A
mãe no sopé da escada, deixando-se cair no degrau, chorando estupefacta sem
esconder a cara, o pai ouvindo pela segunda vez a notícia. Chamadas da
Metrópole a meio do dia eram quase sempre nefandas. Na altura ainda não se
usava o telefone para não se dizer nada. Em Luanda estava finalmente fresco,
chovera, a terra vermelha cheirava. Foi em Maio, poucos dias antes de ele fazer
setenta e dois anos. Pois a esse dia não queria eu voltar.
Foi
um destes portugueses construtores de impérios, apostados numa ideia de
embelezamento das grandes obras, engenheiro civil, especialista nos portos de
Macau e do Norte de Angola. Teve a linguagem truculenta e cheia da gente de
Coimbra, ainda para mais filho primeiro de poeta satírico e repentista. Foi da
geração que fez a Primeira Guerra, esteve no desastre de La Lys, como alferes,
nas transmissões. Esteve em Macau a construir o porto, em Angola como
Governador de Luanda, e muito mais que não sei dele. Mas quando eu nasci já trabalhava
no palacete do Fomento, no Príncipe Real.
Vou com ele e com a minha mãe passear ao Chiado. Descemos à rua do Carmo, é nas sapatarias da Primeiro de Dezembro que me oferece mais uns pares de sandalitas. Tenho-as de todas as cores, fechadas nas caixas, nunca terei pés para tanto sapato. Na loja gozo o privilégio, ao invés da gata borralheira, e tudo me serve nesse tempo. Está um dia de Primavera clássica, com seu coro de promessas, ainda reservado, embora nós nos adiantemos na leveza dos vestidos e no gelo das limonadas. Dá-me prendas, mas é ele que faz anos no dia seguinte. Até ao fim, vejo-o sempre carregado de prendas para me dar. E acabamos na pastelaria Suíça, porque nada se faz na Baixa sem imenso chantilly.
Lembro e celebro os serões silenciosos no escritório do avô. O meu lugar cativo no sofá de couro e a prancheta para desenhar. Levanto a cabeça e vejo-o a trabalhar no álbum, com a pinça, passando as folhas de papel de seda. Os selos mais bonitos, com pássaros de Angola, são ideia sua. Acabou a festa, retirámo-nos os dois para o escritório, eu para o cadeirão, ele para os selos.
Inaugurou-se hoje, ao fim de vinte anos de trabalhos, o Cristo Rei de Almada. “O mostrengo que está no fim do mar”, como lhe chamava em casa. Foi um domingo, 17 de Maio de 1959. O Cardeal Cerejeira fez discurso inflamado sobre o milagre da paz. Uma revoada de seis mil pombos, uma chuva de pétalas de rosa marcaram o carácter celestial do evento. De um avião lançou-se sobre o povo uma chuva de sacrifícios. Ao longo do ano as crianças do país fizeram renúncias, coleccionaram privações. Os mealheiros acabaram nacionalmente depositados nos presépios das paróquias, a 28 de Dezembro, que consta do martirológio como o Dia dos Santos Inocentes. Instigados pelas mestras, os meninos das escolas escreveram em pedacinhos de papel os sacrifícios que tinham feito por amor ao Cristo Rei. E agora era isso que chovia. Era o milagre da paz. Ou apenas o princípio dele.
Luísa Costa Gomes
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