Uma sinopse no
Purgatório
Em 2015, apresentei à SP
Televisão, a seu pedido, uma sinopse para uma série ficcional, destinada a um
canal generalista. O texto de seis páginas entrou no silêncio do Purgatório.
Há, dias, porém, vi, numa rua da minha freguesia, um anúncio publicitário de
uma produção em estreia na SIC, Golpe de Sorte. A ideia-base era a
da minha sinopse. Muito alterada, para tentar atrair mais espectadores, lá
estava o pobre que ganha o EuroMilhões e à sua custa aprende a aplicá-los. Fui
ao purgatório do meu computador e desencantei, silencioso numa pasta sem uso, o
texto da minha sinopse. Ei-lo.
João Pateta
Sinopse para uma série
televisiva curta
I
João é empregado de
balcão, mas mais que tudo um faz-tudo, num desses bares de vila do “país real”
a que se pode chamar tasca. Chamam-lhe pateta porque, se faz tudo, faz tudo
mal. Ou assim acham. Ele tem sempre uma razão lógica para fazer como fez. E
tenta explicar porque lavou assim o chão da tasca ou porque arrumou daquela
maneira os copos.
A tasca é dum Manel, que
dá emprego ao João porque ele faz tudo, mesmo que mal, e não há na vila quem
queria fazer tudo e pelo mesmo valor, que é menos de metade do salário mínimo.
O João é alto, tem uns
20 e poucos anos, e aparenta ser aparvalhado, mas nas suas explicações
percebe-se uma inteligência diferente. Não diz o que sabe. Se começa a falar,
começam a gozar. Se fala de alguma coisa que leu, só o facto de ele dizer que
leu é risível. Que fique bem claro: ele não é pateta. Todos acham que é, mas
não é.
A mãe é, ou fica no
princípio da narrativa, meia entrevadinha. Bem da cabeça, mas diminuída. O pai,
que trabalha no campo, perde assim a mulher-criada, que também trabalhava no
campo e fazia tudo em casa, enquanto ele via novelas e futebol.
O João leva porrada do
pai, uma vez por outra, e, se não reage, é por ter na cabeça o ancestral
respeito.
Com a mãe entrevada,
passa o João a ser o criado da casa, de manhã à noite.
Numa vila pequena há
sempre relações sociais, escondendo-se quase sempre as dissensões mais fortes
sob o manto grosso da hipocrisia dos campos. Quando há dissensões, o furúnculo
rebenta e chega-se amiúde a vias de facto. O João, considerado pateta, assiste
e sorri.
Há a Joana, que é uma
empregadita duma fábrica à saída da vila. Também faz limpezas. Como estão ambos
na base da sociedade, a que apanha com o pó dos carros que passam, dá-se bem
com o João.
Pela tasca do Manel
passam outras figuras. A maioria goza o João, com simpatia, uns, com
superioridade displicente, outros. São figuras para desenvolver se esta estória
passar da sinopse.
O João vive a vida
possível. Não acabou o Secundário porque tinha de ajudar os pais. O seu único
escape é, no computador, ver outras vidas e outras realidades nas notícias,
muitas notícias, seguir um curso de inglês no Youtube e, principalmente, jogar
xadrez. Começou por gostar das peças, que parecem formar uma estória, reinos
simples, não como os da Guerra dos Tronos, mas simples até ter começado a
jogar. E joga de noite, muito de noite, no seu quarto.
O João deveria ter
muitos furúnculos sociais à flor da pele, mas encolhe os ombros e deixa-os para
trás. Se não pode mudar o seu pequeno mundo, não vale a pena estragá-lo mais.
II
Mas… há sempre um mas,
mas um dia por dá cá aquela palha, ou por dá cá aquela garrafa, o pai dá-lhe
porrada e o João viu ali uma grande injustiça. Não era maior que as outras. O
furúnculo é que estava pronto para rebentar. Era uma terça-feira à tarde, no
Verão, no dia das festa local, dedicada ao santo padroeiro. Ouve-se a música
pimba e do rancho por todo o lado. O João tinha passado na festa, tirou uma
rifa, viu a Joana, e outras personagens que hão-de brotar, ganhou uma ginjinha
nos tirinhos. O pai andava por lá, a beberricar; a mãe, em casa, entravada.
E foi depois do almoço
que o pai, já bebido e chateado com a vida (pudera), se atirou ao João e o João
não se aguentou e só não bateu no pai porque, já com a mão no ar, a recolheu
sob o efeito do ancestral respeito. Mas as coisas não ficaram como antes. O João
saiu de casa, bateu com a porta, andou a pé pelos campos, a ruminar ah!, se eu
pudesse sair daqui. Ao som da música pimba da festa a entrar-lhe pelo cérebro,
amaciou, deu-se por vencido pelas circunstâncias, e voltou à vila, não a casa,
mas à vila, não foi à tasca, que estava fechada, por luto do Manel, mas andou
por ali, e, olha! na montra da loja-que-vende-tudo viu uma caixa dum jogo de
xadrez. Entrou, pediu para ver, abriu a caixa e abriu os olhos. As peças de
plástico, ora preto, ora branco, estavam em saquinhos de plástico transparente
e o tabuleiro, de cartão, dobrado em quatro, forrava o fundo da caixa. O João
olhou para o autocolante por baixo da caixa: muitos euros para a carteira dele.
“Carteira dele” é maneira de dizer, porque ele não tinha carteira, tinha moedas
no bolso. Não podia. Encolheu os ombros: pensou, continuo a jogar na Internet.
E, com as moedas na mão, somando mentalmente os 50 cêntimos duma moeda, com
quatro moedas de 20 cêntimos, cinco de dez cêntimos e doze de dois e um cêntimo,
encolheu outra vez os ombros e jogou no Euromilhões. Ainda lhe sobraram
dezassete cêntimos.
Só percebeu que ganhou
112 milhões de euros limpinhos de impostos quando, nos dias seguintes, deram
notícia nos telejornais de que se procurava na vila o vencedor do jackpot de
terça-feira.
III
O que faz um vencedor do
jackpot de Euromilhões? Falou-se muito disso na vila. A festa anual ficou
esquecida perante a realidade do prémio e o sonho que cada um constrói. O João
ficou calado, se bem que com a cabeça a andar à volta, mas, como o acham
pateta, ninguém notou. Na loja- que-vende-tudo não desconfiam do João, não se
lembram de quem jogou, até porque um pateta não entrava no esquema mental dos
que se deitava a adivinhar o possível vencedor. Ainda por cima, naquela
terça-feira tinha havido muitos forasteiros na vila que apostaram na
loja-que-vende-tudo.
O João sabe que tem
tempo para levantar o prémio. Esconde o boletim vitorioso nalgum sítio
improvável, e pode ser que os argumentistas utilizem essa circunstância para
algum suspense. Mas não o perde, porque esse é o suco da barbatana deste
argumento. Vai arquitectando coisas na sua cabeça. Continua a trabalhar na
tasca do Manel, mas invoca ter de ajudar a mãe para sair mais cedo. Lê
estupidamente notícias. Casos anteriores. Não confia a ninguém o seu segredo.
Ninguém desconfia: ele continua a lavar o chão da tasca.
E, uma manhã, depois de
receber os 200 euros mensais do Manel, o João vai a casa almoçar , dá um beijo
à mãe, diz ao pai, que lhe pede o dinheiro, que ainda não recebeu, e, quando
sai, já não volta à tasca. Segue por outros trilhos, com medo que o vejam,
porque na vila sempre alguém vê os nadas do quotidiano, e apanha a carreira
para Lisboa. Pela janela da camioneta vê muitas coisas, as luzes da capital ao
princípio da noite, um avião que levanta voo em direcção ao Ocidente.
IV
Chega de noite ao centro
da cidade. Anda por ali à procura dum lugar onde ficar e entra numa pensão, a
Pensão Estrelinha, onde lhe perguntam se é para ficar uma hora ou passar a noite.
O João acha que uma hora não dá para dormir e fica a noite, pagando adiantado e
recebendo a toalha na recepção.
De manhã entra num banco
e pergunta o que é preciso para abrir conta. Diz que volta mais tarde. E faz o
mesmo noutro banco. E depois noutro. E depois noutro. Segundo as contas que
fez, terá tempo para abrir quatro contas bancárias no mesmo dia. Vai depois à
Santa Casa e o que lá se passa terá de ser investigado pelos argumentistas,
porque este narrador não conhece os detalhes.
Ao fim do dia o João tem
contas em quatro bancos, assim distribuídas: já depois do imposto pago, que o
João espera que seja, em pequena parte, usado pelo Serviço Nacional de Saúde
para acudir de imediato à mãe, 30 milhões, mais 30 milhões, mais 30 milhões,
mais 22 milhões. Esta última conta é o fundo de maneio do João. O João tinha
tido umas cenas caricatas nos bancos, porque indagou das condições para
abertura de contas com mil euros e com muitos milhões. Os bancários, com medo
de maltratarem o cliente, que podia queixar-se, explicaram-lhe. Não o
enganaram, porque o João já tinha andado a farejar na Internet. E pensava que
em boa hora tinha posto a Internet em casa, à custa do seu dinheiro e dumas
chapadas do pai.
Agora, ao fim do dia, o
João subiu a pé, porque não se acomodara à ideia de que uma pessoa como ele não
anda a pé, ao Jardim de S. Pedro de Alcântara, dominou Lisboa com o olhar,
abriu os braços, respirou fundo, e gritou para a cidade: “Lisboa, agora nós!”
V
Na vila as coisas
tiveram o desenvolvimento narrativo que se espera de um desenvolvimento
narrativo numa vila: logo no dia da fuga, ao pai faltou-lhe o João, para tratar
da mãe e do comer, e à mãe mais ainda, porque o João tratava dela. O João
calculou este sacrifício da mãe como uma jogada de xadrez em que se dá um peão
ao adversário. O pai calou-se, como o rendeiro de Raul Brandão, que era um muro
de silêncio. Só no dia seguinte, ao fim do dia, o Manel foi ter com o pai do
João quando ele andava a cavar batatas. Precisava dele para fazer tudo no tasco.
O Manel e o pai do João não jogavam xadrez, mas sabiam quanto eram dois mais
dois: perceberam que o João era, provavelmente, o vencedor do jackpot. Em vez
de um, dois: ficaram ali especados, olhando-se nos olhos, dois como que
rendeiros de Raul Brandão.
O Manel pôs a novidade a
correr e, se uma notícia qualquer, como o da combinação da D. Arminda a ver-se
por baixo da bainha do vestido, já corre depressa numa vila como esta, a
suspeita de o João, o pateta, ter ganhado o jackpot — a maior notícia na terra desde
a inauguração do monumento aos dois soldados locais mortos na batalha de La Lys
— girou pela vila à velocidade da luz. O pai do João não disse à mulher, foi a
Jaquina, que foi lá ajudá-la na limpeza e na lida da casa. A mãe sentiu falta
do filho, bondoso para ela, mas sorriu, respirou fundo como se nunca o tivesse
feito, e viveu feliz no silêncio das fraldas e da cama abandalhada. Coisa
estranha, confiava na sagacidade e no bom senso do filho. E este, à distância,
sabia que a mãe reagiria assim. O rosário tem muitas contas.
Sem notícias do João, a
vila não teve outro remédio se não esquecer o assunto. Se voltava, o falatório
era para maldizer o ingrato, o malandro, esqueceu-se da gente, e essas coisas
ditas por gente que nunca se lembrava do João quando ele lá vivia. A vila nem
mesmo soube dos envelopes com dinheiro vivo que o João mandava para a mãe, sem
nenhum bilhete e como remetente um apartado. Era muito dinheiro, mas ela não
sabia o que fazer com ele, nem como. Nem sabia o que dizer ao marido, e por
isso não lhe disse. Quando fosse à consulta da caixa na sede de distrito, aí,
sim, já teria de ter algum plano. Coisa para argumentistas.
VI
E o João, cadê o João?
Já não é João. Agora é Francisco, porque também se chama Francisco, só que o
nome não ia tão bem com pateta e acabou por ser apenas João lá na vila.
Francisco era o nome do padrinho, que emigrou para os States e nunca mais disse
nada. Francisco — Francisco Oliveira, o apelido do avô materno, esquecido até
então no cartão de cidadão. O João, agora Francisco, continuou a jogar xadrez,
mas num tabuleiro de mármore e peças de marfim, na sua casa nova. Já lá vamos,
mas primeiro o xadrez: que grande tabuleiro!, quase um metro por um metro! E
dois cadeirões, um de cada lado, onde o Francisco se senta à vez para jogar
contra si mesmo. Os argumentistas terão de estudar xadrez, porque isto não vai
lá sem umas jogadas de vida inspiradas no jogo.
E o tabuleiro estava
numa mesa à frente dos grande janelões da casa do Francisco, com vista
panorâmica sobre Lisboa. Não, não comprou a casa. Haveria de comprar depois.
Alugou. Pagou logo seis meses adiantados, para os arrendatários, uma empresa
com nome estrangeiro, não o chatearem. Era gente à portuguesa, que desconfia de
um Francisco ainda com ar de João pateta, mas que se cala quando vê o
dinheiro.
Ora, e aqui é que está a
novidade, os leitores desta sinopse podem antecipar que o agora Francisco vai
espatifar a fortuna em dois anos, como outros. Mas não é assim. O João agora
Francisco é jogador de xadrez. Paciente. Pensador. Sabe que a táctica está ao
serviço da estratégia. O dinheiro que espatifou foi um investimento: ele já não
pode ser João, já não pode ser pateta. Ele pressentiu que o dinheiro não dá
vida se a vida não der dinheiro e que um homem muito rico ou é diferente de si
mesmo quando muito pobre ou será apenas um muito pobre com uma fortuna
momentânea.
Portanto: o João não
muda apenas para Francisco. O João muda, apenas. A psicologia social e a
sociologia haveriam de explicar esta mudança. Depois dos gastos necessários
para passar de João a Francisco e adquirir naturalmente um outro lugar, ele,
que ainda é novo, muda rapidamente, mais por dentro do que por fora. O
Zuckerberg também anda sempre de T-shirt. É claro que os argumentistas serão
tentados a escrever humor fácil com as situações do João pateta a ver coisas
que nunca viu, mulheres como nunca viu, e outros etc. que nunca viu, mas não devem
ir por aí, essas situações certamente existem, mas terão de ser mais subtis e
sem fazer humor de revista.
E, ui!, tanta coisa que
o João agora Francisco nunca tinha visto. Há episódios com mulheres, há. E
tanto podem ser soviet girls do Elefante Branco como tias das discotecas in.
Ele há cada uma! É que nem na Internet! O João aprende muito com elas, dentro
da especialidade de cada uma.
Este contacto com o
mundo dos “de cima” dá muitas cenas interessantes e divertidas, coisas do mundo
das tácticas, mas não esqueçamos a estratégia: o João agora Francisco aplica o
dinheiro. Investe. Compra e vende. Encontra-se com empresários, banqueiros e
até políticos, valha-lhe Deus. Os 112 milhões passaram a 97 em alguns meses,
mas depois a fortuna começa a crescer. O agora Francisco é avesso à vida
social. Entrega-se aos negócios e, está bem, tem umas gajas. Lá na vila não
sabem dele. A mãe, sim, que se mudou para onde a tratam bem, depois de ter ido
à consulta da caixa. O pai anda a plantar batatas e a beber na tasca do Manel.
Diz que os mata a tiros de caçadeira se os vir pela frente. Ninguém o leva a
sério, mas, sabe-se lá!, os argumentos precisam de momentos fortes. O agora
Francisco comprou a fábrica da vila, aquela onde trabalha a Joana, e terrenos
por lá, sem nunca lá voltar. Fala com a mãe pelo telefone e visita-a. A mãe tem
um iPhone e um iPad.
E não há contrariedades?
Há. O Francisco ainda João é enganado, quase ou mesmo, por gente dos negócios;
pelas namoradas números quatro e sete; a mãe morre, depois de mais uma
visita-surpresa do filho, o marido é informado e quase que mata o filho; perde
milhões no descalabro de um banco nacional; compra uma herdade que não existe;
investe numa telcom que vai à falência: é o que se quiser, como na vida. Mas
isso faz crescer o João agora Francisco. Depois morre o pai, para compensar
João agora Francisco do desgosto da morte da mãe. O homem não resistiu a uma
tarde na torreira do campo depois de uma manhã bem bebida.
VII
O João agora Francisco
parece um estrangeiro, mas não. É também um coração mole, mais João do que
Francisco. Dá-lhe saudades da terra e da Joana, a única que não gozava com ele.
Arranja maneira de se encontrar com ela. Lá vem a Joana, com um vestido da
modista da vila, desengonçada. Há um muro entre os dois, que cresce quando ela
lhe diz que o Moinas lá da vila, o carteiro, anda de olho nela. Ele oferece-se
para padrinho e que lhes paga tudo.
Se quiserem um final
feliz, com o João a encontrar a cara-metade certa, não há-de ser a Joana.
Poderá ser a Cristina, filha do farmacêutico, uma força viva da terra, senhor
de fato e gravata, quer na missa, quer as reuniões da sociedade civil. A
Cristina era uma que nos tempos da vila não lhe ligada pevide, que o gozava nas
costas com os amiguinhos, mas o João não via, tinha então esse sonho, e aos
pobres é permitido sonhar. Agora, ao Francisco pôs-se-lhe na cabeça que havia
de a conquistar, era uma espécie de Francisco a vingar-se do João. Mas nem
Joana, nem Francisca. Esta agora queria o bem bom do Francisco, mas, vejam lá,
foi o João que a mandou dar uma volta, num restaurante de Lisboa com duas
estrelas Michelin. Mas pode ser que a estória acabe com o João agora Francisco
dono da vila, a regressar em triunfo, com a banda local e depois um concerto da
Orquestra Gulbenkian no novo Centro Cultural e Desportivo João Francisco
Oliveira, que ele ofereceu à vila. E, depois, o João Francisco, agora com 28
anos que já parecem 38, parte num jacto privado de Lisboa para Nova
Iorque.
Fim
Eduardo Cintra Torres
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