanhar as infindáveis e divergentes linhas evolutivas, quaisquer que se sigam levam ao engano.
Sobra (e não sobra pouco) o tratamento da – à altura aparentemente perene, mas já então moribunda – URSS. O melhor é transcrever o que lá está escrito e datado. À luz do que hoje sabemos, qualquer céptico sobre a relevância da minha escolha ou sobre os juízos que a suportam, plácido ou excitado, esquerdista ou não, pode comparar com o que por essa altura andava a publicar – se é que por essa altura andava publicar. Se então não percebeu o que se estava a passar à sua volta, nem sequer tem de se lamentar: dando-se ao maior esforço de reler o que sobre o evoluir da perestroika se escreveu contemporaneamente na imprensa mundial de referência, não vai encontrar nada de semelhante. Em 15 de Setembro de 1989 (repito: Setembro de 1989), escrevia Vasco Pulido Valente:
O Estado russo, centralizado, burocrático e despótico, não era, como supunha Marx, uma, simples aberração oriental. Nem, como supunha Lenine, o aparelho repressivo da classe dominante. Era um instrumento indispensável para sufocar as aspirações nacionalistas. Depois da revolução, Lenine imaginou que a solidariedade “operária”, ecuménica por natureza, anularia as tendências centrífugas. A ilusão não persistiu. A organização política e administrativa do novo regime copiou e reforçou a do antigo. As boas almas do Ocidente costumam rir-se da ineficácia do Estado comunista, como outrora se riam da ineficácia do Estado dos Czars. Ora, pelo contrário, esse Estado foi eficacíssimo. Foi um autêntico prodígio político. Sem dúvida que nada contribuiu para enriquecer e libertar os povos do império. Mas também não exista para isso. Existia para conservar o império indiviso e para o acrescentar e defender de ameaças externas. O Estado comunista resistiu a uma guerra de extermínio, subordinou a si a Europa Central e, vingando cem anos de humilhações, acabou por se tornar numa das DUAS maiores potências militares do mundo. Nicolau I teria chorado de emoção nos braços paternais de Estaline.
(...)
Como Alexandre II,  Gorbachov  encontrou obstáculos políticos irremovíveis. Planeava “reestruturar” a URSS, injectando-lhe um módico de “liberdade“. Acontece que essa “liberdade” enfraqueceu o Estado e acordou os nacionalismos. Em vez de uma “reestruturação” racional e ordeira, o resultado foi o perigo iminente da “desintegração da república”. Na economia, a perestroika falhou. Na sociedade, deixou as coisas na mesma. Mas pôs em causa o único valor subsistente numa época de vexame e derrotas, a santa integridade do império. A Ucrânia tem 51 milhões de habitantes e é a região mais desenvolvida da URSS. Hoje não se vive melhor na Ucrânia do que se vivia nos ominosos tempos de Brejnev e apareceu por lá uma frente popular, que apoia a perestroika e pede, em comícios, a independência.
    Gorbachov não vai durar muito. Adeus, Gorbachov! [82]
Como líder, Gorbachov pouco mais resistiu: com um golpe militar pelo meio e sem poder efectivo depois dele, até à véspera da dissolução da URSS, em 26 de Dezembro de 1991 – depois de ter assistido, impotente, à declaração unilateral da independência das anteriores Repúblicas Soviéticas.
Em 16 de Junho de 1989 (repito: Junho de 1989), Vasco Pulido Valente já tinha avisado que “a consequência fatal da democracia* da Polónia e da Hungria seria a democratização da Alemanha de Leste e a fatal consequência disso a reunificação alemã.”[83] Num artigo de 13 de Outubro de 1989 n’ O Independente (repito: de Outubro de 1989), que não reproduziu em livro[84] (“O problema alemão”), teve ocasião de explicar essa sua ideia:
A Alemanha de Leste não é como a Hungria ou a Polónia um estado nacional, é um estado ideológico, cuja legitimidade deriva apenas dos princípios marxistas-leninistas em que supostamente se funda. Qualquer perestroika por diluída que seja, se arrisca a pôr em causa esses princípios e fatalmente a dissolver o Estado. Se a Alemanha de Leste tolerasse “reformas”como as da Polónia ou da Hungria, e mesmo como as da URSS, não durava muito. Cada “reforma” a iria aproximando da Alemanha Federal e, como se compreenderá, não há sentido algum na separação entre uma Alemanha democrática e capitalista e outra Alemanha em transe de reestabelecer as liberdades e o mercado. A RDA não tem espaço para compromisso: ou não muda rigorosamente nada, ou se une à República Federal.
Como todos sabemos, o Muro de Berlim caiu na noite de 9 de Novembro de 1989, um mês depois a Cimeira da CEE aprovou o princípio da reunificação alemã, as conversações para essa reunificação começaram depois de Março de 1990 (após as primeiras eleições livres na RDA), e a incorporação desta na RFA teve efeito em 3 de Outubro desse ano, nos termos do Tratado de Unificação de 31 de Agosto.
Antes, em 31 de Março de 1989 (repito: Março de 1989), não apenas sobre a evolução da URSS mas também sobre a de outros dois países, já Vasco Pulido Valente traçara o mapa do futuro:   
A semana passada houve um simulacro de eleições na URSS. Mas desta vez com candidatos concorrentes, voto secreto, vitória de alguns “oposicionistas” e outros ornamentos da coisa genuína, que sem serem decisivos dão às pessoas um gostinho antecipatório. Na aparência, as democracias ocidentais estão felizes com a “liberalização” russa, popularmente denominada perestroika; e felicíssimas com a liberalização mais séria e mais profunda da Hungria e a da Polónia. Isto só serve para mostrar como a memória humana é curta e longa a estupidez dos homens. Segundo a tese oficial dos “especialistas” americanos, provavelmente filhos dos que inventaram a guerra do Vietnam, a perestroika vai trazer muita paz e muita segurança ao mundo. Se não parar, depressa e à bruta, vai trazer com certeza o contrário.
(...)
Sucede todavia que em algumas matérias não existe meio-termo: não se pode estar um bocadinho grávido e não se pode ser um bocadinho democrático. O poder não se legitima com a encenação da democracia. A encenação da democracia tem um único efeito garantido: o de levar directamente à exigência da verdadeira democracia. Nenhum outro.
Ora, se uma bela manhã, os habitantes da URSS acordarem soberanos, como não são um povo, mas vários, hão-de querer imediatamente sair da URSS. Até porque quase sempre detestam os vizinhos, as suas próprias minorias e sobretudo o povo imperial, o russo, que os oprime e explora com requintes de barbaridade, desde os santos czares. A URSS democrática é uma impossibilidade política: ou é a URSS e não é democrática; ou é um caos de nações independentes, condenadas ao conflito externo e à tirania interna. Viu-se já um pequeno ensaio disto no episódio edificante da província arménia, que a Arménia e o Azerbeijão disputam, e na nítida tendência cisionista das repúblicas Bálticas. A vigiadíssima liberdade da perestroika não melhorou evidentemente a economia soviética (longe disso), mas, como era lógico, desencadeou na URSS inteira a mais cega e destrutiva das paixões, o nacionalismo.
(...)
Existem igualmente na região dois estados, a Jugoslávia e a Checoslováquia, que, sendo artificiais desde a origem, não suportam qualquer espécie de democracia, por muito que se invoque o (falso) exemplo da Checoslováquia dos anos 20 e 30.  Num e noutro caso, como amplamente demonstram os presentes sarilhos jugoslavos, a perestroika significa, tarde ou cedo, a explosão do Estado. Nem Deus sabes o que vai depois acontecer aos bocados.  
Provando que em muitos casos a omnisciência divina é só uma questão de tempo, até nós, agora, sabemos: a República Checa e a Eslováquia separaram-se pacificamente em 1 de Janeiro de 1993. Na Jugoslávia, foi necessária uma brutal guerra civil (que ameaçou degenerar numa guerra internacional) e o tumultuoso regresso à barbárie – com o genocídio de Srebrenica e uma série de (eufemisticamente designadas) “limpezas étnicas” – para criar um punhado de estados[85].
É certo: Vasco Pulido Valente voltou a ver o futuro, mas nunca com tanta precisão. Mas, Deo Gratias, basta ler a última página do Público do fim-de-semana para perceber que nunca deixou de perceber o nosso presente.
                                                                                        Victor Calvete

 
 
 




[1] “Nós e Eles – Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes”, Às Avessas, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, p. 51. Doravante, a referência a um artigo sem indicação da fonte remete para esta obra.
[2] “O Modo da Vida”, Retratos e Auto-Retratos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992, p. 43.
[3] “O Medo – As Encruzilhadas de Deus de José Régio”, p. 62.
[4]  “O Modo da Vida”, Retratos e Auto-Retratos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992, p. 49.
[5] Vasco Pulido Valente em entrevista a Carlos Vaz Marques, Ler - Livros & Leitores, n.º 82, Julho de 2009, p. 42.
[6] “O Modo da Vida”, Retratos e Auto-Retratos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992, p. 51.
[7] “Má educação”, Esta Ditosa Pátria, Relógio d’Água, Lisboa, 1997, pp. 367-368.
[8] “O Medo – As Encruzilhadas de Deus de José Régio”, p. 62.
[9] “O Modo da Vida”, Retratos e Auto-Retratos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992, p. 47.
[10] Maria Filomena Mónica, Bilhete de Identidade - Memórias 1943-1976, Alêtheia, Lisboa, 2005.
[11] Entrevista do Expresso, 17 de Novembro de 2007.
[12] Vasco Pulido Valente em entrevista a Maria João Seixas, Pública, 1 de Outubro de 2000, p. 28. Se o convidado para o lugar não tivesse falhado à última hora, teria sido Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro, como previsto.
[13] Artigo n’O Independente de 3 de Fevereiro de 1989, em que trocou a redacção da sua página (“Revisões”) por uma outra (“Consolo Remoto”).
[14] Vasco Pulido Valente em entrevista a Maria João Seixas, Pública, 1 de Outubro de 2000, p. 30.
[15] “O Medo – As Encruzilhadas de Deus de José Régio”, p. 62.
[16]  Retratos e Auto-Retratos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992, pp. 61-70.
[17] Vasco Pulido Valente em entrevista a Carlos Vaz Marques, Ler - Livros & Leitores, n.º 82, Julho de 2009, p. 42.
[18] Refiro-me aos que tomam Vasco Pulido Valente como inimigo – e que são muitos mais do que supõe –, não aos que ele escolhe como tais: “Os inimigos são a minha essência e o meu abrigo. São a minha disciplina. A minha disciplina consiste numa única regra, grossa, básica, salvífica: não ser como eles. ” – “Eu Sempre Fui assim: Auto-retrato aos 50 anos”,  Retratos e Auto-Retratos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992, p. 20.
[19] Idem, p. 21.
[20] Com a substituição da pivot desse jornal, a partir da sua edição de 4 de Setembro de 2009, Vasco Pulido Valente “voltou a casa."
[21] A sua explicação: “escrever (um ofício em que me eduquei) é exactamente o contrário de falar. Quem fala improvisa; quem escreve calcula, planeia, emenda, substitui. Os dois processos são contrários. Pior, são incompatíveis.” “Voltar a Casa”, Público, 6 de Setembro de 2009.
[22] “Influência e Poder”, p. 209. Ainda é assim: há certas coisas que nunca mudam.
[23]  Idem.
[24]  Idem.
[25]  A primeira obrigação dos “colunistas” ia, parece, ao encontro da sua intrínseca natureza: “Ele sabia tudo o que havia a saber, ouvira toda a música que havia a ouvir e dissertava sobre tudo o que havia a dissertar.” É claro que se tem de se descontar o juízo, porque foi proferido – dessa vez com extrema exactidão classificatória, diga-se – por “uma menina loira”. (Maria Filomena Mónica, Bilhete de Identidade – Memórias 1943-1976, p. 212).
[26]  “Desventuras de um autodidacta – As Farpas de Ramalho Ortigão”, p. 67.
[27]  O País das Maravilhas, Intervenção, Lisboa, 1979, p.11.
[28]  Vasco Pulido Valente em entrevista a Carlos Vaz Marques, Ler – Livros & Leitores, n.º 82, Julho de 2009, p. 8. Há-de haver nisso muita modéstia, porque do volume não consta nenhum dos inúmeros textos que dedicou, por exemplo, a Mário Soares e a Cavaco Silva. E nem um nem o outro se entendem, fora da sua hagiografia, sem ler o que sobre eles ele escreveu.
[29] A sua colaboração nesse semanário iniciou-se no número 1 (de 20 de Maio de 1988) sob o título genérico Revisões, prosseguiu sem designação própria, e converteu-se depois ao título que foi escolhido para a antologia. A partir de Abril de 1996, encerrada a série “O mundo está perigoso”, adoptou outra marca (Às Direitas). Na obra do A., Às Avessas remete, portanto, para dois universos: o da série de artigos n’ O Independente publicados sob essa designação (que não está aqui em causa), e o dos artigos recolhidos no livro, anteriores e de diversa proveniência.
[30]  Vasco Pulido Valente em entrevista a Carlos Vaz Marques, Ler – Livros & Leitores, n.º 82, Julho de 2009, p. 39.
[31] “Éramos assim absurdos em 1963”, p. 20.
[32] Vasco Pulido Valente em entrevista a Carlos Vaz Marques, Ler – Livros & Leitores, n.º 82, Julho de 2009, p. 39.
[33] “Modernos e “Modernizados””, p. 87.
[34] Idem. Vasco Pulido Valente voltou ao assunto em entrevista a Carlos Vaz Marques, Ler – Livros & Leitores, n.º 82, Julho de 2009, p. 39: “Se você começa a escrever como o Hemingway faz sub-Hemingway. Se começar a fazer outra coisa qualquer – um Gabriel Garcia Márquez – não faz nada de especial. Faz sub-Garcia Márquez ou outra coisa qualquer que lhe passar pela cabeça.”
[35] Os títulos maiores, entre edições originais e edições revistas, são As Duas Tácticas da Monarquia Perante a Revolução, Dom Quixote, Lisboa, 1974; Estudos sobre a crise nacional, INCM, Lisboa, 1980; Tentar perceber, INCM, Lisboa, 1983; Os “Devoristas” - A Revolução Liberal 1834-1836, Quetzal, Lisboa, 1993;  A República Velha (1910-1917), gradiva, Lisboa, 1997; Os Militares e a Política (1820-1856), INCM, Lisboa, 1997; O Poder e o Povo, gradiva, Lisboa, 1999; Glória, gótica, Lisboa, 2001; Marcello Caetano – As desventuras da razão, gótica, Lisboa, 2002; Um Herói Português - Henrique Paiva Couceiro (1861-1944), Alêtheia, Lisboa, 2006; Ir prò Maneta - A Revolta contra os Franceses (1808), Alêtheia, Lisboa, 2007; e Portugal - Ensaios de História e de Política, Alêtheia, Lisboa, 2009. 
No seu Uma Educação Burguesa... Notas sobre a ideologia do ensino no Século XIX, Livros Horizonte, Lisboa, 1974, há uma bibliografia mais extensa. 
[36] Mais do que em Retratos e Auto-Retratos (dezoito), tematicamente homogéneo e com menos páginas, e menos do que em Esta Ditosa Pátria (oitenta e oito), com mais páginas.
[37] De 1983 há apenas um artigo (o que é repetido em Portugal – Ensaios de História e de Politica), de 1984 há doze, de 1985 oito (todos publicados na Grande Reportagem), de 1986 volta a haver só um artigo, de 1987 há cinco e de 1988 dezasseis – ou seja: mais de metade dos textos remonta aos últimos dois anos da série.
[38] “O Mistério de Cavaco”, “Perder e Ganhar”, “Drama Cavaquiano”, “O Grande Mundo do Dr. Cavaco”, e “Um “Marcellismo” Aflito” (que, no original, se intitulava “Depois disto”) – pp. 218-239. Sobre o tema, é preferível não entrar em pormenores.
[39] “O que Está Dentro dos Políticos”, “Os Políticos e a História”, “O Busto de Napoleão” e “Políticos e Jornalistas” – pp. 191-203 e 212-215. No primeiro artigo – que, sendo sobre o Marechal Duque de Saldanha, podia, na essência, ser sobre o dr. Mário Soares (embora, aparentemente, Vasco Pulido Valente não queira reconhecê-lo) – estava a cartilha política dos vários salvadores da Pátria: “o país não podia dispensá-lo e não havia melhores intenções do que as dele”, p. 193.
Apenas outro exemplo: “Aos olhos inocentes dos laicos, os políticos ocupam-se quase exclusivamente a enganar-se e a enganar-nos, estando eles próprios, para nossa desgraça e desgraça deles, enganados. Esta noção vulgar não é destituída de fundamento empírico, mas não basta para explicar o mundo. Os políticos não vivem no mesmo lugar em que nós vivemos, com as mesmas regras e os mesmos fins.” – p. 191.
[40] “Reflexões Sobre a Esquerda”, “Porque é que a Esquerda Não Pode Governar”, “A Morte da Esquerda” e “Onde Raio se Meteu a Teoria?”- pp. 240-255 e 266-269. Notando que “a Esquerda procura angustiadamente uma forma qualquer de salvação.”, e que “A tragédia é que a sua salvação parece estar em abolir-se como Esquerda.” (pp. 254-255), Vasco Pulido Valente antecipou o rumo do glorioso Sócrates, que disfarçou como pôde em matéria de costumes.
[41] “CDS”, pp. 216- 217. Sobre a agremiação e os seus líderes (pré-Manuel Monteiro, que viria depois), escrevia: “Nunca ninguém o levou a sério e até os seus chefes e fundadores se banharam sempre numa peculiar irrealidade.
Eram de resto eminentemente simpáticos, honestos, convictos, cumpridores. Via-se que tinham respeitado os pais, ido à missa, sido castos, estudado muito e casado com meninas virgens; e que tinham em casa filhos ranhosos e candeeiros dourados.” – p. 217.
[42] “Catarina Eufémia Não Estava Grávida”, pp. 256-258. Como as Pirâmides, o PCP nunca muda.
[43] “Como “Abrir” o PS”, pp. 262-265. Custa a crer, mas o dr. Jaime Gama chegou a disputar a liderança do PS. Custa a crer, mas foi com o dr. Jorge Sampaio.
Mas, claro, isso foi antes dos tempos da inesquecível liderança do dr. Ferro Rodrigues.
[44] “A Caça a Cadilhe”, pp. 204-207. Vasco Pulido Valente notou o que, sendo óbvio, vai escapando ao recorrente (e inócuo) debate público sobre a corrupção: nessa altura, como agora, mas sobretudo agora, “em Portugal a corrupção que pesa é legal: legalíssimas compras ao Estado, legalíssimas vendas ao Estado, legalíssimos contratos com o Estado, legalíssimos empréstimos, subsídios, operações financeiras e autorizações.” – p. 205. A actualização da lista implicaria hoje legalíssimas alterações da delimitação de áreas protegidas e, o que é o cúmulo da desvergonha, legalíssimas leis de amnistia e legalíssimas alterações ao Código Penal.
[45] “Influência e Poder”, pp. 208-211. O A. lastimava o recrutamento governamental do dr. Francisco Sousa Tavares: “Há, sabemos, indivíduos cujo único prazer reside em lá estar. Nestas alturas, convém vivamente deixá-los.” – p. 208. Mas também há casos em que daí resulta um palpável benefício público: o dr. José Magalhães é um superveniente exemplo de insuportável “influência” mediática, que a incorporação no Governo reduziu, para descanso de todos, ao mais compenetrado silêncio.
[46] “O Sr. Bispo de Viseu, o Zé Dias e o Caminho da Granja”, p. 259- 261. O que há de mais significativo na história do Partido Reformista – em comparação com a do PRD, por exemplo – é que foi logo apodado de “estafermo”. Por Eça “(que percebeu depressa a natureza da coisa)” – p. 261.
[47] “Éramos Assim Absurdos em 1963”: é o único dos artigos antologiados em Às Avessas que o A. fez transitar para o seu próprio cânone (tal como apresentado em Portugal – Ensaios de História e de Politica). Nele se conserva a metáfora (de João Bénard da Costa) de O Tempo e o Modo como “piano geracional”.
[48] “Confissões de um Camaleão”: “Em nenhuma altura da minha vida acreditei em Deus ou na revolução e, sobretudo, não acreditei primeiro em Deus e depois na revolução, como foi a regra dos últimos trinta anos.” – p. 23.
[49] “Ser sempre saudável e nunca morrer”: “Nada me impede, senão a minha íntima perversidade de me conservar, já não digo tão belo, mas tão radioso como Jane Fonda.” – p. 30.
[50] “A obrigação de ser feliz”: “Envelheci aos berros e aos urros, admito, mas com uma completa confiança teórica na natureza maléfica do acontecimento em si.” – p. 33.
[51] “Corações inconsoláveis ou a mulher libertada nos anos 80”: “Não falo da destruição ritual pelo fogo da roupa interior mais associada à humilhante qualidade de mamífero da fêmea da espécie. Este protesto contra vexames, que não sucedem, por exemplo, a uma rã, com boa vontade, pode perceber-se.” – p. 37.
[52] “Não ir de férias”: “Em Setembro ou Outubro, os que “foram para férias”, “vêm de férias”: exaustos, irritados, sem um tostão.” – p. 44.
[53] “Espiões e Diplomatas”: “Fiquei estupefacto. As conversas entre os Poderes do universo eram de uma trivialidade assustadora.” – p. 26
[54] “Um dia na vida de Eça de Queiroz”: O seu poder foi tão grande e a sua persuasão tão forte que, passados cem anos, se, para nós, a província dos excessos e das paixões é talvez Camilo, Lisboa é unicamente a lassidão, a mesquinhez e o ridículo da Lisboa de Eça. Havia outra, a que ele entreviu a 30 de Março de 1867. Só que ninguém a escreveu. Ou quem a escreveu, a escreveu mal: o que é o mesmo.” – p. 75.
[55] “A Noção de Bem e de Mal”: “devo agradecer a Aquilino ter-me deixado, depois do meu primeiro livro, sem a mais vaga noção de bem e de mal.” – p. 47
[56] “O Lugar do Saber”: “A incrível perenidade deste romance medíocre, publicado entre 1906 e 1910, e que em 1960 guardava ainda o seu lugar de excepção na literatura infantil portuguesa assenta num único pilar: a sua total e beata aceitação do dogma pequeno-burguês da omnipotência do saber.” – p. 50.
[57] “Nós e Eles”: “Não interessa apurar se os Esteiros cabem no conjunto de jeremíadas a que se deu o nome de neo-realismo. Apesar de alguns sinais discretos de Marx, pertencem à família mais nobre dos grandes panfletos românticos contra a injustiça burguesa, de que são, em português, o primeiro, e também o último exemplar.” – pp. 52-53.
[58] “A Harmonia do Mundo”: “Os Fidalgos e em certa medida a Morgadinha, como as melhores epopeias soviéticas sobre o desbravamento da Sibéria, ou as unidades colectivas de produção, não pretendem descrever um mundo, pretendem criá-lo pelo verbo.” – pp. 56-57.
[59] “Salvar a Pátria”: “Continuamos todos à espera de um Cavaleiro. Mas dele, graças a Deus, até agora... “nem a sombra, nem a espada, nem o rabo do cavalo.– p. 61. (O texto foi publicado em 15 de Fevereiro de 1985 – mesmo a tempo, portanto: em Maio, no XII Congresso do PSD da Figueira da Foz, chegou um dos nossos “homens providenciais”.)
[60] “O Medo”: “A Universidade, secção de humanidades e ciências sociais, é um armazém tradicional de artistas puramente putativos, que, entre fichas e notas de pé de página, alimentam ambições patéticas de vir a tirar do cérebro uma ideia ou até uma frase, susceptíveis de interessar os outros.” – p. 62.
[61] “Desventuras de um Autodidacta”: “As Farpas são um típico produto português: a obra de um provinciano autodidacta.” – p. 66.
[62] “O Livro Único”: “Escrito com um vertiginoso desprezo por estas criaturas, pelos seus actos, as suas experiências e as suas ilusões, o Portugal Contemporâneo é, sem dúvida, a mais gloriosa obra literária do século.” – p. 71.
[63] “O Cadáver Esquisito”: “Os nomes, como lhes compete, identificam e, se se for pendurar uma tabuleta no cadáver, ele dilui-se imediatamente nas ervas. Um desconhecido pode em rigor estar assassinado no campo de golfe; um Sáurio, um Vândalo ou uma Belissa, também. Não têm de lá estar. Mas podem lá estar. Um Mário ou um Salvador não têm nem podem. O seu próprio nome remete para a realidade e choca-se com ela. Se fossem reais não estavam ali; se estão ali, não são reais. – p. 82.
[64] “Modernos e “Modernizados””, “O Património Cultural da Nação Portuguesa”, “Desamar as Nossas Coisas” e “A Rosa das Nossas Comemorações”. A tese é a de que “a cultura portuguesa é derivada e imitativa” (p. 95) e, ainda para mais, estreitíssima: “Não mais de uma dezena de pessoas mudou, determinou ou fixou a imagem que temos de nós; criou a nossa consciência à semelhança da sua; nos obrigou a olhar como ele olhava; a falar com as suas palavras; a pensar com a sua cabeça. Entre escritores e poetas: Eça, Camilo, Pessoa e Nobre. Pintores: Malhoa; Historiadores: Oliveira Martins.” – p. 91.
[65] “Introdução ao Estudo do Cant”: “Existe uma palavra inglesa que descreve com exactidão o ruído, indistinto e sem sentido, que os nossos políticos nos dirigem quando pretendem comunicar connosco. Essa palavra é cant. Segundo o dicionário de Oxford, cant significa: o calão ou linguagem secreta ou peculiar de uma seita, de uma classe ou de uma disciplina; uma linguagem insincera ou hipócrita; um conjunto predeterminado de palavras repetido mecanicamente; um estereótipo em moda; uma fraseologia vácua e pretensiosa, em especial se implicar falsa bondade ou fé.” – p. 101.  
[66] “A Igreja e a Família” e “A Igreja Vai para a Esquerda”, pp. 117-124.
[67] “Uma Casa Portuguesa”: “Tal ministro [da Cultura], principalmente se, como com frequência sucede, é analfabeto ou quase, jamais se atreverá a manifestar indiferença seja pelo que for que se lhe apresente como Cultura (com C grande).” – pp. 105-108.
[68] “Elogio dos Ricos”: “Se encontrar uma criatura tímida e sóbria, muito simples, muito despretensiosa, muito amável, já sabe: trata-se de um rico.” “Contemple um indivíduo barulhento, grosseiro, agressivo: aí está um pobre. Examine com atenção as maneiras despóticas, as exigências insensatas, as ameaças irresponsáveis: mais um pobre.” “Na realidade, os ricos adquiriram a mansidão do pobre ideal, enquanto os pobres, mimados e lisonjeados, ostentam uma brutalidade patrícia.” – p. 110.
[69]Ou [a] de Coimbra, se preferir a província.”, in “Direito à Portuguesa”, p. 128.
[70] “Não me Lixem”: “há séculos que os portugueses sabem que o Estado e o governo, seja ele qual for, os desejam lixar. Aqui anuncia-se a descoberta de que praticamente todas as instituições e todos os portugueses aspiram a lixar os portugueses.” – p. 142.
[71] “O Vendedor de Ilusões”, “Hipocrisia Organizada” e “O Desenvolvimento Moral, Religioso, Pessoal e Social”, pp.129-141.
[72]Movido por uma estranha perversidade, cheguei a preocupar-me com personagens tão intimamente insignificantes como Balsemão ou Lucas Pires, Eurico de Melo ou Helena Roseta.” – “Os Políticos e a História”, p. 195. 
[73] Sobre o erro em que a “educação oficial” se obstina, leia-se antes “O equívoco do Prof. Grilo”, Esta Ditosa Pátria, Relógio d’Água, Lisboa, 1997,pp. 217-220.
[74] “O Público e o Privado”, pp. 115-116. Por lapso, por reconhecimento da importância do critério que oferece “iure condendo”, ou para dar lastro ao artigo re-publicado a seguir (de 1993), sobre o mesmo tema, é também reproduzido em Esta Ditosa Pátria, pp. 257-260. Como nenhuma boa acção passa sem a sua retribuição, seguiram-se os eventos relatados em “Carta a um inocente sobre a justiça em Portugal”, Esta Ditosa Pátria, Relógio d’Água, Lisboa, 1997, pp. 230-234.
[75] “Valha-nos Deus”, p. 188. Aqui certamente por lapso, também encontrou uma segunda casa em Esta Ditosa Pátria, Relógio d’Água, Lisboa, 1997, pp. 155-158.
[76]  “Desventuras de um Autodidacta”, p. 167.
[77] “Saudades de Viena”, pp. 149-152. O conhecimento da História – como o conhecimento do que quer que seja – nunca impediu ninguém de cometer os mais desmiolados actos, mas o A. adverte, com razão, que “talvez um módico entendimento do passado, mesmo do passado próximo, diluísse a convicção ingénua da absoluta originalidade do nosso tempo e conseguisse evitar alguns erros, ilusões e asneiras.” – “Se não é por isso...”, Esta Ditosa Pátria, p. 273.
[78] “O Outro Centenário”, pp. 167-168.
[79] Era o título do texto, justíssimo para a exploração do trabalho infantil com que se fabricavam, e ainda fabricam, “campeões”.
[80]  Se tivesse que me aventurar numa opinião, repegaria na sua “teoria do funil” (vg, Vasco Pulido Valente em entrevista a Teresa Coelho, Pública de 9 de Dezembro de 2001, p. 32) – o seu sucedâneo da bola de cristal. Quando “adivinhou” o futuro, é porque se limitou a observar a espiral descendente até antever o seu inevitável ponto de saída. Por um efeito de escala (não adianta explicar), no caso dos EUA nem o desenho do funil é tão fácil de fazer, nem a descida pelo gargalo é impossível de travar.
[81] “Ver Washington pela Televisão”, “Desgostos de Família” e “Quem a Tem Chama-lhe Sua”, pp. 169-180 – , por ordem, os primeiros três artigos publicados em O Independente.
[82]Adeus, Gorbachov”, pp. 163-164. No texto original seguiu a terminação da grafia inglesa (Gorbachev).
* No original estava “democratização”.
[83] “A Superstição Democrática”, p. 160.
[84] Presumivelmente porque ia nele uma outra previsão que se revelou, a dizer o menos, problemática: “Ou a CEE se dissolve ou os actuais Doze baixavam à pouco invejável condição de estados clientes do Reich renascido. A CEE presume uma Alemanha dividida e não é concebível de outra maneira.
[85]  A título indicativo: Sérvia (1992 – incluindo o Montenegro; 2006, como entidade totalmente separada), Croácia (1991 – guerra entre 1991 e 1995), Eslovénia (1990 – guerra em 1991), Bósnia e Herzegovina (1995, após os acordos de Dayton – guerra entre 1992 e 1995), Montenegro (2006 – fim da federação constituída em 2003 com a Sérvia), Macedónia (1991) e a República do Kosovo (2008, soberania ainda contestada – guerra entre 1996 e 1999).



8 comentários:

  1. Boa. É o dr. Victor Calvete que passou pela Faculdade de Direito da UC?

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  2. O dr. Vitor Calvete, naturalmente, não faz parte da choldra, que é 99,9%... :). Um génio absoluto, o Vasco Pulido Valente. A sua mitificação neste país, ironicamente, diz muito bem do que é ser português.

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  3. V P Valente é um artista .Faz-me rir nas muitas vezes que o leio.Não vou repetir que aos artistas deve ser dado um desconto...E este é o entendimento geral o que explica que ainda não tenha sido sovado na rua á Eça...

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  4. Excelente artigo.
    Superiormente bem escrito.
    Parabéns, VC.

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  5. Aceite os cpmts. de um leitor compulsivo de VPV.
    Artigo excelente.

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  6. Demasiado bêbado, ignorante, petulante e arrogante hoje em dia. Se já lhe fazem encomendas destas é porque já está perto de ir ter com o criador.
    Envelheceu mal, chulou o Estado no ICS mas finge que nada se passou e fala demasiado do que não sabe hoje em dia - não, não me refiro ao detido número não sei quantos da cadeia de Évora.

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  7. Tudo muito giro, mas falta mencionar o vergonhoso episódio de quando Vasco CORREIA GUEDES foi falar, em 1971 ou 72, com o inspector Pereira de Carvalho da PIDE para que este lhe expurgasse do cadastro certas actividades contra a ditadura ("derriços de juventude", alegou), de modo a que pudesse leccionar no então ISEF, actual ISEG. Propôs o mesmo cambalacho ao saudoso César Oliveira e este honradamente recusou - a integridade mata, pelos vistos. Dúvidas? Consultem o livro de memórias políticas de CO, "Os anos decisivos".

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