quinta-feira, 16 de abril de 2015





impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

 

# 31 - MODERN JAZZ QUARTET

 
 

                                                                                                            Litografia de Sam Nhlengethwa

 
 

 

Quem ainda estiver embrenhado no denso matagal ideológico dos anos 60 e 70 não reparará que a guerra acabou e o jazz seguiu por diante. Estes irredutíveis, disciplinados na escola da New Thing (generalizando: Pharoah Sanders, Archie Shepp, Sam Rivers, Anthony Braxton), perseveram num olhar em volta impregnado de dialéctica e doses maciças de sentido crítico, revestido por alguns des-construtores franceses da época. Não abdicam, assim, de arrogar o jazz como um género historicamente insubmisso e insurrecto, mas sobretudo evolutivo, em perpétua antítese face ao legado das gerações anteriores.

Deste modo, a simples menção do Modern Jazz Quartet é capaz, ainda hoje, de franzir inúmeras sobrancelhas. Quatro cavalheiros engravatados e de fato completo, quando não de tuxedo, ou smoking, como se diz em português de gema, com o lenço a sair do bolso do paletó, com um aspeto muito pouco insurgente ou ameaçador, propõem-se tocar “jazz de câmara”. John Lewis, o cabecilha do grupo, confessa-se culpado: “quisemos trazer uma dignidade que todos recordávamos de ver nas big bands da era do swing.” Jazz de salão, portanto (é moda actual dizer lounge), para ouvir como um aperitivo, entre o tilintar de Dry Martinis ou taças de champagne; de novo Lewis, contumaz: “Queríamos chegar às salas de concerto em vez de estarmos sempre condicionados aos clubes.” Jazz para brancos (e dos ricos, de Nova Iorque), sem o suor no corpo do swing, nem a inquietação emocional do bebop, ou a tensão arterial do cool? Pois nada disso.

As credenciais boppers de John Lewis (piano), Milt Jackson (vibrafone), Ray Brown (contrabaixo) e Kenny Clarke (bateria), eram insofismáveis, já que se haviam agremiado na orquestra de Dizzy Gillespie, na qual constituíam o núcleo rítmico. Para dar descanso à secção de sopros, muito puxada pelas exigentes partituras de Dizzy, ao quarteto eram concedidos alguns minutos sozinho em palco, a meio dos concertos. Só não passaria pela cabeça de ninguém que o entreacto viesse a durar 40 anos.

 


 

Fontessa
1956 (2009)
Atlantic - #WPCR-13423
John Lewis (piano); Milt Jackson (vibrafone); Percy Heath (contrabaixo); Connie Kay (bateria).

 

 

Com data de 1956, Fontessa demarca-se como a primeira gravação do remodelado Modern Jazz Quartet, que sofrera duas alterações nos três anos anteriores. Ray Brown teve que desistir para dedicar mais tempo ao acompanhamento da sua entretanto ex-mulher Ella Fitzgerald – Percy Heath ocupou o seu lugar no contrabaixo até ao fim. A Kenny Clarke apoquentaram problemas de identidade com os métodos e os desígnios do grupo, apenas sanados com a separação, dando a vez a Connie Kay.

Tendo todos estes músicos reputação e renome equivalente, nenhum quis ser sideman do outro, menos ainda ter a responsabilidade empresarial de pagar os ordenados aos restantes. De modo que concordaram numa organização cooperativa e assaz igualitária, feito deveras excepcional na história do jazz.

Fontessa é, pois, a casa de partida da maturidade e da longevidade do Modern Jazz Quartet. Seria imponderado afirmar que nele se grifam os cromossomas daquilo que o grupo desenvolveria ao correr das quatro décadas posteriores; mais certo é admitir que anuncia, em exercício de alto risco formal, tudo o que o novelo do tempo viria a lustrar como evidente e unânime.

Críticas menos acintosas do que emotivas estigmatizaram a música de Fontessa como académica. Tocavam aqui um nervo: John Lewis terá sido o primeiro músico de jazz no activo com licenciatura e mestrado em musicologia, com especial dedicação ao estudo do contraponto e fuga. Agravava o caso que a proposta do disco fosse conciliar as modernas (à falta de melhor palavra) harmonias do bebop com figuras musicais do barroco europeu, para criar uma atmosfera de Commedia dell’Arte. Ou seja, o Modern Jazz Quartet arriscava um ominoso pretensiosismo, com todos os ingredientes para levedar numa intragável mixórdia estilística.

Mas não é por atingir o alvo que o tiro é acertado. A atitude de John Lewis, admitindo alguma cerebralidade, era sobremaneira franca e experimental, precisamente o contrário de asserções taxativas e arrogantes. Por outro lado, havia ainda que contar com Milt Jackson, sobre quem se pode afoitar que não terá havido improvisador mais bluesy que ele, climatizador e arrebatado ao mesmo tempo. Como é que isto se faz? Com o swing indomável dos temas “Bluesology” ou “Willow weep for me” ou “Woodyn you”, eis como… E se Lewis calcula e Jackson inventa, no seu flanco, mas nem um passo atrás, Percy Heath, alicerça e Connie Kay impulsiona.

Fontessa foi pois o princípio de uma bela amizade e, melhor para nós, de uma bela carreira. O Modern Jazz Quartet dissolver-se-ia em 1974 com um esgotadíssimo concerto de despedida no Avery Fisher Hall de Nova Iorque. Mas, reproduzindo o costume dos toureiros, a retirada preparou um regresso. Reunido de novo em 1981, o conjunto estendeu-se sem iteração até 1992. Só velhice os voltou a separar.

 


 
 
José Navarro de Andrade

 

5 comentários:

  1. Soberbos, também quem tem Ray Brown tem tudo.
    Vou publicar um dos que tenho, vai escolhido pela capa.
    Até logo.

    ResponderEliminar
  2. Sobre Graciliano Ramos dizia Nelson Rodrigues:O alagoano "nasceu clássico".Sobre os MJQ eu diria data venia o mesmo.Fantásticos pena que não houvesse casa da musica quando os vi no Porto.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A Casa da Música seria mesmo o lugar ideal para ouvi-los. Mas na Casa de Chá de Leça também não ficariam nada mal. Vendo bem, no Porto não faltam salas belíssimas onde o MJQ assentaria que nem uma luva - o Palácio da Bolsa, por exemplo.

      Eliminar
    2. A Casa de Cha de Leça neste momento está ocupada por uma trupe de artistas que leva a cena farsas gastronómicas.Caso se sinta tentado a assistir a uma das recitas aconselho duas cautelares.Jantar primeiro e deixar a carteira em casa.O esquecimento pode ocasionar fome e o desaparecimento do recheio da mesma.A Casa continua linda.Estes avisos são uma paga embora ínfima da dívida que tenho para com o autor dos textos( J N de Andrade.)

      Eliminar