quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Os olhos de Ruslana.

 
 
 
 
 

 

 
 
Estava para escrever sobre este livro, mas o Miguel Esteves Cardoso antecipou-se e, como sempre, esmagou.
         Esmagou talvez em excesso, porque, apesar de o classificar como «interessantíssimo», critica em demasia o livro Nothing Is True and Everything Is Possible, de Peter Pomerantsev.
         Não digo que seja uma obra-prima, nem pretende sê-lo. É o relato de uma Rússia que sabemos que existe, mas que nos é trazida de uma forma irresistível. Através de uma acumulação de histórias e episódios que foi acompanhando ao viver dez anos nesse país, escrito em jeito de reportagem, o livro de Pomerantsev traça um fascinante retrato da Rússia do nosso tempo. Lê-se avidamente. É, sem dúvida, um livro «orientado» para ilustrar a Rússia de Putin e dos oligarcas nos seus aspectos mais sombrios – ou, se quisermos, mais feéricos e reluzentes – e, por isso, bem nos avisa MEC para desconfiarmos da obra.
         Porém, esta não tem a pretensão de avançar uma «teoria», ou sequer uma «explicação» para o que está sucedendo a Leste. Não é uma obra académica, como aquela que Karen Dawisha deu à estampa, o volumoso Putin’s Cleptocracy. Who owns Russia? (vamos ouvir falar muito deste livro, que, ainda não tendo sidon publicado, já mereceu a atenção do TLS e da London Review of Books). Aqui, no livro de Pomerantsev, contam-se apenas histórias, umas atrás das outras. A crítica internacional concentrou-se, porventura em excesso, na história de Ruslana Korshunova (1987-2008), a modelo que se suicidou em Nova Iorque. Sempre que existem cisnes em palco, as atenções focam-se neles. Ainda há pouco, por causa de um escândalo de contas num banco suíço, os olhares viraram-se para Elle MacPherson. O olhar de Ruslana era especial. Devido a um defeito de nascença, os seus olhos tinham uma incisão, minúscula, o que a fazia lacrimejar constantemente. Os olhos de Ruslana possuíam um brilho ímpar, e talvez por isso esta rapariga foi notada e elevada ao estrelato das passerelles. A notícia da sua morte causou sensação. Ruslana atirara-se de um prédio em Nova Iorque. A autópsia não revelou sinais de fogo, violência ou drogas ilícitas. Mas sabe-se que, para ter caído como caiu, Ruslana teve de correr vários metros e lançar-se no vazio. Não se atirou simplesmente. Correu para a morte, literalmente.

Ruslana Korshunova
 
 
          Pomerantsev investigou em detalhe a morte desta e doutra modelo, que se suicidaram com um intervalo de pouco tempo. Chegou a um lugar estranho, um grupo de auto-ajuda, a Rosa do Mundo (ou Roza Mira), que organizava (organiza?) as suas sessões de «terapia» num pavilhão hoje um pouco degradado, mas que fica num dos lugares emblemáticos da Moscovo estalinista, conhecida nessa época terrífica como VDNK – Exposição dos Feitos Económicos Nacionais.
         Apetecia-me falar um pouco desse espaço, e da sua fonte majestosa, mas não vou maçar os leitores com um texto quilométrico. Deve notar-se, em todo o caso, que a atracção russa pelo luxo – e, ao mesmo tempo, a denúncia do luxo como sintoma de degradação humana, realidade muito presente no livro de Pomerantsev – está muito impregnada na história daquela nação. É interessantíssimo ler o inventário dos bens que agentes da NKVD descobriram na casa do sinistro Yagoda, nas purgas de 1937. O rol, que logo foi apresentado como prova da corrupção de Yagoda, é descrito num livro – esse sim, portentoso – de Karl Schlögel, Terror e Utopia. Moscovo, 1937. Além de milhares de rublos em nota viva, tinha Yagoda no seu lar: 3.904 fotografias pornográficas; 11 filmes porno; 11.075 cigarros, alguns de marca estrangeira; casacos de homem, quase todos estrangeiros: 22; casacos de astracã: 2; fatos de homem de confecção estrangeira: 22; sapatos de mulher de fabrico estrangeiro: 31 pares; chapéus de mulher feitos no estrangeiro: 22; meias de seda feitas no estrangeiro: 130 pares; gramofones estrangeiros: 2; gravatas estrangeiras: 34; cuecas de senhora, em seda, feitas no estrangeiro: 68; colecção de cachimbos e boquilhas de marfim e âmbar, a maioria com motivos pornográficos: 165. Além de uma máquina de escrever, três pianos e pianolas, 542 livros de literatura contra-revolucionária e trotsquista, 19 revólveres, sete binóculos, etc., etc.
         Além do puritanismo ancestral mas também muito soviético – o detalhe da pornografia é sempre referido –, é curioso observar que o «luxo» era já identificado com «fabrico estrangeiro». É assim na Rússia, desde Pedro, o Grande. Foi assim no tempo de Estaline, e continua a sê-lo na era de Putin. Os oligarcas têm o fascínio dos produtos de luxo feitos no Ocidente – é sintomático que o disputadíssimo nº 1 da Praça Vermelha seja a sede da Rolls Royce –, algo que contradiz um pouco o nacionalismo espartano de Vladimir. Este, contudo, é mestre em gerir essas contradições. A primeira coisa a que lançou mão foi a televisão, como observa Pomerantsev. Antes de qualquer outra, repita-se. E, a partir daí, construiu uma forma nova, muito mais insidiosa, de autoritarismo. Um autoritarismo capitalista, de mercado, forma ilusória de democracia liberal. Na aparência, há partidos da oposição e imprensa livre. Na realidade, são criados e alimentados directa ou indirectamente a partir do Kremlin, para manter a fachada. Como nota Miguel Esteves Cardoso, e bem, uma das personagens mais fascinantes do livro de Pomerantsev é o propagandista Vladislav Surkov, mestre de todos os ardis.
 
 
Vladislav Surkov
 
 
         Pelo meio, as tradições mantêm-se: uma burocracia kafkiana, a corrupção em tudo quanto é lugar, o convívio horripilante da opulência nova-rica com a miséria mais confrangedora (a pobreza e a riqueza cruzam-se, desde logo, no cruel destino das raparigas vindas da província que aspiram a encontrar um «padrinho» rico, que as tome como amantes, com casa posta e jóias de marca). Tudo isso sucede sob o verniz de «democracia». E quem anda de metro ou vai ao teatro não está livre de ser sequestrado por terroristas chechenos, morto pelas «viúvas-negras» que se fazem explodir em martírio, delas e de quem está à sua volta. Orgias, luxo, petróleo e crime, tudo é possível porque nada é real. O título do livro de Pomerantsev resume a Rússia contemporânea: Nothing Is True and Everything Is Possible. Nada é verdadeiro, nem sequer a existência de grupos oposicionistas ou de críticas (moderadas) feitas a Putin, a maioria dos quais «plantadas» na televisão para nos dar a ilusão de que o regime é democrático. Parece, não é. E, por isso, é particularmente perigoso. Putin e os seus próximos perceberam que havia que encontrar uma forma de hegemonia e domínio mais subtil do que a dos czares ou dos sovietes. Então, tudo era ostensivo, facilmente catalogável como «ditadura» e descartável do nosso convívio. Agora, as coisas são mais elaboradas, porventura mais pérfidas. Com a agravante de muitos dos poderosos – e, claro, dos caídos em desgraça – viajarem por toda a parte, terem casas de luxo em Belgravia ou Manhattan. Para usar o título de um livro de Wiesenthal, os assassinos estão entre nós. Não os vemos sequer, mas estão aí – em Londres ou na Califórnia, na Suíça e em Paris.
 
 
 
         Nothing Is True and Everything Is Posible conta várias histórias, todas incríveis. É pena que seja reduzido à tragédia de Ruslana. A par dela, conta-se a história de uma mulher, Yana Yakovleva, que foi detida longos meses. Hora a hora, minuto a minuto, reconstrói-se o seu quotidiano carcerário. Foi presa por uma simples razão: tinha uma empresa de produtos farmacêuticos, a concorrência mafiosa conseguiu que fosse acusada de traficar estupefacientes, substâncias proibidas. Enquanto esteve na prisão, ficaram-lhe com a firma, levaram-na quase à miséria. Foi salva pelos seus pais, e pela sua capacidade de resistência.
         Mas, quem lê o livro, percebe, até certo ponto, a popularidade de Putin. No meio do caos iminente, entre um mundo surreal de milionários e miseráveis, Vladimir Putin representa, para muitos russos, a última réstia de orgulho nacional. A encarnação da «ordem» numa cidade prestes a devorar-se a si própria. Depois dele, o abismo. Até quando durará esta autofagia da Rússia? Pior ainda: o que virá depois dela? Tudo será possível. Mas nada será real.
 
 
António Araújo
 
 
 



 
 

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